Mais e Melhor
O inimigo mais doce do mundo: a conversa com os especialistas
Proibir o consumo de determinados produtos alimentares, reeducar a população portuguesa para uma alimentação saudável e criar alternativas mais saudáveis, são as formas encontradas pelo Governo para gerar uma mudança comportamental. Depois do despacho no final do ano passado, a reflexão feita pelos especialistas.
Manuel de Carvalho é Psiquiatra no Hospital de Santa Maria (HSM) e faz parte da Equipa de Perturbações do Comportamento Alimentar do Serviço de Psiquaitria, desde 2008.
Isabel do Carmo é médica Endocrinologista e Coordenadora dos módulos sobre obesidade e diabetes do Curso de Doenças Metabólicas e Comportamento Alimentar (pós-graduações) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi a Fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade e do Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar (Sociedade Científica) e Membro da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia e da Sociedade Portuguesa de Diabetologia.
Fomos falar com ambos para saber afinal qual é o problema do açúcar e se gostar de o consumir é necessidade ou prazer. Fomos ainda perceber se o facto de proibir aquilo que nos dá prazer aumenta o desejo.
size="20"
Qual é o problema do açúcar para a nossa saúde? É ele o grande causador da obesidade e da diabetes em Portugal?
IC: O açúcar é de facto um problema para a nossa saúde, quando falamos do açúcar de açucareiro, a sacarose, que é constituinte dos chamados doces e da frutose, que é usada sob a forma de xarope, o qual é adicionado não só ao que chamamos doce, mas também a outros alimentos. Convém explicar e cabe também aos profissionais de saúde fazê-lo para o público em geral, que açúcares são todos os hidratos de carbono e que estes se dividem em complexos e em simples, que são os monossacáridos. Os complexos constituem o principal nutriente do pão, das massas, do arroz, do cuscus, do feijão, do grão e todos os dias toda a gente os come e são a base da nossa alimentação desde o neolítico. Não se deve pois confundir a palavra açúcar usada correntemente com hidratos de carbono, os quais passaram a ser rejeitados a partir de uma das muitas modas que andam por aí. A sacarose, o açúcar de açucareiro, é um dissacárido, constituído por dois açúcares simples, a glicose e a frutose, que são hexoses. Quando se faz a prova de tolerância à glicose é esta mesma que é ingerida diluída em líquido e que vai fazer um pico de glicémia. Quando comemos uma peça de fruta doce estamos a ingerir frutose que se transformará em glicose e que vai fazer um pico mais ou menos rápido, conforme as frutas. Mais rápido na laranja, menos rápido na maçã.
Ora, a partir do momento em que felizmente houve mais disponibilidade alimentar nos países mais desenvolvidos, sobretudo desde os anos cinquenta do século passado, o padrão alimentar mudou. Com atraso, infelizmente, para Portugal, a par da redução da insegurança alimentar, com todos os seus benefícios, houve também, como nos outros países, uma maior disponibilidade do bom e do mau. Ou seja, o consumo dos refrigerantes não parou de aumentar desde que o Instituto Nacional de Estatística (INE) estuda os balanços alimentares. Os doces e guloseimas passaram a ser baratos e a estar disponíveis mesmo para as bolsas dos que vivem abaixo do limiar da pobreza. É lógico e natural que uma pessoa não tenha dinheiro para o crédito da casa, o consumo de energia, os livros escolares, a carne, o peixe e a fruta mas tenha para um bolo ou um chocolate, que ainda por cima “matam a fome”. Se este consumo fácil existe para os mais pobres é extensivo também às outras classes sociais. A publicidade destes produtos a todos os níveis e particularmente nos programas infanto-juvenis dos canais de televisão e dos jogos da internet, metem no nosso automatismo o impulso para comprar, como toda a propaganda comercial.
Estamos pois invadidos por açúcar, que nos doces é confecionado juntamente com gordura e é nestes alimentos com grande densidade calórica que vamos comer para além das necessidades e portanto acumular sob a forma de gordura. A acumulação de gordura acaba por dar obesidade. Claro que, para além deste factor ambiental há o factor genético. Estão hoje identificados genes que constituem um terreno, para a obesidade. Mas a investigação chegou à conclusão, tanto na cohorte de Framingham como na ilha de Somoa, que o gene da obesidade (o tal que antes de ser identificado já era chamado de “económico”) só deu origem a indivíduos com obesidade a partir da abundância alimentar, sendo esse momento histórico – biológico a partir do final da II Guerra Mundial tanto num caso como no outro.
Esta invasão pelo açúcar vai solicitar insulina para ser introduzido nas células. E o pâncreas esgota-se – é a diabetes tipo II.
