Reportagem / Perfil
Professor Miguel Castanho - Entrevista
size="10"
Miguel Castanho, natural de Santarém, licenciou-se em Bioquímica pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) em 1990. Doutorou-se em Biofísica Molecular pelo Instituto Superior Técnico, em 1993, aos 26 anos.
Detentor de um curriculum vastíssimo nas áreas do Ensino e da Investigação, destaca-se ainda a subdireção da FMUL (2011-2016) e a Vice – Presidência da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) (Fevereiro 2016 – Setembro 2017), cargos que aceitou por considerar “ser necessário uma pessoa desafiar-se quando chamado a maiores responsabilidades”.
Atualmente mantém-se como Professor Catedrático no Instituto de Bioquímica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, líder de uma Equipa de Investigação no iMM - o MCastanho Lab. – membro do Conselho de Escola da FMUL e membro do Conselho Editorial da News@FMUL.
Foi agraciado com vários prémios e distinções mas, em confidência, destaca e aponta com maior estima os prémios atribuídos pelos alunos (os Golden Harrys de Melhor Professor do Ano na FMUL).
Nos dias de hoje continuamos a ser constantemente advertidos pelos especialistas sobre o uso excessivo de antibióticos: foi este o mote que nos levou a entrevistar o Professor Miguel Castanho mas, na verdade, o que começou por ser uma entrevista com um propósito muito objetivo rapidamente se tornou numa agradável conversa sobre o trabalho que desenvolve e o percurso que tem vindo a delinear na sua vida profissional nos últimos anos.
size="20"
Professor, sabemos que o primeiro antibiótico foi descoberto na década 30 e que, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, ajudou a salvar inúmeras vidas. No entanto, a sua constante presença no dia-a-dia está agora a torná-lo no inimigo número um?
Não é linear! A descoberta do antibiótico trouxe uma primeira fase que foi de euforia. Com a vacinação, aumentou o entusiasmo e o mundo passa por uma etapa em que acha que vai vencer os micróbios, vacinando-se ou tomando antibióticos. A esta época de euforia, segue-se a fase da preocupação que culmina na antecipação de cenários relativamente negros. Isto porquê? Porque, no período do entusiasmo, muitas empresas farmacêuticas deixaram de apostar na criação de novos antibióticos. As doenças infeciosas deixaram de ser tão apelativas do ponto de vista do mercado. Com a pressuposta regressão das patologias infetocontagiosas, o investimento não compensava e as agências farmacêuticas passaram a considerar mais apetecíveis as doenças crónicas e oncológicas, pois o retorno seria maior e mais duradouro.
E qual a consequência a prazo? As bactérias adaptam-se. Ao primeiro antibiótico, morrem as que são sensíveis a esse agente, mas sobra uma fração, que se multiplica, constituindo uma população bacteriana que passa a ser resistente àquele antibiótico. Este ciclo é contínuo. Na eventualidade de um segundo antibiótico, verifica-se uma nova seleção da população. Portanto, sucessivamente, as populações de micróbios vão-se tornando mais resistentes e, se não houver esta renovação de geração para geração de novos antibióticos, este equilíbrio deixa de existir. É nesse momento que estamos agora, fruto de um subinvestimento nos últimos anos em resultado da euforia que se viveu, a par da generalização de prescrição e acesso aos agentes antimicrobianos.
Atualmente estamos num ponto muito crítico porque, de facto, está a aumentar o número de mortes devidas a infeções bacterianas e há a necessidade de voltar um pouco atrás: repensar os antibióticos, repensar o mecanismo de ação e criar novas moléculas. Sobretudo, há que desenvolvê-los tendo em conta a resistência das bactérias, isto é, já não é apenas importante avaliar o grau de eficácia de um antibiótico, mas também ponderar a capacidade que a bactéria terá de desenvolver resistência contra a sua ação.
size="20"
E se essa renovação de estratégias antibacterianas não acontecer?
Algumas das projeções para o futuro são preocupantes porque apontam para o aumento da resistência por algumas estirpes destas bactérias e que podem atingir um tal nível de perigosidade a ponto de matar mais pessoas do que as doenças do foro oncológico.
Um relatório conduzido pelo economista Jim O’Neill, apresentado em maio de 2016, indica que a resistência aos antibióticos poderá vir a matar, em 2050, mais dez milhões de pessoas por ano face ao que acontece atualmente, ou seja, uma pessoa em cada três segundos.
