Reportagem / Perfil
Professora Madalena Patrício – uma vida ao serviço da Educação Médica
Numa viagem de carro para o Alentejo, recebeu um telefonema a perguntar se aceitava o International Peace Prize da Gusi Foundation. Se de começo pensou que era uma brincadeira, rápido lhe ficou claro que em breve viajaria até às Filipinas onde seria agraciada com o que muitos designam como o ‘Nobel Asiático’.
Madalena Patrício, Professora Auxiliar Jubilada da FMUL, foi diretora do Departamento de Educação Médica (DEM). Durante 7 anos presidiu à maior organização de educação médica a nível mundial, a AMEE (the International Association for Medical Education), com a qual continua a colaborar de forma ativa como President ex officio.
Apaixonada pelas mensagens que transporta aquando as suas viagens pelo mundo, alguns quadros da Faculdade afirmam que a Professora Madalena Patrício é um extraordinário cartão-de-visita da Instituição, rótulo que nega perentoriamente porque os elogios não devem ser individuais, mas para as equipas com quem se trabalha. Com altruísmo e paixão, entrega-se às coisas com uma dedicação muito singular.
Se inicialmente sentia que a sua vocação seria a Físico-química, acabaria por a trocar pela Pedagogia. Frequentou a Escola de Educadores de Infância Maria Ulrich, trabalhando nos primeiros anos como monitora de estágios profissionais. Mas, por questões pessoais a sua carreira profissional ficaria suspensa por uns anos, já que Madalena Patrício iria viver para Paris. Foi aqui que acabou por enriquecer a sua formação. Fez uma pós-graduação no Institute Supérieur de Pédagogie de Paris e alguns anos depois, ao regressar a Portugal, foi trabalhar para o Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil de Lisboa. Nessa altura contactou com crianças com problemas sérios a nível da relação, recorda casos concretos ainda hoje como se os tivesse acabado de viver. Surgiu então a oportunidade, para quem já tivesse formação académica e experiência profissional, de se poder candidatar ao Ensino Superior, tendo feito a licenciatura e o mestrado em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.
Mãe de 3 filhos, a energia seria um traço que a Faculdade de Medicina lhe viria conhecer bem e que lhe era intrínseco desde sempre. Ainda hoje joga ténis, pelo menos duas vezes por semana e geralmente antes de vir trabalhar; No mesmo mês acontece atravessar mais que um continente, dorme pouco e trabalha muito.
Decorria o ano de 1995 quandona Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa sob a Direção do Prof. Gomes-Pedro, na altura Catedrático de Pediatria, foi criado o Departamento de Educação Médica, o primeiro em Portugal. O Professor Gomes Pedro lançou o desafio a Madalena Patrício que se candidatou a uma vaga no DEM onde, com a colaboração de muitos docentes, foi construído um ambicioso Programa de Formação a par de muitas outras atividades em Educação Médica.
Madalena Patricio ficou desde logo ligada à docência da Introdução à Medicina, uma disciplina do 1º ano (hoje Módulo III-I ‘Medicina Clínica: o Médico, a Pessoa e o Doente’, cujo objetivo era (e continua a ser), a sensibilização precoce dos alunos, futuros médicos, para os aspetos mais humanos da Medicina. ‘Queríamos que vissem a pessoa como um todo e não apenas o doente, sendo determinante que percebessem a importância da empatia na relação médico-doente’.
Nascia, com a Introdução à Medicina, e com o empenho árduo da equipa docente e de muitos tutores na comunidade, as primeiras vivências de sensibilização dos futuros médicos para a ‘Transformação da Sociedade’. Alunos do 1º ano eram (e continuam a ser) enviados em pequenos grupos para as mais variadas instituições, prisões, lares de idosos, centros de reinserção, jardins-de-infância para acolher crianças cujas mães tinham SIDA, ou circuitos de intervenção social em projetos à noite. Todas tinham uma característica comum, desenvolver um ‘projeto de excelência’ no apoio à vulnerabilidade humana.
