Investigação e Formação Avançada
A Cognição Social e o Laboratório de Diana Prata
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A forma como nos comportamos e o modo como sentimos as coisas, os laços que construímos com os outros, ou a frieza com que nos movemos em sociedade, são características de uma mesma espécie, a humana. Capaz de defender as melhores causas e criar as mais magníficas obras de arte, é a mesma espécie que é capaz de dizimar partes da sua própria existência. Sentir medo, euforia, prazer, ou não sentir nada, são emoções que estão alojadas na mesma origem. Muitas vezes dizemos que temos feelings sobre os outros e reagimos de forma diferente consoante a empatia ou a desconfiança que é despertada em nós. Nada disto é sobrenatural ou mágico, é tudo químico e deve-se ao somatório de 86 biliões de neurónios que dão forma ao órgão mais misterioso do nosso corpo, o cérebro.
Pesa pouco mais de um quilo, cabe na palma da mão e tem a textura de uma esponja com gelatina. Quando estamos acordados o cérebro produz energia equivalente a uma lâmpada de 20 watts e gasta cerca de 20% das calorias totais que consumimos por dia. O tecido cerebral não sente dor porque não tem esses recetores, ele apenas ativa outras estruturas do corpo a sentirem a dor. Se fizéssemos uma viagem ao seu interior, saberíamos que os neurónios comunicam uns com os outros porque têm sinapses que os ligam e essas ligações são cerca de 10 triliões no total. Geograficamente dividido em 7 áreas distintas (tronco cerebral, cerebelo, lobo occipital, lobo parietal, lobo frontal, lobo temporal, hipocampo e amígdala), há áreas que despertam maior foco de interesse hoje; sabemos, por exemplo, que o hipocampo, , pode crescer consoante a aprendizagem que fomentamos em nós próprios, sabemos, hoje, que também no hipocampo podemos criar novos neurónios e sinapses ao longo da vida. A idade não destrói tudo, há capacidades no nosso cérebro que melhoram com o avanço do tempo, como a riqueza do vocabulário, ou a capacidade para gerir conflitos e emoções.
Mas de onde vêm as explicações a todas estas manifestações químicas do cérebro?
Desde os primórdios, mesmo nos animais mais primários como minhocas e insetos, existiam neurónios a compor um sistema de recompensa, que lhes permitia a sobrevivência. Experiências recompensantes eram codificadas como libertações de dopamina. Ao longo da evolução, surgiram espécies que sentiam necessidade de viver em grupo para proteção, predação, criação da descendência, etc, necessidade essa que foi respondida com o aparecimento da oxitocina.
Diana Prata, neurobióloga, investigadora e Group Leader do iMM, conduz o seu próprio laboratório com uma equipa de 10 elementos e anda a estudar essa fórmula química no cérebro humano e animal.
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Diana, apresente-nos a oxitocina e qual o foco do seu estudo?
O meu estudo é focado em perceber como é que a oxitocina trabalha com o sistema da dopamina, este por sua vez já robustamente associado à recompensa. Quando os animais começaram a estar em grupo, a oxitocina passou a ter um papel na cognição social. Claro que nessa altura já havia o sistema da dopamina e da recompensa, então, como a natureza “usa” sempre o que já existe para “inventar” uma nova função, pensamos que a oxitocina vai usar o sistema da recompensa para “dizer” ao animal que uma interação social boa, com alguém, é socialmente recompensadora (por exemplo, receber um sorriso ou ajuda). Assim, aprenderemos onde estão, ou quem são, os outros que ajudam, criando afiliação. Se a dopamina mostra a recompensa no doce, no calor, na saciedade, a oxitocina, em interação com a dopamina, pensamos nós, vem codificar recompensas na vertente social.
A oxitocina pode ser quantificada no sangue ou saliva, e no líquido cefalorraquidiano através uma punção lombar, mas é algo que é muito invasivo. Para entender as ações da molécula no cérebro, o que fazemos é, basearmo-nos na manipulação momentânea dos níveis de oxitocina, para já só em homens porque oscilam menos nos níveis desta hormona ao longo do mês, e observamos em seguida os seus comportamentos e ativação cerebral. É a correlação entre essa administração, o comportamento, e a observação da ativação cerebral diferente, principalmente na zona da amígdala e do estriado (central não circuito da recompensa), que têm caracterizado o papel da oxitocina na cognição social.
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E o que acontece quando administram a oxitocina?