Segundo dados do Eurobarómetro referente a conhecimentos sobre antibióticos, Portugal é um dos países europeus onde existe um maior desconhecimento sobre a sua ação: 60% dos portugueses pensam que os antibióticos atuam sobre os vírus e 50% acreditam que servem para tratar constipações e gripe. Apenas 20% dos inquiridos refere ter recebido informação nos últimos 12 meses sobre este assunto. Por isso, paralelamente, é imprescindível educar a sociedade para uma utilização adequada, informada e ponderada dos recursos.
Para piorar, temos ainda correntes anti-vacinação que agora alastram…
size="20"
Estes movimentos anti vacinação têm vindo cada vez mais a ganhar terreno…
Sim, diria que por questões não científicas para não dizer anticientíficas. Verifica-se o perpetuar de algumas convicções que são contra a maior evidência científica e que têm levado ao ressurgimento de algumas doenças que estavam praticamente erradicadas de algumas zonas do globo, nomeadamente em países com sistemas de saúde mais organizados e mais avançados. O sarampo, por exemplo, já tinha sido declarado controlado e agora aumenta de importância como um problema de saúde pública, em consequência do incumprimento dos planos de vacinação, afetando a imunidade individual e de grupo.
size="20"
Falava-me há instantes da necessidade de desenvolver novos antibióticos com a “capacidade de prever” a resistência criada pelas bactérias. Sabemos que o Professor lidera um projeto que investiga precisamente esta nova geração de fármacos. Já existe alguma novidade que nos possa colocar no caminho certo?
Que se possa dizer que estamos no caminho certo, sim, mas ainda falta muito caminho!
A ideia central no caso é focarmo-nos nas estruturas da bactéria que esta não consegue “camuflar”. Porque, na atualidade, o mecanismo de ação subjacente à maior parte dos antibióticos baseia-se na ligação a proteínas, mas as bactérias têm a capacidade de modificar essas proteínas, conferindo-lhes outra estrutura, o que dificulta a interação com as moléculas antimicrobianas. Assim, a bactéria adquire resistência.
Alterar a estrutura de proteínas é fácil para as bactérias. Existem, no entanto, outras estruturas que são comuns a muitas células uma vez que, durante o percurso de evolução, não foram encontradas alternativas para esse componente. Entre uma bactéria, uma das células mais simples, e um neurónio, uma unidade celular altamente diferenciada, existe uma grande diferença; afinal, são milhões de anos de evolução. Mas, por exemplo, a estrutura da membrana que as separa do mundo exterior é comum a ambas e baseada numa bicamada de lípidos. Este facto leva-nos a crer que, se atacarmos essa estrutura – a membrana - na bactéria, esta não conseguirá arranjar alternativa e dificilmente se adaptará. Na realidade conseguem ainda contrariar um pouco o efeito dos antibióticos que estamos a usar, mas o conceito é este. Desta forma, podemos dizer que estamos no caminho certo, visto que as bactérias dificilmente conseguirão encontrar um mecanismo de resistência rápido e eficaz, mas este é um “jogo do gato e do rato” que estamos sempre a “jogar”.
size="20"
E atualmente já existem bactérias com as quais nos devamos preocupar seriamente?
Sim, sim, existem e estão muito bem identificadas. Nós dedicamo-nos especialmente a Staphylococcus aureus e a Pseudomonas aeruginosa. As infeções multirresistentes associadas aos cuidados de saúde são um problema muito sério. E, não raras vezes, resultam, infelizmente, em morte.
Foi publicado recentemente um estudo que aponta que as doenças infectocontagiosas provocadas por bactérias e vírus ocupam o 7º lugar entre as causas de morte em Portugal, que era algo não antecipável há umas décadas atrás.
size="20"
Se lhe fosse pedido que dirigisse uma campanha de sensibilização para uso massivo de antibióticos qual seria a mensagem escolhida?
Assim de repente, é difícil, mas certamente faria um trocadilho que traduzisse a ideia de que, por vezes, a proteção é não utilizar antibiótico, ao contrário do que as pessoas intuem. Podia ser, por exemplo, “Proteja-se! Não use antibióticos!”. Mas também seria, como todos os slogans, um pouco ingrato e arriscado. Não podemos ser absolutos nem fundamentalistas. Na realidade, o problema maior não é só a prescrição e utilização excessivas de antibióticos com fins terapêuticos, mas também a presença excessiva de antimicrobianos no quotidiano (por exemplo, no detergente de lavar o chão, no pano de limpar a mesa, na pasta dos dentes).
size="20"
Como assim, Professor?