Ao mesmo tempo que avançava com o trabalho na Faculdade, trouxe para Portugal a AMEE Conference 2002, o congresso anual da maior Associação Médica a nível mundial com 1200 participantes. Na AMEE fez parte do grupo que criou e desenvolveu o programa – ‘Aspire-to-Excellence’ – que defende que as Escolas Médicas não devem apenas limitar-se a cumprir os standards básicos requeridos pela acreditação, mas desenvolver a ‘Excelência’ em uma ou mais aéreas de ensino. Para isto, foram definidos critérios de Excelência em 6 áreas, entre as quais a Responsabilidade Social das Escolas Médicas.
A nível internacional foi ainda confrontada com outro grande desafio, a BEME (Best Evidence in Medical Education) Collaboration, da qual é a atual Presidente do Board, que defende que em Educação não podemos continuar a tomar decisões com base na opinião, mas à semelhança do que acontece em Medicina, as decisões têm de ser tomadas com base na melhor evidência disponível. ‘É muito difícil apurar a evidência em Educação por se tratar de uma ciência humana, com confoundin confounding variables’. Na FMUL a BEME está inserida no CEMBE (Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência), cujo Diretor é o Prof. António Vaz Carneiro que sempre apoiou esta área, e que foi também Presidente do BEME Board.
Durante os 17 anos em que a atividade do DEM esteve interrompida, Madalena Patrício nunca deixou de colaborar na docência da Introdução à Medicina, área que conta atualmente com a colaboração de mais de 60 instituições na Comunidade.
Foi com surpresa e entusiasmo que a equipa que integra o Instituto de Introdução à Medicina, atualmente coordenado pelo Prof. António Barbosa, realizou que a proposta de 3 níveis de ensino, avançada pelo Lancet Report em 2010, , ia ao encontro do que sempre foi defendido, quer na “Introdução à Medicina”, quer depois no “Módulo III_I”:
- Um ensino informativobaseado em skills e conhecimentos para formar peritos
- Um ensino formativo,socializando os alunos em torno de atitudes e valores para formar profissionais
- Um ensino transformativo,equipando os alunos com capacidades de liderança para formar agentes esclarecidos de mudança na sociedade
Em 2015 o DEM era reativado como uma das grandes prioridades no primeiro mandato do Diretor da FMUL, o Professor Fausto Pinto.
Que mensagens traziam os estudantes quando regressavam das suas visitas às instituições?
Madalena Patrício: Muitas vezes, quando regressam das Visitas na Comunidade, feitas primeiro em pequeno grupo e depois individualmente (para entrevistar um utente, familiar ou técnico), os alunos vêm com a noção que pode bastar uma pessoa com um projeto de excelência, para fazer a diferença numa Instituição. Depois das Visitas os alunos fazem novamente um trabalho em grupo para partilhar com os colegas as vivências na comunidade, nomeadamente para partilharem a ‘principal mensagem retirada das visitas enquanto futuros profissionais de saúde’. O Seminário de Partilha de Experiências é sempre muito emocionante porque ouvimos relatos dos momentos que mais marcaram os alunos. Com base na partilha de experiências, nos portfolios e também na avaliação do ensino realizada pelos alunos, é para nós claro que estamos a sensibilizar os estudantes para serem líderes da mudança para uma sociedade melhor. Tal como diz o Lancet Report ‘o modo como tal vai acontecer no futuro é uma prerrogativa individual”.
À partida quando pensamos em alunos que escolhem Medicina, pensamos que são automaticamente sensíveis às questões humanas. Mas será assim? Perante o quadro real, estaria a maior parte deste grupo de jovens preparados para os cenários que encontravam?
Madalena Patrício: Há uns com uma enorme sensibilidade, mas não é linear que no início todos a tenham. Uns apenas porque desconhecem a realidade. Muitos deles respondem nos questionários de avaliação que a 1 ou 2 kms de distância das suas casas foram encontrar realidades que desconheciam por completo. Muitos disseram ‘descobrimos que não somos médicos de um corpo, mas de pessoas’. Hoje em dia muitos alunos vêm para Medicina com objetivos muito diferentes dos que acima mencionámos, vêm porque é ainda um trabalho seguro, pelo estatuto, por influência dos pais que muitas vezes são ambos médicos, etc. A maioria viveu sempre muito protegida, sempre focada no estudo de uma forma muito intensa para conseguir a nota de entrada em Medicina. Para chegarem aqui, muitos abdicam de ter namorado(a), de fazer desporto, etc. porque precisam de estudar intensamente….
