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A dúvida que abre novos caminhos à Psiquiatria – o olhar de Bernardo Costa Neves
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“A arte de curar a alma” é a palavra que deriva do grego e define a Psiquiatria. O cérebro é o órgão que transporta a “alma”, o mesmo que dizer a mente, essa que muitos tentam ainda defender que pode ser exterior ao corpo, saindo dele e continuando a ter vida por si. Mas a consciência e aquilo que entendemos ser intuição, criatividade ou uma ideia de impulso, vem tudo de uma grande equação química e que faz parte da matéria que está dentro da nossa cabeça.
Mas será a Psiquiatria vista por todos os seus especialistas da mesma forma? A prova que o tempo nos faz duvidar das convicções fundamentadas no passado é Bernardo Costa Neves que chegou à conclusão, durante a sua especialização nesta área, que a Psiquiatria, como está, não tem resposta para muitos dos problemas com que os seus doentes se deparavam.
“Interessou-me sempre tentar perceber como é que o cérebro funcionava; compreender como surgem os nossos comportamentos e os nossos pensamentos. Durante muitos anos, psicólogos e filósofos questionaram-se sobre se a mente estaria separada do cérebro. Hoje em dia é consensualmente aceite que a mente e o cérebro são entidades indissociáveis. Podemos usar a analogia de um computador, em que a mente é a informação (o software) e o cérebro a matéria (o hardware). O meu interesse, desde muito cedo, foi esse, de perceber a relação mente-cérebro.”
Recorda que as doenças mentais também são físicas, mas apesar disso quando entrou para Medicina não pensou que iria seguir a Psiquiatria. No primeiro contacto que estabeleceu com as Neurociências, achou de início que seria neurologista, ou talvez neurocirurgião, mas depois dos primeiros 3 anos teóricos de curso contactou com a clínica e apesar de continuar a ser um admirador da Neurologia, percebeu que “ela se focava mais nas manifestações motoras e sensitivas e menos nas manifestações comportamentais das doenças cerebrais. Mas o que me fascinava mais era o comportamento e as emoções, em si, e não outras funções do cérebro. Interessava-me mais perceber, por exemplo, o que faz com que alguém se emocione quando aprecia um quadro do que perceber como é que o quadro, em si, é representado na mente.
Olhar para as pessoas e tentar interpretar os seus comportamentos levou-o a perceber que a sociedade não está preparada para entender os doentes mentais. “As pessoas com perturbações mentais sofrem muito e na nossa sociedade ainda há muitos preconceitos em relação à Psiquiatria. Qualquer pessoa já passou por momentos de stress intenso, quando estudou para um exame final, quando se preparou para uma entrevista de trabalho ou enquanto esperou ansiosamente pelo resultado de um exame médico. Existem fatores de stress mais intensos que outros: a morte de um familiar é um dos fatores mais intensos. A altura da vida em que os fatores de stress surgem também influencia o impacto que vão ter na saúde mental da pessoa. Por exemplo, a negligência e o abuso na infância são um dos principais preditores de perturbação mental na idade adulta. A capacidade que cada pessoa tem para resistir a estes fatores ou “resiliência” varia de indivíduo para indivíduo. Os relacionamentos sociais são um dos ingredientes mais importantes para um cérebro saudável. A genética da pessoa também confere maior suscetibilidade ou maior proteção contra estes fatores ambientais. A esquizofrenia é uma das doenças mentais com maior influência genética. Se houver um familiar em primeiro grau com a doença, o risco de a desenvolver aumenta. Se o familiar afetado for um irmão gémeo monozigótico (“verdadeiro”) esse risco é de 50%. No final, o que determina se uma pessoa desenvolve ou não doença é a combinação de todos estes fatores. Eu penso que todos conseguiríamos empatizar e ter mais compaixão pelos doentes psiquiátricos se pensarmos que muitos destes fatores fogem ao nosso controle e que pode acontecer a qualquer um.”
Compaixão e tolerância são características suas que afinal lhe eram inatas e que fizeram faísca no seu cérebro quando conheceu o seu primeiro doente psiquiátrico, um doente esquizofrénico. Como nunca tinha contactado com esta doença ficou impressionado, “ele ouvia vozes que o insultavam e acreditava que desconhecidos na rua lhe lançavam olhares ameaçadores e faziam comentários sobre si”. Bernardo depara-se com este caso e pensa como é que o cérebro se comporta para ler mensagens que não são as reais, como ouvir o telejornal na televisão e achar que são recados para eles. “Estes doentes têm dificuldade em processar corretamente sinais em contextos sociais. Uma das dificuldades é inferir as emoções e intenções dos outros. Por exemplo, durante esta entrevista eu estou atento não só ao que dizes, mas também às tuas expressões faciais, aos teus gestos, à tua postura e até à modulação da tua voz. Quando sorris, eu interpreto isso como um sinal de que estás satisfeita e de que eu fiz algo que te agradou. Os doentes esquizofrénicos têm dificuldade em processar esta informação corretamente: olham para uma face neutra, mas interpretam-na como uma expressão de raiva. Têm um viés de negatividade no reconhecimento das emoções”. Esta preocupação com o comportamento em sociedade fez Bernardo Costa Neves ir estudar mais sobre uma hormona. “Nós estamos a estudar os efeitos de uma molécula que funciona como uma hormona na periferia e como um mensageiro químico no cérebro. Queremos saber como é que esta molécula influencia o comportamento social, a vários níveis, um dos quais no reconhecimento das emoções. Há estudos que já demonstram que a oxitocina, quando administrada em doentes com esquizofrenia, ajuda a corrigir este viés da negatividade. O que não sabemos é como é que este neurotransmissor faz isto e por que é que nem sempre funciona.”
