Associação Antigos Alunos
Medicina, Informação, Autonomia e Criticismo
A prática médica é uma relação empática entre o médico que tem a competência, e o doente fragilizado que o procura porque nele confia. Até há cerca de 50 anos existia nesta relação um paternalismo evidente por parte do médico que ajudava o doente com os seus conhecimentos e perícias técnicas.
Porém, esta relação individual e paternalista alterou-se radicalmente nas últimas décadas por várias revoluções na Medicina.
A explosão dos conhecimentos obrigou às especializações, e a complexidade e custos da moderna Medicina transformou a relação individual médico-doente, numa relação mais institucional e diluída numa equipa na qual surgem também novos actores, como os sistemas financiadores, que suportando custos cada vez mais elevados impõem a sua forte influência.
Nas últimas décadas as publicações científicas multiplicaram-se de forma vertiginosa, por exemplo só em 2017 publicaram-se 11.000 meta-análises [1]. Esta proliferação de artigos resultou não só do aumento do número de investigadores, mas também dos incentivos financeiros e curriculares para publicar. Contudo, estes incentivos se por um lado aumentam a produção científica, por outro podem induzir efeitos perversos na qualidade da informação como já em 1994 Altman alertou [2]. Como Enserik (2018) salienta, hoje precisamos de fazer “investigação sobre a investigação” [3].
Por outro lado, os doentes ganharam uma APARENTE e FRÁGIL AUTONOMIA que se reflete no consentimento informado. A divulgação da avalanche de informação foi extraordinariamente facilitada pela internet (a nova prensa), e fez-se sentir sobretudo na área da saúde, incluindo infelizmente muita propaganda de pseudociência que se aproveita da frágil autonomia dos doentes. Assim, o problema da informação já não reside apenas no escasso acesso aos conhecimentos detido por uma classe, mas passou a residir na seleção dos dados fidedignos para tomar decisões terapêuticas, afetando este problema não só os médicos, mas sobretudo os doentes que estão desprotegidos, pela fraca competência para análise critica da informação.
Numa Medicina de crescente complexidade, é fundamental que os médicos cultivem o ESPÍRITO CRÍTICO, que lhes permite corrigir erros diagnósticos e terapêuticas, facilitar a navegação no mar da informação, e ajudar os doentes a fazerem escolhas esclarecidas, evitando as ILUSÕES de AUTONOMIA baseadas em mitos (https://www.bmj.com/content/348/bmj.g2417/rr/694380), as quais podem sair muito caras, como tem acontecido com a recusa de vacinação por muitos pais [4], o que conduziu a alterações legais no sentido da vacinação obrigatória em vários países [5].
O espírito crítico, embora possa ser estimulado por bons livros e exercícios de reflexão, deve ser cultivado pelos debates com outros colegas e os professores, como se faz nas reuniões clínicas e no meio académico. É esta uma das importantes missões das escolas médicas como refere Wenzel [6]. Há mais de 2000 anos o filósofo grego Sócrates dizia que a "educar não é encher um vaso, mas sim atear uma lucerna" (frase que Wenzel também atribui a Plutarco). Para cultivar esta chama do criticismo teria grande vantagem a consignação na “letra da lei” do debate científico e clínico, como uma actividade essencial ao aperfeiçoamento dos médicos, com tempo e exigências curriculares a ela especificamente atribuídas.
Fernando Martins do Vale
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[1] – Vrieze, J. The metawars. Science 2018; 361 (6408):1184-1188. DOI:10.1126/science.361.6408.1184
[2]- Altman, DG. The scandal of poor medical research. BMJ 1994;308:283
[3] Enserink M. Metaresearch or Research on research. Science 2018; 361 (6408): 1178-1179. DOI: 10.1126/science.361.6408.1178
[4]- Silverman, RD et al. Vaccination over Parental Objection — Should Adolescents Be Allowed to Consent to Receiving Vaccines? N Engl J Med 2019; 381:104-106.
