Do lado de cá
Miguel Andrade - Do lado de quem vê
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Tem uma aparência discreta e pacífica, mas os novos estudantes que o conhecem no Dia do Candidato facilmente o tratam por “Professor”, pois já desistiu de os corrigir, assim como desistiu de contestar os estudantes mais antigos que o chamam “o Tinoco”.
Miguel Tinoco Andrade é mais um dos elementos da nossa rubrica “do lado de cá” e que trabalha para tentar proporcionar aos estudantes melhores condições de estudo. Atualmente no Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública faz a gestão do funcionamento de várias áreas disciplinares e muitas outras tarefas que os Docentes lhe delegam, incluindo parte importante do Secretariado daquela Unidade. Mas está igualmente integrado noutros projetos, desde o “Dia do Candidato” até situações muito pontuais como quando foi várias vezes convidado para mestre-de-cerimónias no Dia da Faculdade.
Como diplomata que é não se impõe mas, de forma inteligente, passa mensagens e convicções de vida. Defensor da meritocracia, entende igualmente que se humanizarmos as instituições só temos todos a ganhar.
Preocupa-o ver a repetição consecutiva de certos erros na História da Humanidade e nem o passar dos tempos parece trazer soluções para os maus padrões sociais ao invés da sabedoria, pois “a relação com os outros está presentemente a voltar a ficar cada vez mais complicada, dado que se está a reduzir a atenção e a prática de princípios e valores importantes para uma boa convivência social”.
Quem não conhece o seu currículo podia facilmente confundi-lo com um militar, pelo método e aprumo, pela disciplina e rigor, mas nega-me essa possibilidade talvez apenas porque a carreira militar o teria provavelmente impedido de concluir uma licenciatura, objetivo que considerava imperativo para o seu crescimento intelectual.
De imagem arrumada, o seu límpido olhar e a voz pausada, não deixam antever que é aos fins-de-semana que sai da zona de conforto protocolar. Gosta de fazer caminhadas, ou BTT, das quais retira o prazer do convívio na natureza, sem esquecer o caiaque.
É de opinião que, se repararmos nos sinais e nos avisos das circunstâncias ou da natureza, saberemos como nos podemos guiar ou até salvaguardar, mas é preciso estar atento para interpretar tais sinais. E isso aplica-se quer na atenção aos ventos, às correntes ou marés para a segurança da navegação no oceano, como na interação com um desconhecido até quando está a conduzir, por exemplo.
Foi aos cinco anos de idade que fixou a primeira frase e que a aplicaria o resto da vida, “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti”. Por vezes tem de se relembrar dessa frase porque sentimentos básicos e primários traem estes princípios. “Às vezes no trânsito não tenho pacifismo algum, uma vez na autoestrada perdi a calma por causa de um carro em excesso de velocidade a incomodar-me durante uma manobra de ultrapassagem. Depois de lhe dar a passagem fiz-lhe o mesmo. O outro condutor ficou transtornado, mas aprendi uma lição com o incidente, até porque podia ter corrido muito mal, uma vez que o ser humano pode-se tornar de súbito um animal descontrolado”.
Lição bem aprendida pois passado muito pouco tempo volta a ser incomodado numa ultrapassagem por um condutor intempestivo; “quis muito reagir, mas controlei-me e ainda bem, porque dentro de uma das viaturas do grupo que me ultrapassou viajava o senhor Presidente da República (na altura o Prof. Aníbal Cavaco Silva), o qual ia precisamente a caminho do funeral do falecido pai, pelo que aquele excesso até se poderia compreender melhor na ótica do profissional que ia a conduzir a viatura”.