A generalização de compostos antibióticos em todo o lado vai selecionando, no seu percurso, as populações de bactérias que são resistentes a esses agentes. O problema que está em causa é matarmos as bactérias que não nos fazem mal, sobrevivendo as que são resistentes aos antibióticos, algumas das quais nocivas.
As pessoas, de um modo geral, pretendem um ambiente limpo e estéril, porque a esterilidade está, para nós, conotada com limpeza. E, por este motivo, os antibióticos estão tão universalizados, não apenas pela prescrição médica.
size="20"
O Professor lidera no iMM uma equipa de investigação que trabalha em áreas bastante distintas, sendo os antibióticos apenas uma delas; qual é o elo de ligação entre estas doenças?
Pode parecer estranho para quem vê de fora porque, enquanto doenças, são muito diferentes mas, ao nível molecular – e nós, enquanto Bioquímicos, trabalhamos ao nível das moléculas – há mecanismos comuns a todas e que são semelhantes entre si.
O que estudamos é, sobretudo, a interação entre péptidos (que são uma espécie de microproteínas) e bicamadas de lípidos, ou seja, membranas de células. Esta interação é relevante, por exemplo, quando um vírus entra numa célula. Numa primeira fase, tentamos caracterizar esse acontecimento e, depois, manipulá-lo para inibir o vírus de entrar na célula.
Quando desenvolvemos antibióticos, o que pretendemos é criar um péptido (uma dessas microproteínas) que interfira com lípidos da membrana bacteriana, provocando uma lesão. Por conseguinte, do ponto de vista molecular, são fenómenos relativamente idênticos. E o mesmo mecanismo se aplica igualmente em relação aos tumores: temos chegado à conclusão de que podemos utilizar o mesmo conceito com o objetivo de atacar a superfície das células tumorais.
size="20"
Pode dizer que a sua equipa declara guerra não só as bactérias mas também aos vírus?
Sim, e às células tumorais também. É isso que nos faz correr. Os brasileiros têm uma comparação muito boa para dizer que uma determinada tarefa é árdua mas ao mesmo tempo proveitosa - dizem: “É que nem rapadura: é doce mas não é mole, não”. A rapadura é um doce que se assemelha a um bloco de açúcar.
A nossa atividade é doce, mas não é mole, não; é que nem rapadura!
size="20"
Foi Subdiretor da nossa Faculdade; tem algum momento especial que guarda? Fale-nos um pouco dessa altura…
Entrei na FMUL em 2007 e integrei a Direção poucos anos depois.
A primeira reação foi de surpresa ao convite do Professor Fernandes e Fernandes. Após a jubilação do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro, que era o Subdiretor, o Professor Fernandes e Fernandes convidou-me e eu, como gosto de desafios que valem a pena, aceitei., apesar de antever um trabalho árduo porque já tinha sido Presidente do Conselho Científico na Faculdade de Ciências e estava ciente da exigência do desempenho de cargos em Órgãos de Governo.
A primeira noção que tive, quando assumi a Subdireção, foi a de que a FMUL é mais homogénea e melhor organizada, com uma estrutura orgânica administrativa mais alicerçada, do que a maior parte das demais faculdades. Também presta um apoio muito maior à investigação, em comparação com outras faculdades. É uma Instituição de Ensino Superior que contribui de forma decisiva para a investigação que é desenvolvida no seu universo: enquanto, na maior parte dos casos, as faculdades recebem financiamento da atividade de investigação para compensação de gastos gerais de instalação e infraestrutura, a FMUL, pelo contrário, investe grandemente na investigação científica nos centros e institutos de investigação a si ligados, assumindo grande fatia dos custos de gastos gerais com instalações e infraestrutura.
A par disso, fiquei muito impressionado também com a capacidade que os alunos têm de dinamizar eventos e atividades extracurriculares, que demonstram o seu empenho cultural, social e humanitário, o que não é comum. Ao contrário daquilo que a maior parte das pessoas pensa, os alunos de medicina não se distinguem apenas porque são academicamente bem-sucedidos, mas, em grande medida, por serem também mais metódicos, além de cultural e socialmente mais empenhados. É o que mais os distingue. Estas foram as boas surpresas que tive.