Neste momento o efeito da dose administrada, que é metade daquela que se dá para as mulheres que não conseguem amamentar, dura entre meia a uma hora, e faz notar alterações cognitivas. Já foi mostrado que a oxitocina intranasal incita mais à cooperação, na resolução de uma discussão de casal de forma mais rápida e com palavras mais construtivas, e maior identificação das emoções dos outros com base no olhar. Mas para já são estudos iniciais que ainda precisam de replicação para ser conclusivos, não nos dão ainda garantias absolutas.
Começa agora a perceber-se que a oxitocina tem efeitos a nível psicológico e um dos efeitos bastante comprovados é que é relaxante. A oxitocina é libertada pelo nosso cérebro quando temos um orgasmo, tocamos ou somos tocados, ou massajados, quando damos abraços ou olhamos nos olhos, ou em situações sociais, por exemplo, quando a mãe está a cuidar do bebé, e, em boa verdade, todas estas situações são relaxantes. Há quem defenda que ela também é libertada para propiciar relaxamento em situações de stress, tanto ao próprio como ao próximo, como facilitador da aproximação aos outros. Por exemplo, se uma pessoa estiver em stress, ou com medo, a libertação de oxitocina no seu cérebro ajudará a que se aproxime de alguém, de um grupo amigo, para potencial ajuda. O outro, por sua vez, também sentirá menos repulsa e mais motivação para a aproximação, mesmo perante alguém numa situação stressante, se tiver níveis mais elevados de oxitocina. A apoiar esta ideia de que a oxitocina diminui o medo, há a descoberta, consolidada, de que inalar oxitocina diminui a ativação das amígdalas do cérebro (que tipicamente codifica medo e repulsa), quando se está perante uma cara assustada. Pensa-se que é desta forma que a oxitocina propicia a aproximação e, por conseguinte, a afiliação; facilitando especialmente a interajuda entre indivíduos do mesmo grupo social, e, no seu caso mais extremo e crítico para a sobrevivência (e replicação genética), entre mãe e filho/a. Isso foi robustamente demonstrado já em ratinhos, ovelhas e morcegos vampiros, por exemplo.
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Então podemos dizer que a oxitocina tem uma função social?
Estamos a começar a tentar compreender essa função social, nomeadamente como a oxitocina regula o comportamento de aproximação social. Há aqui duas vertentes, uma é a aproximação a uma pessoa nova, que leva à afiliação a essa pessoa, caso as aproximações sejam recompensadoras (aprendizagem essa que, como disse, pensamos que está dependente do sistema da dopamina). Como também já vimos, a aproximação é importante para o auxílio, por exemplo, uma mãe que veja o seu bebé com medo, não é suposto fugir, mas acalmar e cuidar; os momentos de contacto infantomaternal são acompanhados claramente de uma libertação maior de oxitocina, para, pensa-se, contrariar o contágio pelo medo e a repulsa. Depois, com a continuidade de interações positivas facilitadas pela oxitocina e dopamina, em conjunto, é então consolidada uma afiliação crescente, pensamos. Mas existe uma segunda vertente da ação da oxitocina, um “reverso da medalha”. Se quando a pessoa é do nosso grupo (e tipicamente não há grupo mais coeso que a mãe e o filho), a oxitocina tem efeitos de aproximação, também é verdade que a oxitocina pode propiciar maior “agressão” em relação a pessoas de grupos externos, em situações de competição ou escassez de recursos. Voltando à relação mãe-filho, tal comportamento de defesa “aumentado” faz sentido para proteção do filho. A apoiar essa ideia, estão os estudos em laboratório, com jogos neuro económicos em que adultos escolhem competir, ou cooperar, entre si. Nestes, a administração da oxitocina intranasal tem mostrado aumentar a competição (mais do que é normal) com membros de um grupo externo, versus os do mesmo grupo. Ou seja, o efeito de uma libertação maior de oxitocina no cérebro, no comportamento de aproximação, depende do contexto social, se estamos perante um individuo que nos ameaça ou que precisa do nosso auxílio.
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O medo é então uma ideia muito subjacente, também. Se treinarmos muitas vezes o cérebro para situações de medo, ele aprende a reagir de maneira diferente?
O medo ativa uma resposta instintiva do nosso sistema nervoso autónomo simpático que é a de: fight, flight or freeze (lutar, fugir ou “congelar”), onde numa situação de perigo, o animal decide numa destas 3 estratégias para a sua sobrevivência. O que vai depender do tipo de agressão e do tipo de animal. Aquilo a que chamamos instinto, é uma resposta tão automática do cérebro que não a assumimos como uma ação consciente. No entanto, o cérebro é plástico até um certo ponto e as fobias de voar, de aranhas ou de falar em público, por exemplo, podem ser tratadas. Os psicólogos tentam, com terapia cognitivo-comportamental, por exemplo, por as pessoas a entender que tipo de pensamentos estão na origem do seu medo, e depois, equipá-la com estratégias de reinterpretação dessas situações. A terapia comportamental de exposição foca-se na dessensibilização: a pessoa é exposta gradualmente mais de perto ao estímulo que lhe induz medo, e ao aprender, por reforço positivo, que não existe perigo, o seu cérebro deixará, com o tempo, de codificar o estímulo com uma ameaça e de induzir a fisiológica típica do medo (o tal fight, flight or freeze).
