Reportagem / Perfil
Patrícia Costa Reis – A médica que persegue a autoimunidade
Patrícia Costa Reis é médica pediatra, investigadora e Professora na nossa Faculdade. É entre consultas que a conseguimos apanhar para uma breve entrevista sobre o projeto de investigação que a lançou para as luzes da ribalta, afinal de contas, ser distinguida com o Prémio L’Oréal para Mulheres na Ciência, como a própria avança: “É um reconhecimento pelo que já fiz e um grande incentivo para continuar a fazer clínica e investigação ao mesmo tempo.”.
De forma muito transparente, durante a nossa conversa, revela um carácter objetivo e a sua paixão pela investigação, no âmbito das doenças autoimunes. Apesar de nunca o ter dito, dá-nos a entender que é no meio das crianças que se sente realizada, especialmente aquelas que mais precisam do seu apoio. Falámos um pouco de tudo: dos projetos de investigação, dos casos clínicos, da sua passagem pelos Estados Unidos, do papel da mulher na ciência e do seu papel enquanto professora dos estudantes de 4º e 6º ano de medicina, e adivinhem? Quase que nos esquecemos do Prémio L’Oréal.
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Antes de abordarmos o Prémio de Honra L’Oréal para Mulheres na Ciência, pedia-lhe que nos contextualizasse um pouco quanto ao métier da sua investigação. Como é que surge o seu interesse em associar o estudo de uma doença autoimune, como o Lúpus, ao intestino?
Patrícia Costa Reis: Num dos projetos que desenvolvi durante o doutoramento, constatei que os doentes com lúpus, comparativamente com indivíduos saudáveis, têm maior concentração no sangue de LPS, um componente da membrana externa das bactérias Gram negativas.
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De que forma é que essa descoberta se relaciona com o intestino?
Patrícia Costa Reis: Tendo em conta o aumento de LPS em circulação nos doentes com lúpus e o facto de no nosso intestino existir um complexo microbioma, levantei a hipótese de que os doentes com lúpus têm maior permeabilidade intestinal, o que pode permitir a passagem de bactérias, componentes de bactérias, ou produtos bacterianos para a circulação sanguínea. Este fenómeno pode ser relevante para perpetuar a ativação crónica do sistema imunitário que ocorre no lúpus. No ano passado foi publicado, na Science, um artigo que mostrou, precisamente, que num modelo de murino de autoimunidade, monocolonizado, existe maior permeabilidade intestinal e que, quando foram usadas vacinas ou antibióticos para interferir com o microbioma, as manifestações de autoimunidade cessaram. Este artigo veio comprovar a associação entre o microbioma, a permeabilidade do intestino e a autoimunidade.
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Transponível também para os humanos… Diria que há uma maior prevalência nas mulheres do que nos homens?
Patrícia Costa Reis: O Lúpus é muito mais prevalente nas mulheres. Certamente, as hormonas têm um papel importante na patogénese do lúpus, mas mesmo na fase pré-púbere, há mais meninas do que meninos com Lúpus.
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Porquê?
Patrícia Costa Reis: Sabe-se que há genes localizados no cromossoma X que são relevantes para a suscetibilidade ao Lúpus. Por exemplo, mulheres com Síndrome de Turner, que só têm um cromossoma X, têm menor prevalência de Lúpus. Enquanto que homens com Síndrome de Klinefelter, com 2 cromossomas X e 1 cromossoma Y, têm maior prevalência de Lúpus. Tudo leva a crer que genes, no cromossoma X, serão relevantes para o aparecimento de Lúpus, logo, há uma diferença de género clara.
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Falava há pouco que a doença também se manifestava em idade pediátrica. A expressão da doença é também comum em crianças?
Patrícia Costa Reis: A prevalência de Lúpus em idade pediátrica é inferior à prevalência nos adultos. Apenas 15% dos doentes com lúpus são diagnosticados antes dos 18 anos.
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É uma patologia hereditária?
Patrícia Costa Reis: Sim. O Lúpus é uma doença multifatorial e há nitidamente uma série de fatores genéticos que favorecem o seu aparecimento. E, para além da componente genética, temos também de considerar os estímulos ambientais, como a exposição solar. O Lúpus tende a ser mais diagnosticado no Verão, devido à maior exposição solar, e há também mais recidivas nesta altura do ano. A exposição solar conduz a um aumento de apoptose (morte celular), o que favorece a autoimunidade e a inflamação.
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Houve algum caso de Lúpus em idade pediátrica que a tenha tocado de forma especial?
Patrícia Costa Reis: Muitos, na verdade. Quando acompanhamos estas crianças, sabemos que elas se sentem diferentes dos seus pares. A atividade da doença, a luta contra a fadiga e a dor crónica, os efeitos adversos dos fármacos, as múltiplas vindas ao hospital e, por vezes, a necessidade de internamento, causam uma disrupção da normal infância e adolescência. O insucesso escolar e o desemprego nos doentes com lúpus é muito superior ao da população em geral. Tudo isto é um estímulo para desenvolver novas estratégias terapêuticas, com menos efeitos adversos, para tentar melhorar substancialmente a qualidade de vida destes doentes. Ao longo de 6 meses, passei pela Unidade de Reumatologia Pediátrica na Columbia University, em Nova Iorque, onde acompanhei uma coorte de 150 crianças, sobretudo Hispânicas e Afro-americanas, com Lúpus. A doença manifesta-se de forma muito agressiva, afetando frequentemente os rins e o sistema nervoso central, portanto, durante esses 6 meses contactei com muitas crianças que me marcaram e que me levaram a querer fazer investigação nesta área.
