Reportagem / Perfil
Maria do Carmo Fonseca – A Mulher do Leme
Os livros de História de Portugal ensinaram-nos sobre a bravura dos portugueses que resolveram desbravar mares e abrir ao nosso pequeno mundo o mundo inteiro. Volvidos seis séculos, os portugueses voltam a mostrar a sua sede de conquistar o que ainda ninguém imaginou. Os novos descobrimentos são os da Ciência. E os descobridores convivem entre nós e podem vir a fazer parte dos próximos manuais.
Chama-se Maria do Carmo e foi o rosto da Ciência, numa campanha desenvolvida pelo Turismo de Portugal em 2007 e que pretendia mostrar que Portugal tem os melhores dos melhores em cada área. Os cartazes pintaram Lisboa e Porto com o seu rosto e colocaram-na ao lado de Mourinho, Ronaldo, Joana Vasconcelos, ou Mariza, para mostrar que o Sul tem prestígio por ter estas pessoas ao leme.
Tinha acabado de ganhar o Prémio Ciência da Gulbenkian e esse foi o motivo para ser um dos rostos do país, mas essa foi apenas uma partícula de tudo aquilo que foi somando e que hoje a faz ser das investigadoras mais aclamadas e a mentora que muitos procuram para depois saberem voar por si.
Sempre teve uma vontade muito própria, nunca foram as regras dos outros que a regeram. Escolheu Medicina não porque o pai mandou, mas porque lhe deu os argumentos profissionais certos. Completou o curso com a melhor nota do ano, mas decidiu que não ia ser médica e fez um pacto com a investigação científica, casaria com ela para sempre e aperfeiçoaria o conhecimento na área da Biologia Molecular. Aprendeu a tratar o código genético por tu, mas com um respeito de quem sabe que terá sempre mais e mais caminho para abrir. Hoje dá aulas de Biologia Celular aos alunos do 1º ano e Oncobiologia aos que já alcançaram o 3º. É a eleita dos alunos como a melhor professora, pelo grau de exigência que lhes incute.
Galardoada com a Comenda Ordem de Sant’iago de Espada Ilustre Carreira (2001), Prémio Pessoa (2010), Prémio Femina por mérito na Ciência (2011), Medalha de Ouro no Ministério da Saúde (2012) e Prémio D. Antónia Ferreira para mulheres empreendedoras (2013), diz que, ainda assim, ter construído o iMM foi para ela a maior recompensa cientifica de todas. Atualmente Presidente do iMM, reforça que é aqui que fica o seu legado.
Recentemente conduziu, com Bruno de Jesus, uma investigação no seu laboratório, que culminou na descoberta de uma molécula de ácido ribonucleico (RNA) que é muito particular e que, quando manipulada não apenas interrompe o envelhecimento como leva as células velhas a comportarem-se como novas. A consequência deste passo é que o envelhecimento é reversível.
Mulher de disciplina e método, desafia-se constantemente no desporto, o que a obriga a vencer a inércia, diz. Planeia com detalhe o futuro e pensa na sua vida a partir do dia que tenha de se jubilar, mas garante não ficar parada. Não quis ter filhos, mas, na sua asa protetora, acolhe os investigadores que persistem em segui-la. Considera que a solidão fará parte da vida como consequência das suas escolhas e a acompanha em cada tomada de decisão.
Quem acaba de a conhecer pode confundir a sua timidez e feitio reservado com distância e frieza, mas a partir do momento em que nos sentamos frente a frente, esquecemos os 59 sólidos anos da mulher que parece ser menina, cujos olhos brilham quando fala nas suas paixões.
Antes de a conhecer, disseram-me para ser objetiva e precisa nas perguntas e percebi que subjacente a isso estava o recado “Joana, não vás para lá falar de amor”, mas foi de amor e paixão que a Professora Maria do Carmo Fonseca me falou quando pedi que refletisse sobre o seu caminho.
size="20"
Resolvi não seguir um tempo cronológico com a Professora… O primeiro tema que se impõe é sobre o papel da mulher na sociedade. Numa entrevista que deu em tempos, dizia que não temos mais mulheres líderes porque elas optam muitas vezes por assumir o papel de mãe. O que não as torna menores, apenas fizeram uma escolha. A Professora decidiu claramente ser líder.
