Espaço Ciência
Suzana Herculano-Houzel – Sobre a vantagem do cérebro humano
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De perfil discreto e num discurso de fácil perceção, o sotaque carioca não está atenuado mesmo estando já a viver fora do seu país.
Formada em Biologia só se começou a interessar por Neurociência muito mais tarde. Fez uma pós-graduação nos EUA e morou quatro anos na Alemanha, onde fez o Doutoramento. De regresso ao Brasil trabalhou em comunicação científica e foi no trabalho desenvolvido na Universidade do Rio de Janeiro que se focou na pesquisa sobre os cérebros e do que eles são feitos.
Há 15 anos a tentar entender como se compara o cérebro humano a outros cérebros da espécie animal, deu-se conta que vários dos seus pares olhavam para o cérebro humano como algo especial e único, não sendo sequer comparáveis a outras espécies.
Neta de um avô clínico geral e de uma avó portuguesa de Vila do Conde tem herança de mundo. Foi viver para os EUA há cerca de dois anos. Recebeu um convite da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, Universidade que já visitava há dez anos e onde partilhava ideias com o investigador John Kaas que também estuda o cérebro de primatas.
Diz, com alegria extrema, que deixar o Rio e ir para os EUA foi o melhor que lhe podia ter acontecido. “Tinha condições péssimas para trabalhar, a minha sorte era o meu método de pesquisa ser tão barato. Com poucos recursos, eu coletava os cérebros de espécies diferentes de animais, através de um fundo que recebia do meu estado, deslocava-me a outros países e eles davam-me amostras e eu regressava ao meu micro-laboratório no Rio”. Critica perante um país cujo orçamento para a ciência é mínimo, diz que os brasileiros sofrem “de complexo vira lata”, se fora do país o interesse pela ciência ia crescendo cada vez mais, lá dentro afunilava, “só o que é de fora é bom, só quando se olha de fora é que se valoriza algo, é a cultura da cópia que só quando o outro faz é que assume valor para dentro”.
Atualmente a viver numa cidade pequena e familiar, onde não tem receio das horas a que chega a casa, nem tem de pensar no lugar onde estaciona o carro, tem ainda o apoio intelectual de colegas que ficam felizes com os seus progressos.
Speaker convidada no PhD Meeting do CAML, Suzana Herculano-Houzel, publicou recentemente um livro - A Vantagem Humana, Como o nosso cérebro se tornou super poderoso. Veio falar dos tamanhos dos cérebros e da vantagem do cérebro humano face ao de outros animais. “Nós não temos o maior cérebro animal, os elefantes têm o cérebro três vezes maior que o nosso e as baleias seis vezes mais. Então, e apesar de não ter o maior dos cérebros, entendeu-se que isso era devido a uma característica extraordinária do cérebro humano. Mas eu dei-me conta que talvez fosse apenas porque não tínhamos entendido o mais básico sobre o cérebro e a minha pergunta foi, afinal de que é feito o cérebro? Se pegar em dois cérebros do mesmo tamanho, eles terão o mesmo número de neurónios? Se olhar para um cérebro maior do que o humano, ele tem proporcionalmente mais neurónios por ser maior?”.
Partindo da premissa de que os cérebros seriam todos feitos da mesma matéria, Suzana questionou se o tamanho de um cérebro seria proporcional ao seu número de neurónios. Mas sabendo à partida que, não sendo o humano o maior dos cérebros, o que o destacava então?
Se quem tem mais neurónios tem “mais peças de um lego”, como a própria explica, então, quem tem mais peças de legos consegue pensar melhor? Mas como comparar espécies diferentes e medir os seus neurónios?
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A técnica pode parecer estranha, mas o que Suzana decidiu fazer para medir os cérebros foi transformá-los em sopa. Explique-nos a técnica e a que pensamentos ela nos leva.