Existe muita bibliografia que demonstra a introdução de frutose nos alimentos mais correntes. Sobretudo nos alimentos processados a introdução de frutose introduz um leve sabor açucarado que vai ao encontro do nosso gosto inato e ancestral. Houve um momento em que se chegou mesmo a recomendar frutose para substituir o açúcar de açucareiro. A indústria alimentar tem muita força… De facto a frutose tem um pico e um Índice Glicémico mais baixos do que a glicose e a sucrose, os níveis de insulina não sobem tão alto após a ingestão e o valor calórico é ligeiramente mais baixo. Mas as más consequências não se medem só por aí. Em 2017 foi publicada uma revisão crítica de investigação sobre os efeitos da frutose nas doenças metabólicas e cardiovasculares. Nesta revisão chegou-se à conclusão de que a ingestão de frutose aumenta os níveis de ácido úrico, o qual é um factor de risco não só para a gôta, mas também para as doenças cardiovasculares. No entanto não há ainda uma relação directa da ingestão de frutose com um aumento de ocorrência de doenças cardiovasculares.
No entanto na área da nefrologia há investigação que demonstra a toxicidade para o rim dos catabolitos dos monossacáridos e da sucrose.
Há também investigação que relaciona a diminuição da ingestão em hidratos de carbono em geral com a melhoria na psoríase. Há ainda relação entre a ingestão de açúcar e um pior ambiente no microbioma intestinal, isto é a composição em bactérias (“boas” e “más”) no intestino.
De qualquer modo a ingestão de doces e particularmente de bebidas açucaradas, sobretudo se o forem com xarope de fructose, leva à necessidade de comer mais, de beber mais, o que envolve vários mecanismos, com mensageiros hormonais do tubo digestivo, que atingem o sistema nervoso central.
size="20"
O que acha desta proibição?
IC: Acho muito bem a proibição. Era uma enorme contradição dizer-se na consulta para não beber refrigerantes e não comer bolos e a alguns metros estes estarem à vista e à venda. O nosso automatismo funciona mais depressa a níveis mais baixos do que a cognição, o raciocínio e a “força de vontade”. A nossa capacidade de escolha perante o estímulo é pequena. E a proibição justifica-se porque a “recomendação” nos bares das escolas, que se baseava em que não houvesse proibição drástica, não funcionou. Também no código da estrada e no uso de tabaco, só as proibições funcionaram. A natureza humana tem muito da nossa evolução animal.
size="20"
O nosso corpo tem apetência para o açúcar, ou foi a cultura de consumo alimentar que nos fez aprender a desejá-lo?
IC: O nosso corpo tem muita apetência para o açúcar… Foi assim que o género humano sobreviveu. Quando eramos caçadores – recoletores, comíamos caça, mas também andávamos a colher sementes, frutos, que continham açúcar e ficámos particularmente aptos a distinguir esse sabor. Foram muitos milhares de anos. Para mim tenho que quem caçava eram essencialmente os homens e quem colhia eram as mulheres. Está-se mesmo a ver quem é que comia mais de uma coisa e de outra… Esses estudos de género têm pouca investigação, mas na clínica vejo que há muito mais mulheres a gostar de doces do que homens O ser humano ficou a ter apetência para o açúcar e ao longo da sua história ganhou também apetência para ter resistência à insulina e portanto poupar o açúcar e armazená-lo sob a forma de gordura (triglicéridos, ácidos gordos) em épocas de fome ou de necessidades extra com a gravidez. A questão é que essa apetência herdade foi selecionada, guardada. E aqui estamos com gordura de reserva, muita resistência à insulina e pâncreas cansados de tanto a produzirem.
size="20"
Li um artigo de opinião que dizia “agora quando a criança faz birra para ir visitar o avô ao hospital, já não pode comer o bolo e ficar sossegada, porque tem como prémio de consolo a folha de alface”
IC: A criança não está reduzida à folha de alface… tem sandes, tem leite, tem iogurtes, pode ter queijinhos com gordura reduzida. E reservar os doces só para um dia por semana.
size="10"
Há uma estatística que afirma que o açúcar é oito vezes mais viciante que a cocaína. Tomar açúcar é o mesmo que consumir cocaína?
MC: Apesar de se começar a ouvir falar em "dependência alimentar" ou "dependência de açúcar", proposto por alguns autores, para aquilo que se descreve como uma tendência para um consumo excessivo de alimentos com alto teor calórico (lipídico e/ou em hidratos de carbono), não existem dados suficientes que comprovem esta entidade como uma entidade nosológica independente, não havendo nem consenso científico acerca do mesmo, nem uma correlação neurobiológica clara para a mesma. Deste modo, não surge classificada no DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).
size="20"
Será que me pode falar de uma coisa que se chama dopamina e que nos faz sentir bem? E qual a relação da dopamina com o açúcar?
