Momentos
Margarida Pinto Correia: The long way to Tipperary
Pedimos às filhas que recordassem o pai José Pinto Correia cuja homenagem dos seus 30 anos de morte decorreu no dia 14 de setembro, a filha Margarida aceitou e deixou-nos este relato de saudade.
Nada melhor numa pessoa com graça, do que aquela forma subtil de largar piadas ou afirmações causticas como se estivesse a dizer a coisa mais normal do mundo. Como se não fosse importante. O sentido de humor é de facto uma das coisas mais fascinantes num homem. Muito mais num homem onde não se espera essa faísca! Rasgos, sim. Num Professor brilhante e Extraordinário, esperam-se grandes tiradas, ensinamentos profundos, propostas para mudar toda uma sociedade, questões civis da mais iluminada estirpe. Não se esperam piadas sarcásticas, provocações subtis, gargalhadas soltas.
O nosso pai era isso tudo.
No carro, ou em grupo, nas férias, nos NOSSOS momentos, ele começava a cantar it s a long way to Tipperary como se fosse uma coisa séria e esforçada. Cantava mal e amava música. Dançava muito mal e mexia-se com o swing invejável. Então gozava com isso – não consigo próprio: connosco. Provocava-nos, cantando. E nós, quatro miúdas no banco de trás, oh pai, nãããão. Então começava a cantar Cat Stevens para se meter com a Clara, perguntava à Rosário se os Beatles eram gandulos, provocava a minha mãe com uma Edit Piaff de péssimo sotaque francês. Ficávamos de pelos eriçados, horrorizadas. A adorar cada momento. Era a nossa “cena”. Acontecia porque ele estava ali – e isso era a coisa mais preciosa do mundo.
Ele não estava quase nunca, estudava nos intervalos dos filmes (e adorava ir aos irmãos Marx em família), estudava na praia, passava domingos fechado no escritório a estudar. Eu tinha o privilégio de lhe levar lanche, e era a delicia de entrar naquele cheiro a cachimbo, naquelas sinfonias que o embalavam, óperas que o abraçavam, recomendadas pelo enorme amigo Sidónio (Paes).
Era o seu reino e às vezes podíamos lá entrar.
Mas ao mesmo tempo…
Ao mesmo tempo que o mundo cientifico se rendia à sua visão e ao seu conhecimento, ao mesmo tempo que os alunos com ele sofriam, os colegas com ele construíam e a sociedade civil com ele avançava, ele fazia tempo: as férias anuais rendiam o ano inteiro pela riqueza da experiência, e rendem memórias ainda vivíssimas passados 30 anos. As private jokes familiares continuam assentes nesses dias. Férias da Páscoa em Portugal, à descoberta do país…se calhar eram só fins de semana prolongados, alguns dias aglutinados, mas pareceram-me sempre grandes e boas. Até hoje.
Era um explorador na génese, e por isso estava aberto ao novo, ao mais, ao que de alternativo nos pudesse dar outros mundos. Adepto de espreitar outras práticas, partia do principio de que o Conhecimento era o nosso trampolim para a vida, de que não o podíamos abrandar nunca. Boas notas? Não fizeste mais que a tua obrigação!, e a exigência era absoluta. Implacável. E humana, dita num abraço forte, num riso franco e numa voz inconfundível. Com os anos, fui-me cruzando com as gentes dele: os colegas, os alunos, os doentes. Os amigos estiveram desde sempre, apaixonados por ele. Como todos os outros. Mesmo os que foram inimigos políticos, inimigos académicos, alunos furiosos, hoje o querem elogiar. Porque marcou cada um em que tocou, porque deixou rasto, porque nos mostrou como é possível ser-se exigente, íntegro, sagaz, cheio de graça e com uma humanidade transbordante.
Contou-me o Prof João Salgueiro, que ao fundarem a SEDES na primavera marcelista, juntos desde a JUC, determinaram todos que seria o Prof (assim lhe chamávamos em casa) o sócio nº1. E isso porque era o mais diplomático, o mais “civil”, o não partidarizado que poderia naquele período difícil manter a chama acesa sem que a associação perdesse a independência politica a que se propunha. Até hoje.
Já o tinha escrito, insisto: difícil, é fazer-lhe Jus ao nome.
Margarida Pinto Correia