Suzana Herculano: Desfazendo o tecido e dissolvendo as células conseguimos contar o núcleo das células, contando o núcleo, contam-se as células. Contando região por região do cérebro, em dez minutos se consegue, em número real, contar quantas células há. Esta sopa é contabilizada em microscópio, depois usando corantes, por cada região do cérebro, contam-se as áreas todas. A técnica começou a ser usada nos cérebros de ratos, mas com o tempo fomos alargando o espectro das amostras. E daí nasceram as primeiras duas pistas: a primeira era que cada grupo de animais tinha diferentes formas de cérebro e a segunda é que os primatas são diferentes de todos os outros grupos. E isto porque os seus neurónios não ficam maiores, quanto mais neurónios o cérebro ganha. Em todos os outros grupos de mamíferos quanto mais neurónios se encontra no córtex cerebral, maior eles são, mas não nos primatas. Os primatas ganham mais neurónios, mas sem que eles aumentem de tamanho e o porquê ainda não entendemos. Isso quer dizer que quando se compara o cérebro do primata, com outro mamífero com o mesmo tamanho cerebral, o primata tem muito mais neurónios escondidos, mas com menos volume do outro mamífero. A maneira primata de acrescentar mais neurónios ao cérebro, seja lá como isso for, é muito económica, é com neurónios que mantêm o cérebro pequeno. O tamanho do cérebro engana e no fim de contas a consequência é que, quando comparar o nosso cérebro com o dos primatas, com o cérebro de tamanho semelhante mas de outro tipo de animal, o nosso cérebro esconde um número imenso de neurónios.
Somos a espécie com maior número de neurónios no córtex principal, o nosso cérebro não tem nada de evidência extraordinária.
Então o que temos nós de extraordinário?
Suzana Herculano: A pergunta então mudou e foi, o que é que permitiu que a nossa espécie conseguisse acumular tantos neurónios e tão rápido em termos evolutivos? Porque é que o gorila, ou o elefante, são maiores que nós e não têm mais neurónios? A resposta diz respeito a uma limitação energética. Nós somos animais e não fazemos fotossíntese e isso quer dizer que temos de comer, porque toda a energia que está no nosso corpo tem que ser ingerida.
O acesso aos supermercados e o facto de se ter frigorífico permite que se tenha comida suficiente, desde que não faltem os meios de acesso. Mas no mundo real dos animais é preciso procurar a comida, caçá-la e isso leva tempo e é limitado pelo tamanho do que a boca consegue morder. No caso dos primatas, fizemos as contas sobre quanta energia precisava este animal, e percebemos que um orangotango está no fim da linha, já que de oito em oito horas passam entre a procura de comida ou a comer. Oito horas é o limite que eles conseguem aguentar sem perder peso.
Então percebemos que havia algo complexo e que nos distingue de todas as outras espécies, é que nós cozinhamos, transformamos os alimentos antes de os colocar na boca porque fazemos a pré-digestão. Assim, o nosso organismo gasta também ele menos energia para comer. Mas, mais do que isso, nós só engolimos a comida macia e líquida na boca, quando o alimenta chega ao estômago e intestino 100% da pasta já está disponível para aproveitar tudo energeticamente. Ter a noção do que causa cozinhar todos os alimentos mudou completamente a minha maneira de olhar para a cozinha e até para os nossos hábitos normais de vida. Mas já viu o que foi preciso para chegar aqui? E como podemos perder tudo isto?
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Então a grande revolução é porque cozinhamos os alimentos?
Suzana Herculano: Esta é a diferença da Biologia humana e o que ela nos proporciona e o que fazemos com ela. O ser humano tem no mínimo o dobro de neurónios no córtex cerebral e se, enquanto espécie, já começamos com estes neurónios todos a mais, claro que isso nos dá uma enorme vantagem. Mas não é só isso, porque isso é só matéria bruta e ainda não se aprendeu a fazer nada com isso. De que serve se eu lhe der um balde de legos se você não sabe construir com ele um grande edifício? O que acontece no individuo é que ele tem um processo de formação de desenvolvimento do cérebro e isso depende da informação que se absorve e não do que está nos genes. Esta interação implica estudar, conhecer pessoas. Isso leva tempo, mas culmina com a aprendizagem e aplicação dessa aprendizagem. Há por isso uma diferença enorme entre o que é a nossa capacidade biológica e o que se aprende a fazer com a informação que absorvemos.
Assim, como menosprezamos a cozinha fazemos o mesmo com a escola e a formação que recebemos é o know what e o know how tornamo-nos tão capazes de fazer as coisas que nem valorizamos mais.