[5]- Omer SB, Betsch C and Leask J. Mandate vaccination with care. Nature 2019; 571, 469–472
[6]- Wenzel RP. Medical Education in the Era of Alternative Facts. N Engl J Med 2017; 377:607-609. DOI: 10.1056/NEJMp1706528
Porém, esta relação individual e paternalista alterou-se radicalmente nas últimas décadas por várias revoluções na Medicina.
A explosão dos conhecimentos obrigou às especializações, e a complexidade e custos da moderna Medicina transformou a relação individual médico-doente, numa relação mais institucional e diluída numa equipa na qual surgem também novos actores, como os sistemas financiadores, que suportando custos cada vez mais elevados impõem a sua forte influência.
Nas últimas décadas as publicações científicas multiplicaram-se de forma vertiginosa, por exemplo só em 2017 publicaram-se 11.000 meta-análises [1]. Esta proliferação de artigos resultou não só do aumento do número de investigadores, mas também dos incentivos financeiros e curriculares para publicar. Contudo, estes incentivos se por um lado aumentam a produção científica, por outro podem induzir efeitos perversos na qualidade da informação como já em 1994 Altman alertou [2]. Como Enserik (2018) salienta, hoje precisamos de fazer “investigação sobre a investigação” [3].
Por outro lado, os doentes ganharam uma APARENTE e FRÁGIL AUTONOMIA que se reflete no consentimento informado. A divulgação da avalanche de informação foi extraordinariamente facilitada pela internet (a nova prensa), e fez-se sentir sobretudo na área da saúde, incluindo infelizmente muita propaganda de pseudociência que se aproveita da frágil autonomia dos doentes. Assim, o problema da informação já não reside apenas no escasso acesso aos conhecimentos detido por uma classe, mas passou a residir na seleção dos dados fidedignos para tomar decisões terapêuticas, afetando este problema não só os médicos, mas sobretudo os doentes que estão desprotegidos, pela fraca competência para análise critica da informação.
Numa Medicina de crescente complexidade, é fundamental que os médicos cultivem o ESPÍRITO CRÍTICO, que lhes permite corrigir erros diagnósticos e terapêuticas, facilitar a navegação no mar da informação, e ajudar os doentes a fazerem escolhas esclarecidas, evitando as ILUSÕES de AUTONOMIA baseadas em mitos (https://www.bmj.com/content/348/bmj.g2417/rr/694380), as quais podem sair muito caras, como tem acontecido com a recusa de vacinação por muitos pais [4], o que conduziu a alterações legais no sentido da vacinação obrigatória em vários países [5].
O espírito crítico, embora possa ser estimulado por bons livros e exercícios de reflexão, deve ser cultivado pelos debates com outros colegas e os professores, como se faz nas reuniões clínicas e no meio académico. É esta uma das importantes missões das escolas médicas como refere Wenzel [6]. Há mais de 2000 anos o filósofo grego Sócrates dizia que a "educar não é encher um vaso, mas sim atear uma lucerna" (frase que Wenzel também atribui a Plutarco). Para cultivar esta chama do criticismo teria grande vantagem a consignação na “letra da lei” do debate científico e clínico, como uma actividade essencial ao aperfeiçoamento dos médicos, com tempo e exigências curriculares a ela especificamente atribuídas.
Fernando Martins do Vale
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[1] – Vrieze, J. The metawars. Science 2018; 361 (6408):1184-1188. DOI:10.1126/science.361.6408.1184
[2]- Altman, DG. The scandal of poor medical research. BMJ 1994;308:283
[3] Enserink M. Metaresearch or Research on research. Science 2018; 361 (6408): 1178-1179. DOI: 10.1126/science.361.6408.1178
[4]- Silverman, RD et al. Vaccination over Parental Objection — Should Adolescents Be Allowed to Consent to Receiving Vaccines? N Engl J Med 2019; 381:104-106.
[5]- Omer SB, Betsch C and Leask J. Mandate vaccination with care. Nature 2019; 571, 469–472
[6]- Wenzel RP. Medical Education in the Era of Alternative Facts. N Engl J Med 2017; 377:607-609. DOI: 10.1056/NEJMp1706528