Voltando à sua pergunta, se os alunos por vezes nem sequer conhecem bem a realidade que os rodeia, como esperar que estejam sensíveis aos mais frágeis da sociedade?
E o primeiro ano de curso é a altura certa para este embate?
Madalena Patrício: É muito importante ‘apanhar’ os alunos logo no princípio do curso, porque vêm com sonhos e grandes expectativas de ajudar, estando abertos à sensibilização que pretendemos que adquiram. Note por favor que não estamos a destruir os sonhos dos alunos, mas apenas a orientá-los. O início do primeiro ano é uma altura de maior entusiasmo por ideais antes de estarem absorvidos pelas avaliações e trabalhos das diferentes áreas.
Em termos de reconhecimento externo, em 2007 na altura da Avaliação Externa da Faculdade, o elogio ao Módulo III-I foi claro no documento com as conclusões finais da Comissão Externa. Foi referido que esta área estava muito bem estruturada, sendo de uma importância vital para os alunos, pecando apenas por praticamente não ter continuidade ao longo do curso.
Tentou defender essa continuidade?
Madalena Patrício: É difícil porque o currículo está totalmente preenchido e estão sempre a aparecer novas áreas extremamente relevantes na formação médica. Alguns dos aspetos fundamentais desta sensibilização foram retomados nas áreas da Pediatria ao longo do MIM. Acho, no entanto, que talvez não tivéssemos tentado tanto quanto devíamos, porque acredito ser muito importante não deixar morrer a mensagem de sensibilização para a vulnerabilidade e humanização da Medicina, ao longo do curso.
Para uma pessoa que tem a visão de mundo como a Professora e porque faz parte das mais importantes organizações de Educação Médica mundiais, podemos dizer que no nosso país estas matérias estão ainda muito atrasadas?
Madalena Patrício: Não, de maneira nenhuma. Nós já temos um nível de Educação Médica muito bom, mas podemos sempre ir mais longe e do que observo acho que ainda podemos fazer mais e sobretudo fazer muito mais em colaboração com outras Escolas. Nós temos um problema muito grande, sobretudo nas Faculdades de Medicina do Porto, Lisboa e Coimbra que tem a ver com o número de alunos e a estrutura dos edifícios. Na nossa Faculdade entram mais de 350 alunos por ano o que não tem nada a ver com as Universidades criadas mais recentemente, que recebem cerca de 100 alunos por ano. A falta de tutores e de espaços adequados também dificulta a introdução de metodologias mais inovadoras centradas nos alunos.
Não gosta de elogios pessoais, já mo disse. E confidenciava-me ao telefone quando ia a caminho de Manila que acha que não era merecedora de um Gusi Internacional Peace Prize.
Madalena Patrício: Eu sei que parece falta de modéstia dizer que não mereço, mas é mesmo o que penso. …
Conte-me como foi ir receber o Prémio em mãos.
Madalena Patrício: Foi uma experiência emocionante que nunca vou esquecer. O facto de na maior parte das cerimónias oficiais estar presente a Bandeira de Portugal trouxe uma dimensão diferente a este prémio. Não era eu…. era Portugal a par dos outros países. Na Cerimónia de entrega do prémio cada candidato entrou na sala de Congressos (com cerca de 7.000 pessoas) atrás da Bandeira do seu país. O mesmo aconteceu na Parada Militar e em ambos os momentos não consigo dizer por palavras o que senti.
Além disto, estarmos com 14 pessoas, onde todas ganham o prémio, é por si só um fator muito especial e uma grande alegria. Todas são pessoas com histórias apaixonantes. É um momento tão especial que nessa altura nos esquecemos que nem merecemos o prémio. (Ri)Quando mo entregaram referi no discurso que o Gusi International Peace Prize é um alerta e uma enorme motivação para todos sermos agentes de mudança para uma sociedade melhor, é um prémio de cidadania.