Confrontou-se, então, entre alguma História da Filosofia e da Fenomenologia que viu como ultrapassadas e que não iam ao encontro de novas explicações que existem atualmente e que lhe suscitaram interesse. Este confronto de ideias entre passado e perspetiva de futuro fez com que olhasse para as Neurociências e procurasse novos artigos que retratassem investigações pioneiras. Mas mesmo a Psiquiatria colocava obstáculos ao seu sentido crítico, explicar as emoções não é palpável, “isso confere à Psiquiatria uma dificuldade acrescida aquando do diagnóstico médico. Comparada com outras especialidades, esta é ainda pouco tecnológica e depende muito da apreciação subjetiva do médico. Neste momento ainda não existem ferramentas validadas que apoiem o Psiquiatra na sua decisão diagnóstica, mas o progresso científico e tecnológico caminha nesse sentido.” Defende que o cérebro deveria ser observado de outra forma e foi por isso que se juntou ao Diana Prata Lab, coordenado pela Neurobióloga Diana Prata.
Discutiu com Diana Prata os seus interesses de investigação e percebeu que se alinhavam com o projeto do laboratório, e apesar da sua proposta inicial ser com doentes bipolares, acabou por adaptar o foco ao tema da esquizofrenia, tema este largamente trabalhado por Diana Prata, desde os tempos de Londres do King’s College.
Após reunião com a sua mentora, acabou por concorrer a uma bolsa com um projeto integrado no laboratório. Numa fase inicial estagiava no laboratório, ao mesmo tempo que dava consultas no Hospital Júlio de Matos e fazia urgências no Hospital de São José. O tempo fugia-lhe das mãos, mas foi quando se sentiu mais feliz porque tinha perto de si os seus doentes e podia contrastar a teoria com a prática e abrir novos caminhos com as suas dúvidas.
Acabou, no entanto, por suspender temporariamente a sua atividade clínica no Júlio de Matos quando ganhou a Bolsa de Doutoramento da FCT, devido ao regime de exclusividade da bolsa. Mas nada no seu caminho foi em vão, agora estuda a neurobiologia da cognição social, isto é, a forma como o cérebro processa a informação no mundo social. Já tinha tomado conhecimento sobre a protagonista do laboratório de Diana Prata, a oxitocina, essa hormona que ainda não conhecia bem de perto. A multidisciplinaridade do projeto foi uma das coisas que mais o fascinou, “uma das limitações da investigação científica é a fragmentação do conhecimento. Cada pessoa especializa-se num domínio do conhecimento muito específico. O problema surge quando se tenta compreender um fenómeno como um todo e estamos apenas focados numa parte, muitas vezes sem termos conta. É por isso que é preciso haver comunicação entre especialistas de áreas diferentes. No laboratório temos uma equipa multisciplinar com psicólogos, engenheiros, médicos e biólogos que unem esforços para o mesmo fim, como uma orquestra com vários músicos e instrumentos a tocar em harmonia.”
Os tratamentos atualmente disponíveis não olham ainda tanto para os problemas de integração social, que são ubíquos nas doenças psiquiátricas. Os doentes “vão ficando cada vez mais isolados, porque estão constantemente a interpretar negativamente as intenções e emoções dos outros. Não conseguem manter relacionamentos saudáveis, nem têm motivação para o fazer.” Para já ainda não se consegue melhorar a sua motivação social e o desejo de interação, mas o trabalho deste laboratório visa avançar o conhecimento com essa finalidade.
Pela frente Bernardo Costa Neves tem 4 anos para dar provas das suas dúvidas. Entretanto vai aproximando investigadores do iMM e médicos do Hospital Júlio de Matos, fazendo com que se debatam novas ideias e experiências e para que se alarguem as visões perante as abordagens clínicas aos pacientes, mas também às investigações que um dia serão eventualmente tratamentos eficazes.
Se se projetar no futuro tem esperança de ajudar a construir um caminho que permita “que estes doentes possam viver melhor, ter maior qualidade de vida”. Essa é a grande gratificação que leva do caminho que escolheu.
Quando quis conhecer o Bernardo foi para entender o que faz um aluno de Medicina escolher uma área e não outra. Entender que motivações se tem quando se escolhe a Psiquiatria, como foi o caso. E acho que percebi. O Bernardo escolheu ser Psiquiatra pelas pessoas, em nome das pessoas que não se conseguem explicar sozinhas. Mas acima disso porque entende que pode contribuir para que se alargue na Ciência a área de investigação ao cérebro, somando a intuição médica, com a investigação tecnológica e percebendo em que medida pode vir a acrescentar conteúdos aos manuais de Psiquiatria dos próximos alunos e jovens médicos que aí venham.
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Joana Sousa
Equipa Editorial