Momentos
Clara Pinto Correia: Só nós dois e o anel de Benzeno
Pedimos às filhas que recordassem o pai José Pinto Correia cuja homenagem dos seus 30 anos de morte decorreu no dia 14 de setembro, a filha Clara aceitou e deixou-nos este relato dos tempos em que trocavam argumentos sobre o futuro.
Antes de mais nada, o meu Pai não era o Pinto Correia, o meu Pai era o Professor. Alunos, colaboradores, familiares, nós todas lá em casa – quando se dizia “O Professor”, só podia ser o Prof. Pinto Correia. Severo, exigente, divertidíssimo, muito à frente do seu tempo, e de um carinho que já de si era meio caminho andado para a cura com todos os seus pacientes, cama a cama, nome a nome. A aldeia da família chamava-se Tremez, e em cada fim de semana passado em Tremez as pessoas faziam uma fila que dava literalmente a volta ao quarteirão, já carregadas com o melhor que as suas terrinhas tivessem para dar, à espera da sua vez para receberem no corpo o toque mágico do Taumaturgo – e ficarem curadas. Até no antro daquelas corjas de machões gloriosos que ainda povoaram todos os anos 80, e que eu, com vinte aninhos, tive a sorte de ainda conhecer enquanto mestres, podem ter chegado a chamar-me muitos nomes para além de Clara, tais como Clarinha, Minhoca, Pretinha, Ciganita, Agatachristie – mas, de início, enquanto ainda não me conheciam bem, nas primeiras duas ou três semanas em que ainda não sabiam ao certo o que é que haviam de esperar da miúda que andava a estudar Biologia e os tratava a todos por igual por “Fósseis”, o que eles realmente me chamavam era “A Filha do Professor”.
Por exemplo, o Assis Pacheco e o Manuel Múrias espreitavam à hora do almoço para dentro da redacção, onde eu tinha ficado a escrever sozinha, e um dizia para o outro, suficientemente alto para que eu ouvisse:
“Estás a ver, pá, estás a ver? A filha do Professor vai lá, ãh?”
Eu nem pensava na parte que deveria ter sido elogiosa para mim. O que eu tinha neste crédito implicitamente atribuído ao Pai era sempre, já na altura, um orgulho enorme.
Esta foi a história do meu Pai como figura pública, o conjunto das histórias que todos conhecemos, e que nos marcaram ao ponto de querermos juntar-nos hoje para lhe prestarmos homenagem. Mas, por trás do genérico que de uma forma ou de outra tivemos o privilégio, de viver em comum. Tínhamos todos as nossas histórias só nossas.
Esta é a minha.
Tenho tão claras na memória como se fossem de ontem são as nossas batalhas constantes “BIOLOGIA vs MEDICINA”, que começaram ainda eu andava no liceu e continuaram já depois de eu ter acabado o curso. Médico, filho de um médico, casado com uma médica, o Pai transportava com ele alguma parte romântica com a qual não conseguia fazer as pazes. Tinha três filhas, todas boas alunas. E não se conformava com o facto de nenhuma de nós parecer interessada em seguir-lhe as pisadas para manter acesa a chama. Mas as minhas Manas falavam de planos impossíveis de sobrepor, como Economia, Geologia, ou Teatro. Agora, ao menos eu, que anunciei que queria ser Bióloga logo aos seis anos, e que ainda por cima dei sinais precoces de gostar de dar aulas e de as dar muito bem, ainda lhe lhe alimentei para ali imensa esperança. Entrei com essa esperança dele na minha vida adulta. Ainda vivo, todos os dias, com essa esperança a manter-me de pé.
Os nossos debates eram cada vez mais complexos e acalorados, mas costumavam começar todos por qualquer coisa como:
“Pai, eu por mim escolhi Biologia para estudar todas as espécies animais da savana.
Ah, o que é que isso interessa – tu não vês que eu, por mim, escolhi Medicina para estudar A Espécie?”
Ou então:
“Maria Clara, então mas tu não vês que é graças às pessoas que seguiram Medicina, como eu, que outras tantas pessoas como tu não morrem?
Pois é Pai, é horrível. Tudo o que vocês quando seguem Medicina fazem é estudar a Morte. E eu, por mim, quero seguir Biologia para estudar a Vida.”
E até houve umas mesmo requintadas, como a da vez em que ele me espreitou por cima do ombro para ver o que é que eu estava a estudar. Ainda ia naquela fase infernal de todo o Primeiro Ano, em que nos prometem imensa Biologia para o ano seguinte – mas, antes disso, a gente se quer lá chegar que faça Física, Química, e até dois semestres de Cálculo.
“Então e estás a gostar da Química Orgânica?
Ao menos estou a gostar de estudar aquilo para o exame. Mas eu nunca te falei nem na Química Orgânica nem no exame.
Estavas a roer as unhas e a escrevinhar uma página cheia de anéis, de anéis de Benzeno. É uma estrutura fantástica, não é, o anel de Benzeno?
Percebe-se melhor o resto.
Faz-nos logo ver que o segredo de um bom funcionamento celular tem que assentar na possibilidade mais simples.
O que eu vi logo foi que houve ali um período na História da Europa em que o segredo de tudo tinha por força que ser um círculo.
Quê?
Então, ó Pai, o anel de Benzeno aparece exactamente quando se começam a dançar valsas em Viena. E, se investigássemos mais, de certeza que apareciam outras coincidências.”
Isto era pirateado de qualquer leitura minha da época, que por acaso até mencionava mais coincidências mas eu é que já não sabia quais eram. O Pai é que ficou a olhar para mim com um ar tão impressionado que eu me senti superlativamente vitoriosa. E então depois, muitos anos mais tarde, já com graus, publicações, e aulas em Biologia, não descansei enquanto não fui estudar História da Ciência – agarrada à cauda de um cometa em forma de anel de Benzeno.
Estas nossas batalhas nunca tinham testemunhas, e possuiam o seu esconderijo próprio. O Pai herdou um pomar antigo num terreno dos Avós, e claro, era o Pai, quer dizer, era o Prof: remodelou o pomar todo ao estilo mais moderno que havia na época, com macieiras jovens todas espalmadas dentro de arame, para se apanharem, ou se tratarem, numa simples passagem de tractor. Enfim, uma coisa mesmo nunca antes vista. Ao fim de semana, em Tremez, o Pai enfiava sempre o boné, e agarrava nas luvas e na tesoura da poda, para ir inspeccionar o pomar de perto. Às vezes punha-me o polegar e o indicador por trás do pescoço, e dizia, “Anda Tim” (este Tim era o cão das Histórias dos Famosos Cinco). E eu ia logo com ele, já toda a vibrar de ideias e de argumentos que não estavam nem vislumbrados ainda no minuto anterior, os dois muito calados até já estarmos escondidos pelas macieiras.
Não darmos valor ao melhor que temos em cada altura da nossa vida é um cliché, e perdermos os nossos marcos materiais é uma obrigatoriedade da História. Ao menos eu sei para mim, frame by frame, que todos os passos que dei a seguir na vida seguiram sem desvios o caminho silencioso que ia ter ao pomar. Só nós os dois e a passarada, em manhãs muito lindas, cintilantes de sol de Inverno.
Clara Pinto Correia