Por outro lado, em sentido contrário, julgo que a FMUL é um sistema um pouco fechado sobre si e, em meu entender ganharia se estivesse mais atenta a boas práticas adotadas por outras faculdades e se tivesse uma cultura de maior abertura.
size="20"
E que momentos guarda em particular?
Guardo… Olhe, está ali a fotografia, a despedida do Professor Fernandes e Fernandes, no último dia do seu mandato. Creio que foi um momento de enorme sensibilização e mobilização, porque foi uma sessão surpresa, que teve uma adesão massiva e espontânea de todos. Estava lá praticamente todo o pessoal administrativo da Faculdade.
[su_custom_gallery source="media: 21924" limit="32" link="lightbox" target="blank" width="550" height="410"]
Guardo ainda muitos diálogos com as Comissões de Curso para aperfeiçoamento do ensino e melhoria do Mestrado Integrado em Medicina. Os primeiros anos da Reforma Curricular foram de muito empenho no reconhecimento e retificação de várias lacunas. Os alunos das sucessivas Comissões de Curso foram fantásticos: críticos mas construtivos. Um exemplo para todos!
O ano letivo de 2007/08 e os anos subsequentes constituíram o período de consolidação da reestruturação curricular e, obviamente, foi o Prof. Fernandes e Fernandes que liderou todo o processo. Quando eu integrei a Direção, estávamos ainda em fase de implementação e concretização prática do processo, e era nitidamente o momento de dotar a FMUL de um ensino moderno; foi uma espécie de salto quântico para a modernidade, de extrema importância e muita coragem, e orgulho-me muito de ter acompanhado o Professor Fernandes e Fernandes, que foi, de facto, o grande mentor desta mudança de paradigma.
Eu ainda desempenhei o cargo de Subdiretor com o atual Diretor, o Professor Fausto Pinto, que trouxe o seu cunho pessoal à Direção e está a prosseguir este percurso rumo à modernização, consolidando-o com sucesso.
Recordo-me perfeitamente de que a reestruturação do ensino da FMUL foi, numa primeira fase, muito desvalorizada pelas outras faculdades mas, posteriormente, adotada por todas as instituições, uma a uma. Foi muito curioso o percurso das demais faculdades, acabando por seguir o mesmo caminho mas todas com um hiato em relação à FMUL. De entre as faculdades mais antigas e com muita experiência, a Faculdade de Medicina foi a primeira a abraçar um ensino integrado e moderno.
Tive ainda o prazer de acompanhar o pioneirismo da constituição do Centro Académico de Medicina de Lisboa, que começou também por iniciativa do Professor Fernandes e Fernandes, com vários apoios pessoais e institucionais. Mais uma vez, este conceito começou por ser desvalorizado por outras Escolas mas, uma a uma, todas as faculdades têm vindo a integrar os denominados Centros Académicos Clínicos. A FMUL começou muitos anos à frente e todo este processo foi implementado de forma particularmente metódica e intencional, seguindo um plano que passou por várias fases e tem trilhado o seu caminho, admito que eventualmente mais lento do que aquilo que todos gostaríamos, mas de forma absolutamente precursora.
Do ponto de vista administrativo, foram também implementadas várias medidas que visaram a gestão de espaço e a clarificação de alguns procedimentos que eu considero que contribuíram bastante para a transparência e visibilidade da faculdade. Hoje, a FMUL é muito mais identificável com a sua investigação do que era antes.
Em suma, estou muito satisfeito e tranquilo mas, claramente, ganhei muitos cabelos brancos na Direção da Faculdade; não é fácil, é uma posição extremamente difícil e absorvente.
Numa fase posterior, assumi a Vice-Presidência da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, a FCT, que também teve o seu grau de exigência.
size="20"
Também guarda bons momentos da FCT?
Guardo! Aliás a FCT, em si, é uma instituição onde é mais fácil de trabalhar do que eu pensava, em grande parte pela qualidade das pessoas que lá estão. As maiores dificuldades não se prendem com a própria Fundação, mas devem-se à interface da FCT com várias instituições, algumas delas bastante difíceis. No momento atual, devido à perda de centralidade e autonomia da FCT, o problema agrava-se. Esta questão prende-se com a forma como são geridos os fluxos de financiamento, a disseminação de atribuições e o diluir de responsabilidades na gestão da Ciência em Portugal, que fazem a FCT perder peso e independência. Mas esta já era matéria para outra entrevista. [NR. Risos e um sorriso final]
size="40"
Cristina Bastos
Equipa Editorial