A questão de ser mãe nunca se colocou porque a minha grande paixão é científica e pedagógica. Eu não consigo viver uma sem a outra, seria muito difícil para mim deixar de dar aulas, ou passar somente a dar aulas. A junção das duas é que faz sentido, dar aulas não é debitar algo que vem num livro, é interpretar o conhecimento. É, por isso, fundamental a experiencia da investigação e como funciona o processo científico. Esta é a grande paixão da minha vida. Não daria, portanto, para ser uma boa mãe, a não ser que tivesse uma enorme ajuda. Precisaria muito de tempo e quando se quer estar no topo da Ciência tem de se dedicar muitas horas, o tempo não dá para mais nada. Tenho assistido e partilhado experiências com muitas mulheres, em que cada uma delas fez a sua escolha e não conheço nenhuma que se sinta prejudicada por ter dedicado mais tempo à vida familiar, as pessoas escolhem livremente. É um facto que a maioria das mulheres tem uma aptidão fisiológica para escolher o componente “tomar conta da família”.
size="20"
Será uma questão biológica?
Há, sim, uma explicação biológica. A expressão genética num ambiente feminino ou masculino é diferente. Os sinais emitidos são diferentes. Esta coisa de sermos iguais não faz sentido do ponto de vista biológico, devemos ter acesso às mesmas oportunidades, mas que o cérebro feminino e o masculino pensam de maneira diferente, isso está cientificamente demonstrado.
Eu fiz a minha formação pós-doutoral em Heidelberg (cidade alemã), no Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL). Na Alemanha deparei-me com uma sociedade que impõe muita pressão nas mulheres para ficarem em casa quando são mães. Sabia que a Alemanha é um dos países com menos percentagem de mulheres a ocupar lugares de topo nas universidades? A maioria das mulheres alemãs, quando tem filhos, passa a trabalhar apenas em tempo parcial. Naturalmente este tipo de regime é incompatível com carreiras profissionais de liderança. Conheço uma jovem cientista portuguesa a trabalhar na Alemanha, com filhos, que optou pela cidade de Berlim, precisamente, porque aqui os infantários funcionam durante toda a tarde. Nas outras cidades o habitual é as crianças passarem a tarde em casa, com as mães.
size="20"
Sempre encarou as dificuldades como desafios para se ser ainda melhor e mais criativo e diz que é precisamente aí que a Ciência se reinventa.
Eu fui sentindo vários desafios ao longo da minha vida. O primeiro foi escolher o curso. Eu já estava apaixonada pela Ciência, mas não sabia que área queria. Escolhi Medicina por influência do meu pai, que me deu excelentes argumentos sobre as saídas profissionais. Quando entrei para Medicina, rapidamente comecei a ter acesso ao laboratório e fui confrontada com um grande cientista, David Ferreira, que tinha o seu laboratório de investigação na Gulbenkian. Naquela altura não havia condições para se fazer investigação na Faculdade. Ao ser exposta à realidade do laboratório disse: “uau, é mesmo isto que eu quero o resto da vida” [os olhos brilham]. À medida que o tempo foi passando e eu me ia aproximando do doutoramento, queria mais, porque o laboratório já não me chegava. Tinha que ir lá fora ver como funcionavam os laboratórios. Logo após o doutoramento fui para fora, para Heidelberg. Depois, o próximo desafio era saber se seria capaz de ser group leader, ou seja, deixar de ter um mentor em laboratório e passar a ser eu a mentora de outros. Foi neste segundo grande desafio que optei por voltar para Portugal. O desafio era em duplicado, porque era group leader e ser independente, em Portugal. Na altura o país estava a começar a ter as condições necessárias de financiamento, o que foi bom.
Veio outro desafio a seguir e tinha a ver com a solidão que sentia em Portugal de não poder ser desafiada por outros investigadores. Sabe, em Heidelberg, aquilo era uma comunidade de vários group leaders, vários cientistas, cada um a trabalhar no seu projeto, cada um com o seu grupo, mas todos a falarem uns com os outros e a trocar ideias. Eu aqui estava muito sozinha. Era só eu e mais um ou dois. Foi aí que pensei criar o iMM. Embarquei no desafio porque precisava de companhia e de ter outros cientistas com quem falar.
size="20"
Como é que se sai dessa ideia embrionária e de repente temos um pólo científico fortíssimo e dos mais prestigiantes do país?
[Pensa um pouco] Eu só tinha de fazer as coisas certas porque tinha experiência sobre como se monta um instituto, pela minha experiencia no EMBL – European Molecular Biology Laboratory (equivalente ao Parlamento Europeu da Ciência). Quando sai de lá fui nomeada pelo governo português como a representante portuguesa naquela estrutura europeia. Voltei do Conselho, em 1993 e nos 10 anos seguintes, participava nas reuniões, que era onde se discutia a política cientifica e de como aquele laboratório europeu funcionava. Aí aprendi sobre estratégia e como se deve montar um centro de Ciência. O que eu fiz foi aproveitar os ensinamentos e conhecimentos que tinha, pedi muito advice, pedi para ter mentores para a política científica e deram-me conselhos absolutamente fundamentais e ajudaram-me a montar o iMM, junto com o Professor João Lobo Antunes e o resultado foi este.
size="20"
Tem quantos investigadores agora?
