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Maria do Céu Machado, os passos até à última aula.
Reunimos sem combinação prévia porque estávamos a cerca de 3 semanas da sua aula.
Espera por nós cedo porque as coisas quando são para fazer é para ser a horas e com tempo. Quer passar em revista os convites enviados, confirmações, pormenores da sala e falar do plano que se traçou para preparar tudo para que o momento decorra sem sobressaltos.
“Vai correr bem, tenho a certeza”, digo com a convicção absoluta que há coisas que têm sempre tudo para dar certo. “Podemos ter anos imaculados de trabalho, mas se falhar neste último dia, é disso que se vão recordar”.
“Impossível”, penso, mas não o digo, não naquela exata altura. Faço uma chamada porque tenho dúvidas sobre algumas matérias, “estou aqui com a Professora Maria José”, digo à pressa, estou nervosa, “Maria do Céu, rapariga”, diz-me a rir.
Se eu sabia o nome. Maria do Céu Machado, até junho de 2019 Presidente do Infarmed, a Professora Catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Foi Alta Comissária para a Saúde, Membro do Conselho de Escola e do Conselho Científico da Faculdade de Medicina, Diretora Clínica do Centro Hospitalar Lisboa Norte e Diretora do Departamento de Pediatria de Santa Maria, bem como do Hospital Fernando Fonseca. Assumiu a Direção do Departamento da Criança do Hospital Fernando Fonseca e foi presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos.
Encontramo-nos 4 vezes ao todo, antes da sua última aula a 4 de junho. Das 3 reuniões em equipa fica-me a boa disposição habitual, a capacidade de decorar números e nomes em segundos, organizando-os em tabelas e com cores, há nela uma vertente multifacetada de conciliar vários assuntos num segundo só.
Numa dessas reuniões de preparação pergunto se já está claro o conteúdo da última aula. Diz que já alinhou ideias e fotos e que lá não falta aquela em que está cheia de caracóis, aqueles malditos caracóis gravados meticulosamente no seu cabelo de criança apenas com 4 anos, aquando o nascimento do irmão Zé. “Tenho dado voltas a pensar quando terei ganho resiliência e foi neste dia em que me colocaram uns ferros pesadíssimos no cabelo para parecer uma boneca cheia de caracóis”. Diz-nos a rir.
É dia 31 de maio, sexta antes da aula que vai encher o Grande Auditório da Faculdade de Medicina.
Combinamos encontro para testar o microfone antes da grande data. Chega 5 minutos antes da hora, liga: “olhe que já aqui estou”. Chegamos ao Grande Auditório João Lobo Antunes, esse mesmo Professor e Neurocirurgião com quem esteve casada e que perdeu há 2 anos e meio com um cancro. Ficamos sentadas na sala totalmente às escuras, ainda não chegou mais ninguém. É nesse instante que percebo que há 5 anos, no dia 4 de junho, João Lobo Antunes dava a sua última aula, precisamente às 11h30, ali onde agora não há aparentemente nada. É também nesse instante que o silêncio tem uma forma enorme na sua vida que leva com extrema alegria e entre gargalhadas. No meio da sala que parece grande demais para estar vazia, pergunto-lhe se às vezes tem medo do escuro. Fala-me do seu João. Dele falará muito pouco na última lição e é a única altura em que se lhe trocam as palavras e o som sai atabalhoado. Mas não é de dramas, mulher forte aliás, os amigos, muitos deles médicos, chegaram a dizer que não precisava de apoio químico para superar o peso do escuro e da dor.
Acendem-se as luzes e sobe-se o áudio da sala, coloca-se o primeiro esboço do que serão os seus slides.
Mulher privada, Maria do Céu repara em todos, mas há assuntos reservados demais para serem tema público, mesmo que deles fale mais reservada.