Se fizermos uma viagem pelo tempo foi há vinte anos que teve a experiência que mais o marcou profissionalmente - a Expo’98. “Era um ambiente fantástico porque se trabalhava desmesuradamente e faziam-se mesmo muitas diretas, mas compensava por tudo aquilo que se vivia no local de trabalho. As pessoas eram avaliadas pelo seu mérito, com tal equidade, que eram promovidas se realmente o merecessem”. Mas foi talvez um caso atípico, no qual Portugal queria possivelmente demonstrar que estava à altura de um evento internacional como este, cumprindo prazos e traçando metas eficazes, assimilando e aprendendo com outras culturas muito diferentes. A sua formação em Relações Internacionais serviu que nem uma luva para gerir as diversas questões de diplomacia a que estava quotidianamente sujeito.
Durante um período em que esteve no desemprego, respondeu a um concurso para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, pois estava convicto que se fosse avaliado pela sua experiência anterior, não seria difícil ser aceite para o cargo. Sabia que, mais do que o emprego, necessitava de combater uma inatividade profissional que detesta e que lhe abalava a autoestima.
Diz o provérbio popular que “não há mal que não dê em fartura”. Quando finalmente terminou o longo período concursal e se veio a tornar no candidato selecionado, recebeu outra resposta positiva, entendeu-a como aliciante, mas optou antes pela FMUL por um princípio de atuação que tem consigo e com os outros, uma vez que tinha sido a primeira resposta positiva que tinha recebido ao fim de longos meses de “travessia no Deserto” e por essa razão acreditou que devia essa lealdade à entidade que o havia acolhido em primeiro lugar.
Apesar de estar hoje integrado no funcionalismo público e de ter um horário fixo de trabalho, nem sempre tem hora marcada para sair, consoante o volume de trabalho ou a imposição do ritmo das urgências que recebe, pelo que abdica do seu tempo livre e fica “até mais tarde, para tentar garantir que as coisas acontecem nos prazos previstos”.
Apesar do empenho que lhe é inerente, fala da necessidade de renovação em certas equipas de trabalho, atualmente com evidente défice de colaboradores e reflete; “espero que no futuro próximo a Reitoria permita à Faculdade dar a mesma oportunidade de trabalho a novos colaboradores que me deu em tempos, dotando da tão ambicionada mão-de-obra, os serviços atualmente com maiores carências de recursos humanos e proporcionando dessa forma emprego, assim como alívio nalgum volume de trabalho que se vai pontualmente acumulando neste ou naquele serviço”.
Talvez a falta de tempo para si tenha pesado bastante num dos pratos da balança, particularmente quando teve que decidir entre a continuidade da sua participação nos inúmeros grupos de trabalho em que foi integrado e a consequência dessa dedicação extra, na disponibilidade para a sua vida pessoal. A decisão não foi fácil e obrigando-o a abdicar da colaboração em várias equipas que integrava de alma-e-coração, como aconteceu com a sua recente saída do projeto “Faculdade de Ajudar”.
Num outro equilíbrio, entre o coração e o método, fala também dos estudantes que são o alvo das suas preocupações e é a eles que dedica o seu empenho maior - “devemos ser agentes facilitadores, porque exigente já é a sobrecarga de esforço e de estudo que o Mestrado Integrado em Medicina impõe”. Ainda assim não esquece a instituição que o acolheu quando afirma que “outro grande dever é zelarmos sempre pelo nome da Instituição mesmo que algo não corra tão bem. Prefiro trabalhar umas horas a mais, mesmo se não conseguir compensá-las com o merecido descanso. Tenho consciência que é muito importante que a FMUL fique bem classificada nas avaliações ou na imagem que passa para a opinião pública, sendo que isso implica também oferecer uma boa qualidade de serviço, o que, em última análise, também beneficiará todos que a integram”.