Investigadores que trabalham aqui, o número está próximo dos 600. São 37 grupos independentes.
size="20"
Para falarmos do iMM, falamos de João Lobo Antunes. Ouvi o seu discurso emocionado, aquando a atribuição do nome JLA ao Grande Auditório e ao próprio iMM. Dizia que “todos falam mal, criticam, mas ninguém faz diferente”. Isto é cultural?
Não, acho que não. Eu tenho a experiência de lidar com muitos países e aqui acho que temos uma série de escolhos que nos condicionam, é verdade, mas apesar de não serem o mesmo tipo de escolhos, nos outros países também há. É mais uma questão da natureza humana. É preciso ser persistente e aguentar com muitos “nãos” e muitas negativas e a pessoa pensa que o melhor é desistir, porque é mais fácil desistir. É preciso ser muito persistente e realmente querer muito. As coisas têm de nos fazer muito sentido.
size="20"
A perseverança era partilhada pelos dois?
Exatamente. E éramos muito complementares porque há determinado tipo de influência social que o Professor Lobo Antunes tinha e que eu não podia ter de maneira nenhuma, por outro lado eu tinha mais a capacidade operacional, de montar as peças no dia-a-dia. Mas acho que foi a união perfeita. Nós no iMM fizemos, desde início, uma estrutura em que havia a Direção Executiva, mais envolvida nas decisões estratégicas e científicas e o Presidente, mais com as relações institucionais. Desde o início que fui a Diretora Executiva e o Prof. Lobo Antunes o Presidente. O Professor podia ter continuado Presidente depois de se jubilar, nós discutimos muito isso, ele achava que o teste, o desafio seguinte que o iMM tinha pela frente, era ser capaz de existir sem o João Lobo Antunes e sem a Carmo. E era melhor nós fazermos este teste enquanto cá estivéssemos e pudéssemos intervir se alguma coisa fosse catastrófica. Ele saiu de Presidente, eu passei a ocupar o lugar de Presidente e deixei o lugar de Diretor Executivo. Eu já estava a criar vícios, tinha criado o iMM na fase de início, mas o iMM em 2014 já era um adolescente e a maneira como se acompanha um adolescente tem de ser diferente da maneira que se acompanha uma criança, um bebé. E eu estava demasiado agarrada à estratégia que tinha usado para nesse momento fazer aquela viragem. Por outro lado, também estava mais cansada, porque com o tempo perdemos a capacidade de ouvir tantos “nãos” todos os dias e ter de ir lutar no dia seguinte . Era preciso uma direção executiva fresca e com novas ideias.
size="20"
Há aqui algum exercício de altruísmo. Porque se fosse só ego, não largava as suas coisas…
Eu não considero altruísta porque vi o iMM a passar pelos desafios, vi passar as etapas todas.
size="20"
Já falamos em perseverança, mas falamos também em resiliência que, não só define a cientista, como também a Maria do Carmo desportista. Sofre uma queda aparatosa aos 20 anos que poderia ter sido fatal. Ainda assim e depois disso, o desporto continuou a fazer parte da sua vida. O desafio pelo limite é uma forma de provar a si própria alguma coisa?
Não, não tinha de me provar nada. Era simplesmente por paixão. A mesma recompensa que eu retiro do meu investimento profissional, tiro de quando estou a tentar superar um desporto e estou sempre a tentar superar-me. O meu desporto atual é a natação, faço provas de águas abertas [Ri e comenta que me está a dar uma informação em primeira mão]. Nado por distância, mas demoro muito tempo porque vou devagar, nado muito mal e demoro a chegar [Ri muito]. Tenho de ser capaz. De treinar cada vez mais, para nadar melhor.
size="20"
É engraçado, passa sempre a ideia que pode ser sempre melhor e que gosta de olhar sempre para os melhores. A ambição afinal é saudável…
Sim, sem dúvida… Não tem nada a ver com a inveja. Olhar para quem faz melhor é uma inspiração.
size="20"
Também a inspira trabalhar com os mais novos…
Não foi em vão que, quando entrou aqui, eu fui chamar o Bruno [Bruno de Jesus foi o investigador com quem desenvolveu a teria da reversibilidade do envelhecimento e fizemos uma entrevista conjunta]. Queria que o conhecesse.