Já passou mais tempo mas também recebeu um Grau Honoris Causa neste passado verão em Porto Alegre, no Brasil. São situações honrosas que querem dizer alguma coisa do seu percurso.
Madalena Patrício: Também não fazia ideia, porque nunca me pediram para enviar o currículo. Pediram à AMEE, pelo que não sabia de nada até a decisão final estar tomada. Na verdade recebi um convite para ir a Porto Alegre, à Universidade Federal das Ciências da Saúde fazer duas conferências e outras intervenções pelo que com alguma antecedência contactei-os para pedir informações a nível da audiência e currículo e assim poder adaptar o meu discurso à realidade da Instituição. Recebo uma mensagem com a resposta às questõescolocadas, acrescentando que me tinham enviado um email que provavelmente seria do meu agrado. Fui a correr lê-lo. Era o convite formal a informar-me sobre a decisão da Universidade.
Deixa agora o seu legado à Professora Isabel Pavão Martins. É uma passagem tranquila para si?
Madalena Patrício: Não tenho dúvida que a Professora Isabel Pavão Martins vai ser uma ótima Diretora. Foi excelente enquanto Presidente do Conselho Pedagógico, onde revelou uma profunda capacidade compreensão dos problemas da Escola e da sua possível resolução. Convidou o Professor Luis Soares de Almeida, para Subdiretor, um ‘apaixonado’ pela Educação Médica, que participou em todas as anteriores formações do DEM. Propuseram-me que continuasse a colaborar com o DEM na área deformação de docentes e em outras áreas pontuais. Foi com enorme alegria que aceitei este convite que me mantém ligada à FMUL a fazer aquilo que gosto.
Como é que se vê com este abrandamento que a sociedade vai impondo a uma pessoa que atinge os 70 anos?
Madalena Patrício: Várias coisas: por um lado é mau porque corta o trabalho a pessoas que muitas vezes são ainda válidas e que gostariam de continuar. Estas pessoas deviam poder manter-se ativas e dar o seu contributo. Por outro lado, as saídas são boas porque dão a oportunidade de entrarem novos elementos, impedindo que pessoas menos válidas se mantenham nos cargos que ocupam. Também é bom abrandarmos para podermos fazer outras coisas de que gostamos e gozar mais da família..
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No dia seguinte a esta entrevista a Professora Madalena partia às 0 7h da manhã para a Escócia, para outro encontro sobre Educação Médica.
Quando lhe pergunto se procura algum silêncio necessário à agitação da sua vida, percebo que isso não lhe passa de um cliché, porque não precisa de um momento ou lugar concreto para ser introspetiva, “eu encontro o silêncio interiormente”.
Apesar de continuar ligada ao DEM e à FMUL através das ações de formação de docentes, tem pena que entre nós não aconteça o que vemos nas Universidades estrangeiras onde há oportunidade para os docentes Jubilados poderem continuar a colaborar. “Tal não acontece entre nós, salvo raras exceções, como por exemplo o Prof. Francisco Antunes, que continua a fazer um trabalho notável”.
Os alunos, o grupo por quem mais se move são igualmente os que mais vão semeando alguns ensinamentos, porventura, sinal que o empenho e anos de trabalho em nada foram em vão. Recentemente e tendo de levar um familiar, com idade muito avançada, às urgências de Santa Maria, numa sala de consulta muito apertada (porque havia estudantes a acompanhar a consulta), Madalena Patrício decidiu não entrar e esperar do lado de fora. Do lado de dentro da sala a médica chamava-a, ‘Dra. Madalena Patrício entre por favor, os estudantes falaram-me de si por estar ligada à Introdução à Medicina e quero falar consigo. Quero dizer-lhe que mudei a minha prática no que concerne o modo como agora falo com os doentes por influência destes alunos, aprendi com eles”.
Este testemunho mostra pequenas mudanças visíveis na humanização da Medicina.
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Joana Sousa
Equipa Editorial