A observação de uma cara com medo pode, também, suscitar medo na outra pessoa, por contágio emocional. Já vimos que este medo se refletia numa ativação da amígdala cerebral, e que era reduzido pelo aumento dos níveis de oxitocina no cérebro.
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E quando temos empatia com alguém, isso não é sobrenatural, é a oxitocina a funcionar…
Sim a empatia já se viu que é modulada pela oxitocina. A empatia é de 2 tipos: a cognitiva, a que eu estudo, que é a que uma pessoa usa quando tenta descortinar o que o outro está a pensar, sentir ou a intencionar. E depois há a empatia emocional ou afetiva, que é a do contágio: por exemplo, o choro ser despoletado por se ver alguém a chorar.
Para o primeiro tipo de empatia, há um teste muito famoso, em que temos que adivinhar o que esta por detrás de 36 fotos de olhares: por exemplo, inveja, pânico, satisfação, etc. Num estudo com placebo, deu-se oxitocina às pessoas num dia, e no outro não. Quando fizeram o teste sob o efeito da oxitocina, melhoraram significativamente na identificação das emoções. Isto faz sentido porque para a aproximação ou afiliação com alguém, é crucial percebermos as intenções, pensamentos e emoções nos outros. Precisamos de saber, se inferir, se aquela pessoa é confiável ou não, quer para proteção, quer para ajudar os outros. A oxitocina, pensa-se, tem um papel na empatia cognitiva, que é um processo cognitivo importante nos comportamentos de aproximação e de afiliação.
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Quando se perspetiva o estudo da oxitocina para o tratamento de doenças neuronais, ela diz-nos o quê?
Por exemplo, dentro da esquizofrenia pensou-se mais cedo em consertar os sintomas mais agudos, o foco foi sempre aliviar as psicoses e delírios causados pela doença, mas esqueceu-se a sua integração na sociedade, antes e depois dela surgir. O treino social como forma de terapia, eventualmente com oxitocina em spray, para melhorar o relacionamento com os outros e a confiança, não é feito ainda. O mesmo se aplica à depressão, doença bipolar, toxicodependência, ou doença de Alzheimer. E em todas elas a parte da dimensão social é ainda, de facto, negligenciada. Eu acho que a oxitocina como spray nasal e de tratamento continuado, num determinado período de tempo, pode ter benefícios.
Se validarmos a relação comportamento-oxitocina-sintomas, também podemos passar a usar uma terapêutica sem o spray, ou seja, só através de comportamentos, por exemplo: abraços, dança, massagens, jogos entre pessoas e outras atividades sociais. Isto porque teríamos uma validação biológica de que estes comportamentos estimulam o sistema da oxitocina e que esta por sua vez, quando regularizada nos pacientes, melhora os sintomas comportamentais. E não precisamos pensar apenas nestas técnicas como tratamento, elas também podem ajudar na prevenção, por exemplo, do isolamento social, que aumenta o stress propiciador da esquizofrenia por exemplo, e diminui a atividade em idosos, por sua vez propiciador da demência. Pensa-se que períodos de stress crónico inerentes à migração, ao urbanismo, e a eventos traumáticos, sejam estímulos para a esquizofrenia, embora o background genético tenha muita influência.
As pessoas com um distúrbio no espectro do autismo, que olham menos para os outros, e interagem menos com os outros, parece terem alterações no sistema de regulação da oxitocina, a nível genético. Isto é consistente com a ideia de que a oxitocina é crucial na empatia, aproximação e afiliação. E já existem ensaios clínicos a mostrar uma melhoria dos sintomas do autismo com administração de oxitocina intra nasal, como por exemplo aumento do tempo a olhar para os olhos, e maior compreensão dos sentimentos e intenções nos outros (empatia cognitiva). Em crianças com autismo, isso já foi notado em estudos recentes, embora a dose e duração ideais ainda estejam por definir.
Em suma, em termos de tratamentos de manipulação do sistema da oxitocina, temos ainda muitas hipóteses em aberto, algumas recentemente muito promissoras, como é o caso do autismo. Há que continuar a testar, replicar e consolidar, para chegarmos a soluções eficazes e seguras.
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Joana Sousa
Equipa Editorial