MC: A dopamina é um neurotransmissor (substância química produzida pelos neurónios que permite a transmissão de informação entre as células nervosas) que desempenha vários papéis importantes no cérebro e no corpo. O cérebro contém várias vias dopaminérgicas, uma delas desempenha um papel importante no sistema de comportamento motivado a recompensa. A maioria das recompensas aumentam o nível de dopamina no cérebro (uma experiência positiva, uma atividade prazerosa, um prémio, uma boa refeição, etc), o que também acontece aquando do uso de substâncias aditivas. Deste modo, tenta correlacionar-se o aumento da dopamina verificado mediante o consumo excessivo de açúcar com o que sucede com o consumo de substâncias com potencial aditivo comprovado. A dopamina também está envolvida no controle de movimentos, aprendizagem, humor, emoções, cognição e memória.
Não será a proibição a tentação final para querermos mais aquilo que até até aí estava ao alcance de todos?
MC: Penso que a limitação na venda de produtos alimentares ricos em carbo-hidratos simples e de alto valor calórico em locais ligados à prestação de cuidados de saúde, à semelhança do que acontece nas escolas, possam permitir a disponibilização de alimentos habitualmente vistos como "mais saudáveis" ou "menos prejudiciais" para a saúde. Talvez possamos encarar a medida proposta como uma forma de podermos encontrar uma variedade de alimentos que atualmente são mais difíceis de encontrar em bares e restaurantes, também devido à maior dificuldade na sua preservação, como fruta, iogurtes, saladas e outros, e não como uma restrição daquilo que é vendido. Desta forma, pode haver um incentivo na diversificação do tipo de alimentos oferecido, entre os quais alimentos mais saudáveis. Quantas vezes não vamos a um café ou a um bar e acabamos por escolher um bolo ou um salgado por ser rápido e por não haver alternativa? A existência de alternativas mais saudáveis, principalmente em locais que devem estar ligados à promoção da saúde e de bons hábitos alimentares pode ser uma forma de tentar melhorar os hábitos alimentares da população. Os hábitos alimentares são instituídos desde muito cedo e estão relacionados com os hábitos dos nossos pais e familiares e a promoção de uma dieta mediterrânica nas escolas, hospitais e centros de saúde, poderão prevenir várias doenças, entre as quais a obesidade.
size="30"
Joana Sousa
Equipa Editorial
Manuel de Carvalho é Psiquiatra no Hospital de Santa Maria (HSM) e faz parte da Equipa de Perturbações do Comportamento Alimentar do Serviço de Psiquaitria, desde 2008.
Isabel do Carmo é médica Endocrinologista e Coordenadora dos módulos sobre obesidade e diabetes do Curso de Doenças Metabólicas e Comportamento Alimentar (pós-graduações) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi a Fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade e do Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar (Sociedade Científica) e Membro da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia e da Sociedade Portuguesa de Diabetologia.
Fomos falar com ambos para saber afinal qual é o problema do açúcar e se gostar de o consumir é necessidade ou prazer. Fomos ainda perceber se o facto de proibir aquilo que nos dá prazer aumenta o desejo.
size="20"
Qual é o problema do açúcar para a nossa saúde? É ele o grande causador da obesidade e da diabetes em Portugal?
IC: O açúcar é de facto um problema para a nossa saúde, quando falamos do açúcar de açucareiro, a sacarose, que é constituinte dos chamados doces e da frutose, que é usada sob a forma de xarope, o qual é adicionado não só ao que chamamos doce, mas também a outros alimentos. Convém explicar e cabe também aos profissionais de saúde fazê-lo para o público em geral, que açúcares são todos os hidratos de carbono e que estes se dividem em complexos e em simples, que são os monossacáridos. Os complexos constituem o principal nutriente do pão, das massas, do arroz, do cuscus, do feijão, do grão e todos os dias toda a gente os come e são a base da nossa alimentação desde o neolítico. Não se deve pois confundir a palavra açúcar usada correntemente com hidratos de carbono, os quais passaram a ser rejeitados a partir de uma das muitas modas que andam por aí. A sacarose, o açúcar de açucareiro, é um dissacárido, constituído por dois açúcares simples, a glicose e a frutose, que são hexoses. Quando se faz a prova de tolerância à glicose é esta mesma que é ingerida diluída em líquido e que vai fazer um pico de glicémia. Quando comemos uma peça de fruta doce estamos a ingerir frutose que se transformará em glicose e que vai fazer um pico mais ou menos rápido, conforme as frutas. Mais rápido na laranja, menos rápido na maçã.