“Vou fazer a apresentação em forma de “ses”. Se os meus pais não tivessem casado, se eu começasse a fazer o contrário do que as freiras diziam, não teria saído do Colégio Sagrado Coração de Maria e não teria ido para o Liceu Dª Filipa; se o meu avô não falasse tanto de Medicina…”. Vai contando enquanto testa o ponteiro e passa fotos em revista. Ajustam-se as mesas dos convidados principais que ocuparão a mesa da Faculdade. “Joana, sente-se aqui nesta cadeira onde vai ficar um dos meus netos mais pequenos, repare, não se vê nada bem as últimas imagens. Vou arrumá-las todas mais para cima”.
Foram os netos que lhe escolheram o tema da aula, “Mais de 4 décadas na Saúde: um exercício de trigonometria”. A área da matemática que estuda as relações entre os comprimentos de 2 lados de um triângulo retângulo foi o que esteve a ver com os netos e concluiu que é tema difícil. Assim retratou a sua vida, numa conta elaborada mas com resultado feliz, ao contrário do ”estudo imposto aos jovens e que se revela aborrecido”, diz.
Na sua aula, assistida por um auditório de muitas figuras de Estado e sem uma única cadeira livre e com pessoas em pé nas filas laterais e atrás, justificou a paixão pela Pediatria e a especial apetência para os adolescentes. “Pediatra feliz” como sempre se autointitula explicou a metamorfose dos neurónios e das sinapses de um adolescente e que tem de ter o dobro das de um adulto, “por isso se eles não vos questionarem e não forem mais turbulentos, isso é que devem estranhar”. Defendeu que a saúde se muda através da educação e do seu planeamento, “não cedendo a medidas tomadas sob pressão”. Da viagem que fez ao progresso da Medicina questionou se valerá a pena viver até aos 120 anos, mesmo sem ver, ou ouvir e acompanhado apenas por robots. Das palmadas dadas às crianças, à falta de empatia entre pais e filhos, passou pelo relato do trato humano.
Num auditório atento e expectante, guardou para o final a frase que arrancaria a emoção contida de amigos, colegas de trabalho, familiares, equipas e pacientes a quem chama de seus “saudáveis”. A frase que encontrou anos atrás em Cambridge e por onde passeava, na altura fotografou-a: “para ser chefe, uma mulher tem de pensar como um homem, trabalhar como um cavalo, portar-se como uma senhora e parecer uma adolescente”. Mas 48 anos de profissional, quase 70 anos de mulher ensinaram-na a refazer a frase que ditaria a sua forma de estar na vida, “Para ser chefe, a mulher tem de pensar como uma mulher.”.
Maria do Céu Machado recebeu ao longo da sua carreira 8 Bolsas de Investigação, 2 Prémios Bial de Medicina Clínica e o Prémio de Qualidade Amélia de Mello.
Foi agraciada como Grande Oficial da Ordem de Mérito, em 2010, recebeu ainda a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde em 2012. Publicou 163 artigos, 4 livros e 667 comunicações científicas.
Agora diz que tem imensos planos que finalmente pode ter tempo para eles, aproveitar a sua casa de Colares, ser voluntária na Pediatria de Santa Maria e continuar a percorrer o mundo onde assume a Vice-Presidência de diversas Instituições.
A aula acabou e a fila adensa-se, todos a querem abraçar. Há várias pessoas comovidas, algumas não se vão despedir, saem.
Sempre perto dela, sempre juntos, estão os netos.
Há qualquer coisa de fim numa aula destas e por isso vários têm lágrimas nos olhos.
Não consigo dizer nada. Fico para o fim revejo os poucos meses em que nos conhecemos e convivemos de forma próxima e sinto saudades.
Peço-lhe o microfone de volta, não esboço um sorriso, mal a olho, faço-lhe uma festa na cara e saio da sala.
A vida tem alguns poucos momentos destes, e pessoas assim, e é por sabermos que o tempo tem um tempo que quando aquela grande sala voltar a ficar vazia e escura, vai ter um silêncio ainda maior para contar.
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Joana Sousa
Equipa Editorial
Créditos Fotos: José Carlos Lima e Isabel Varela