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Porque damos tudo como adquirido.
Suzana Herculano: Como temos tudo adquirido passamos a menosprezar. É preciso expor as pessoas à atribuição de conhecimento. Se não houver o número suficiente de pessoas a transmitir, no mínimo, aquilo que descobriram antes de nós, e se possível der para ir um pouco mais além, nós perdemos tudo o que conquistámos e voltamos a ser só biologicamente humanos. Ficando apenas com aquele balde enorme de legos, mas sem o saber usar.
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Corremos o risco de regredir enquanto espécie?
Suzana Herculano: Com certeza é um risco eminente a cada geração. Eu gosto muito de ler livros de ficção científica e a ficção ganhou uma nova dimensão para mim agora que investigo. Vários destes livros já fizeram a experiência mental de se perguntar quanto tempo é que duramos na hora em que acabem as escolas e na hora em que acabem no planeta as pessoas que tenham algum tipo de conhecimento. E estamos apenas à distância de uma geração.
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Só?
Suzana Herculano: Sim. Vamos a exemplos concretos. Quando o sol se põe e eu ligo a luz, é porque carrego num botão, mas esse botão está ligado a transformadores que foram construídos por alguém, alguém que pensou na forma como se mantém tudo ligado, então, em poucas horas de podermos perder as pessoas que sabem cuidar deste assunto, sabemos que vamos perder a eletricidade. E o que é que você perde perdendo a eletricidade? Este é o perigo, é que somos tão bons a chegar a este nível de vida que já nem nos preocupamos em como a manter e esquecemos que, aquilo que somos, depende de manter tudo vivo e isso vai muito além da nossa biologia. Eu doutorei-me, mas não sei como se constrói um lápis, não sei caçar e não estou certa que saiba fazer fogo. Mas tudo isso chega-me já construído. Temos de ter consciência que nenhuma pessoa pode, ou domina, todos os conhecimentos, precisamos de funcionar em rede de conhecimento.
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E no entanto cada vez mais achamos que conhecemos tudo. É essa a sua mensagem?
Suzana Herculano: Exato, mas a questão é que como espécie é verdade, que cada vez sabemos mais, só que isso acontece à medida que cada um de nós é cada vez mais menor no esquema global das coisas. A humanidade, há muito tempo, já transcendeu o ser humano, mas cada um de nós é uma peça muito pequena e que sabe alguma coisa que acrescenta a esse todo. É óbvio que nenhum médico sabe tudo, mas hoje domina mais do que um médico de há 100 anos atrás. Hoje, proporcionalmente, o médico estudou mais tempo e adquiriu mais técnicas e por isso, em termos absolutos, claro que conhece muito mais coisas, mas o senso de proporção é sempre relativo e tem sempre de ser tido em conta. A pergunta é: Quanto é que cada um de nós sabe? Ou quanto é que cada um de nós sabe, comparado com tudo o que existe à nossa volta e no mundo? Se for só quanto cada um de nós sabe, então é uma enormidade, mas só sabemos cada vez mais de uma só área, proporcionalmente, cada vez menor. Mais uma razão que mostra como dependemos de tudo o que nos rodeia. A transmissão do conhecimento de uma geração para a outra é absolutamente necessária. Veja como os governos têm também tanta importância nesta partilha do saber e para manter tudo vivo.
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Se dessemos aos primatas a comida constante e assimilada, tal como a ingerimos nós e sem os obrigar a caçar e a gastar tanto tempo e energia, isso faria com que ganhassem mais neurónios?
Suzana Herculano: Seguramente ficariam mais gordos. Tal e qual como nos acontece a nós. Mas ter mais neurónios não é a resposta que nos justifica de onde vem a energia, essa resposta ainda não encontramos qual é. Não basta dar mais comida aos primatas, a explicação está na evolução e que tem uma vantagem espontânea e que não dominamos. A energia só vinga se vier de uma variação que seja viável. A espécie humana não tem, então, um cérebro maior do que deveria, isto comparado com o gorila, o gorila não tem energia suficiente para ter um cérebro com mais neurónios.
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Créditos de imagem: Jorge Bispo
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Joana Sousa
Equipa Editorial