Apesar do cuidado e carinho que tem pelos estudantes, não entende a forma como hoje em dia as aulas teóricas são pouco valorizadas. “Nas aulas de presença obrigatória os alunos têm de estar presentes em dois terços das mesmas, sob pena de não obterem a devida frequência, mas nas que não são de presença obrigatória há por vezes um número tão reduzido de presentes, que até se poderia pensar que houve algum equívoco na localização da aula. Se me perguntares a razão para este fenómeno, as respostas que tenho para dar são muito pessoais. A primeira razão diria que pode estar relacionada com a coincidência de exames e avaliações que decorrerem em simultâneo com o período das aulas e isso é particularmente visível nas aulas teóricas do final do Semestre. Trazer alunos para aulas facultativas, quando precisamente os mesmos estão a ser requisitados, nessa mesma semana, para avaliações… é contribuir para um grande abstencionismo. Este é um exemplo de uma explicação logística, mas outras podem-se justificar noutros tipos de argumentos, os quais vão desde a forma como um docente é ou não apelativo, como comunica o seu saber ou até como atualmente se potenciam as possibilidades tecnológicas e o acesso à informação considerada relevante para a avaliação de conhecimentos.
Mas há que realçar que noto diferenças abismais, no comportamento dos alunos da minha geração em relação aos atuais. Mas nem tudo é mau. Se tivéssemos tido o acesso rápido à informação que hoje se tem, as minhas classificações seriam certamente muito superiores e a aprendizagem mais fácil. É importante realçar o apoio fantástico que dão as bibliotecas atuais, pois não foi assim há tanto tempo atrás que para se encontrar um documento era preciso ir à sua procura numas fichas em cartolina e só depois de se consultar determinada informação é que nós podíamos decidir se o requisitávamos. Depois era necessário esperar que esse livro estivesse disponível e só após o termos na mão é que ficávamos com a noção se o mesmo era realmente útil, até porque não podíamos manter aquele documento cativo por muito tempo. Repara no trabalho incrível que a nossa equipa da Biblioteca faz na gestão e divulgação da informação, apesar da intrínseca evolução tecnológica”.
Do conceito de fast food talvez se tenha passado para um fast learning que deu tanta matéria pronta a consumir que fez com que os alunos questionassem menos as coisas.
O progresso tem coisas positivas e negativas. A tendinite que hoje o incomoda, por passar demasiado tempo a trabalhar com o computador, leva-o a recordar-se dos tempos em que o seu ZX Spectrum fazia furor, mas não servia mais do que ferramenta lúdica naquela altura.
Estando o seu posto de trabalho situado num lugar visível, mal se entra no Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública, acredita que a linguagem corporal causa um bom ou mau impacto no outro. “Entram aqui todo o tipo de pessoas, a maioria delas por equívoco uma vez que na realidade procuram serviços no Hospital (Santa Maria está mesmo num bloco de edifícios em frente) ou no IMM, mostrando-nos de imediato os exames médicos ou as requisições, sempre com um pedido de auxílio que não podemos recusar, apesar do impacto negativo que essas frequentes interrupções têm nas nossas tarefas. Atender estas pessoas e encaminhá-las, também é uma forma de ajudar e de aprender a comunicar”.
Poucas coisas o tiram do sério, mas a intolerância e a sobranceria fazem com que mude de expressão e de cor. Considera que não são as hierarquias ou o que apregoam as religiões praticadas que definem realmente quem as pessoas são, mas sim as condutas que lhes são intrínsecas e que se manifestam nas ações do quotidiano. Das recordações dos tempos de miúdo em que o cavalheirismo estimulava a cedência de um lugar sentado a uma senhora, comenta que cada vez mais vivemos momentos de apreensividade e alerta, sobretudo nos momentos de crise.
Lamenta nem sempre aprender uma lição à primeira e quando repete um erro fica irritado. “O erro de não ponderar devidamente o grau do risco envolvido é o que mais me irrita. É como quando sabes que te vais magoar e mesmo assim arriscas, na esperança de que desta vez corra bem”. Ingenuidade ou talvez obstinação de achar que pode e deve mudar o rumo do mundo, é sobretudo isso que o faz repetir alguns erros que antevê terem alguma possibilidade de um desfecho não desejado.
Num destes dias dizia-me que “há uma grande diferença entre apenas olhar ou ter capacidade para ver”. O Miguel vê. E por isso é tão obstinado em querer mudar o rumo das coisas, porque sabe que, só assim, talvez algo possa melhorar.
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Joana Sousa
Equipa Editorial