Os mais novos estão no pico da criatividade. Isso está demonstrado cientificamente, o nosso cérebro perde criatividade e fica mais acomodado. Eu sinto isso para mim, cada vez que tenho uma tarefa nova para resolver, custa-me muito mais, à medida que o tempo vai passando. Perco a maleabilidade do que é novo, é mais fácil fazer a repetição. Uma coisa tão simples como a atualização que o nosso computador faz, nós já tínhamos uma rotina de ir ali carregar naquele botão e agora já não é ali que se clica. Arrrghhh [ri]
À medida que um cientista vai envelhecendo, faz cada vez mais o papel de mentor e cada vez menos o papel de ator. E eu fico feliz de me ver no papel de mentor. Quero oferecer aos mais novos o que me foi oferecido a mim, quando vim para a Faculdade e me deixaram ir para o laboratório e fazer experiências. Quero ampliar o leque de oportunidades aos mais novos.
size="20"
Passa pela cabeça ganhar um Prémio Nobel?
Não, mas repare, o Prémio Nobel é um reconhecimento que é o sonho de qualquer cientista que faz uma descoberta que revolucionou a evolução do conhecimento. Mas para se ser um cientista de sucesso, não é preciso uma descoberta revolucionária, basta ter contribuído para a evolução da Ciência e eu já me sinto completamente realizada como cientista. É o dia-a-dia e as pequenas glórias e sucessos que recompensam. Mais do que as descobertas cientificas que eu fiz, essas são recompensa só minhas. O iMM é para mim a maior recompensa científica, mudou a capacidade científica de muitas mais pessoas. Ampliei o impacto, o meu legado já está cá, é o iMM. Eu sinto-me bem por deixar este legado. O iMM em Portugal faz muito mais diferença do que um iMM na Alemanha, ou Inglaterra, porque não havia, foi pioneiro. Se não fosse o iMM, grande parte destes investigadores que estão cá e que vieram e voltaram do estrangeiro, não tinham vindo.
size="20"
Disse e passo a citar: “gostava um dia de falar para uma plateia e que os olhos da plateia brilhassem como os meus já brilharam”. Mas isso já aconteceu…
Aquilo que me faz adorar falar para uma plateia é a ligação emocional que consigo estabelecer com ela. Eu já estive em plateias e ouvi coisas e pensei “uau, é isto mesmo” e conseguir fazer isso quando falo, fazer as pessoas pensar de uma maneira diferente, é o que tento fazer.
size="20"
É isso que marca tanto os alunos?
Os alunos têm gozo nas aulas porque sentem isso.
size="20"
Mas eles também adoram o seu rigor e a exigência.
Tem de ser, senão não se atingem os objetivos. O objetivo não pode ser divertir os alunos e deixá-los muito bem dispostos. O papel do professor não é fazer passar o aluno uma hora bem passada, é mais do que isso.
size="20"
Ainda tem consigo os seus pais?
Estão velhinhos, mas ainda os tenho.
size="20"
A mãe foi professora primária e abdicou da sua carreira para tomar conta de si, a sua única filha. A mesma mãe que não a foi visitar ao hospital no dia que sofre da queda aparatosa e ficou muito mal. Isso magoou-a?
Magoou-me muito, mas ela tinha razão porque queria dizer-me “não tens o direito de sair da minha vida”. Ainda hoje a minha mãe fala desse susto, mas hoje os papéis inverteram-se e sou mais eu a tomar conta dela… Quando chegar à idade da minha mãe, não terei uma filha que me ajudará, nem tomará conta de mim.
size="20"
Como é que uma mulher tão ativa olha para a frente e vê o seu próprio abrandamento?
Olho com rigor e a disciplina de que tem de ficar tudo bem preparado, até porque não vai haver ninguém a preparar as coisas por mim, portanto eu tenho que acautelar essa perda progressiva de autonomia que vai chegar mais cedo ou mais tarde, mas vai chegar. Eu tenho de chegar à nova fase mais dependente da minha vida, organizada e quero ser eu a organizá-la.
size="20"
A solidão assusta-a?
Sim, porque viver em Ciência e viver a ser professora, é estar sempre com os outros. Eu gosto de estar sozinha quando estou a desenvolver um trabalho, mas depois tenho que mostrar esse trabalho aos outros e esse é um dos aspetos bons. No dia em que fizer 70 anos e tiver de me reformar, vou ter ainda muito que fazer. Posso participar em muitas comissões consultivas, ligadas à organização da Ciência, posso ser advisor. Já tenho as minhas inspirações de pessoas já jubiladas e que mantêm essas atividades.
size="10"
A nossa entrevista acabou com a sensação que se fica sempre incompleta quando tentamos falar sobre a vida de alguém assim. Não disse à Professora, mas eu tenho uma filha chamada Maria do Carmo e tal como estudei os descobrimentos portugueses, a minha filha também estudará. E talvez, no tempo dela, já venham a falar deste corajoso e novo grupo de descobridores. No leme está sempre um comandante, com ou sem Prémio Nobel. Quem sabe o Comandante deste navio português da Ciência tenha o nome de Maria do Carmo Fonseca. Quem sabe…
size="10"
size="30"
Joana Sousa
Equipa Editorial