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Relativamente ao prémio L’Oréal, como é que encara esta distinção?
Patrícia Costa Reis: É um reconhecimento pelo que já fiz e um grande incentivo para continuar a fazer clínica e investigação ao mesmo tempo. Com o prémio, consegui obter financiamento para pôr em marcha o novo projeto sobre a permeabilidade intestinal e o microbioma no lúpus, que gostaria de desenvolver.
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Quais foram os seus maiores contributos para a ciência até ao momento?
Patrícia Costa Reis: Durante o doutoramento dediquei-me ao estudo de biomarcadores na nefrite lúpica, nomeadamente estudei o papel dos microRNAs nesta doença. Estas são moléculas reguladoras que controlam a expressão de múltiplos genes. Os microRNAs são passiveis de serem medidos nos líquidos biológicos (sangue e urina), pelo que são cada vez mais usados como biomarcadores de atividade de diferentes doenças. Identifiquei dois microRNAs nos rins e na urina que se relacionam com a atividade da nefrite lúpica e constatei que estes microRNAs se associavam à maior expressão de uma proteína, a HER2. Demonstrei que esta proteína estava muito elevada nos rins e na urina de doentes com nefrite lúpica e correlacionava-se com a atividade da doença. Estou agora a desenvolver um estudo multicêntrico, nos EUA, em crianças com Lúpus para determinar o papel da proteína HER2 para prever recaídas e a resposta ao tratamento. Já existem fármacos contra a HER2, que são usados para o tratamento do cancro da mama, pelo que estou neste momento também a colaborar com um grupo de investigadores com o intuito justamente de estudar, num modelo animal, o efeito destes fármacos. Esta pode ser uma nova forma, completamente distinta, para o tratamento da nefrite lúpica.
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Professora, nos dias que correm, como é que descreveria o papel da mulher na ciência? Por exemplo, aqui na Faculdade sabemos que já existem mais alunas do que alunos nas aulas de medicina. Na sua opinião, estamos a assistir a uma mudança do paradigma?
Patrícia Costa Reis: A ciência e a academia refletem aquilo que é a sociedade. No mundo inteiro apenas um terço dos investigadores são mulheres, pelo que, de uma forma global, ainda estamos aquém daquilo que é a igualdade de género. Não obstante, quando olhamos para a realidade da ciência em Portugal, estamos francamente melhor do que outros países. Aproximadamente 50% dos investigadores portugueses, que trabalham em Portugal ou no estrangeiro, são mulheres e anualmente já se doutoram mais mulheres do que homens. Em termos de posições de topo na ciência, ainda não há equidade, mas temos, por exemplo, mulheres à frente de grandes instituições de ciência, como é o caso do Instituto Gulbenkian Ciência e do Instituto de Medicina Molecular. Para além disso, temos um conjunto incrível de mulheres cientistas no nosso país: a Prof.ª Leonor Parreira, a Prof.ª Maria do Carmo Fonseca, a Prof.ª Maria Mota, a Prof.ª Mónica Bettencourt Dias, a Prof.ª Cláudia Faria, entre outras, que são exemplos notáveis, com uma enorme energia, visão, curiosidade, empenho e inteligência e que serão, certamente, inspiradoras para uma nova geração de mulheres investigadoras.
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Alguma vez sentiu que uma porta se fechou por ser mulher?
Patrícia Costa Reis: Não. Nunca. Entrei na Faculdade de Medicina e na especialidade, sempre de uma forma objetiva, através de seriação nacional por notas em exames objetivos. Inclusivamente nos projetos aos quais me candidatei através da FCT e de outras instituições a seleção dependeu sempre do projeto, pelo que nunca me senti injustiçada.
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Em termos de docência, quais são as responsabilidades que hoje assume com a Faculdade de Medicina?
Patrícia Costa Reis: Sou professora de pediatria. Dou aulas práticas ao 4º ano, aproximadamente 2 a 4 horas por semana e dou algumas aulas teórico-práticas de pediatria ao 5º ano. Ainda tenho os alunos do 6º ano e os mestrados.
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Quais são os alunos mais exigentes?
Patrícia Costa Reis: Os alunos do 6.º ano dão-me um prazer especial, porque como tenho a possibilidade de ter um único aluno comigo, ao longo de um mês e meio, há margem para maior discussão sobre os doentes que vamos vendo e, portanto, cria-se uma maior proximidade. Também gosto de dar aulas aos alunos do 4.º ano, porque tento despertar-lhes o interesse pela pediatria e pela importância de saberem fazer uma história clínica adequadamente. O grande número de alunos por docente é, contudo, um desafio. Todos os alunos são exigentes e ainda bem que o são, pois são um estímulo para que tente sempre dar o meu melhor.
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Isabel C. Varela
Equipa Editorial