Ora, a partir do momento em que felizmente houve mais disponibilidade alimentar nos países mais desenvolvidos, sobretudo desde os anos cinquenta do século passado, o padrão alimentar mudou. Com atraso, infelizmente, para Portugal, a par da redução da insegurança alimentar, com todos os seus benefícios, houve também, como nos outros países, uma maior disponibilidade do bom e do mau. Ou seja, o consumo dos refrigerantes não parou de aumentar desde que o Instituto Nacional de Estatística (INE) estuda os balanços alimentares. Os doces e guloseimas passaram a ser baratos e a estar disponíveis mesmo para as bolsas dos que vivem abaixo do limiar da pobreza. É lógico e natural que uma pessoa não tenha dinheiro para o crédito da casa, o consumo de energia, os livros escolares, a carne, o peixe e a fruta mas tenha para um bolo ou um chocolate, que ainda por cima “matam a fome”. Se este consumo fácil existe para os mais pobres é extensivo também às outras classes sociais. A publicidade destes produtos a todos os níveis e particularmente nos programas infanto-juvenis dos canais de televisão e dos jogos da internet, metem no nosso automatismo o impulso para comprar, como toda a propaganda comercial.
Estamos pois invadidos por açúcar, que nos doces é confecionado juntamente com gordura e é nestes alimentos com grande densidade calórica que vamos comer para além das necessidades e portanto acumular sob a forma de gordura. A acumulação de gordura acaba por dar obesidade. Claro que, para além deste factor ambiental há o factor genético. Estão hoje identificados genes que constituem um terreno, para a obesidade. Mas a investigação chegou à conclusão, tanto na cohorte de Framingham como na ilha de Somoa, que o gene da obesidade (o tal que antes de ser identificado já era chamado de “económico”) só deu origem a indivíduos com obesidade a partir da abundância alimentar, sendo esse momento histórico – biológico a partir do final da II Guerra Mundial tanto num caso como no outro.
Esta invasão pelo açúcar vai solicitar insulina para ser introduzido nas células. E o pâncreas esgota-se – é a diabetes tipo II.
Existe muita bibliografia que demonstra a introdução de frutose nos alimentos mais correntes. Sobretudo nos alimentos processados a introdução de frutose introduz um leve sabor açucarado que vai ao encontro do nosso gosto inato e ancestral. Houve um momento em que se chegou mesmo a recomendar frutose para substituir o açúcar de açucareiro. A indústria alimentar tem muita força… De facto a frutose tem um pico e um Índice Glicémico mais baixos do que a glicose e a sucrose, os níveis de insulina não sobem tão alto após a ingestão e o valor calórico é ligeiramente mais baixo. Mas as más consequências não se medem só por aí. Em 2017 foi publicada uma revisão crítica de investigação sobre os efeitos da frutose nas doenças metabólicas e cardiovasculares. Nesta revisão chegou-se à conclusão de que a ingestão de frutose aumenta os níveis de ácido úrico, o qual é um factor de risco não só para a gôta, mas também para as doenças cardiovasculares. No entanto não há ainda uma relação directa da ingestão de frutose com um aumento de ocorrência de doenças cardiovasculares.
No entanto na área da nefrologia há investigação que demonstra a toxicidade para o rim dos catabolitos dos monossacáridos e da sucrose.
Há também investigação que relaciona a diminuição da ingestão em hidratos de carbono em geral com a melhoria na psoríase. Há ainda relação entre a ingestão de açúcar e um pior ambiente no microbioma intestinal, isto é a composição em bactérias (“boas” e “más”) no intestino.
De qualquer modo a ingestão de doces e particularmente de bebidas açucaradas, sobretudo se o forem com xarope de fructose, leva à necessidade de comer mais, de beber mais, o que envolve vários mecanismos, com mensageiros hormonais do tubo digestivo, que atingem o sistema nervoso central.
size="20"
O que acha desta proibição?
IC: Acho muito bem a proibição. Era uma enorme contradição dizer-se na consulta para não beber refrigerantes e não comer bolos e a alguns metros estes estarem à vista e à venda. O nosso automatismo funciona mais depressa a níveis mais baixos do que a cognição, o raciocínio e a “força de vontade”. A nossa capacidade de escolha perante o estímulo é pequena. E a proibição justifica-se porque a “recomendação” nos bares das escolas, que se baseava em que não houvesse proibição drástica, não funcionou. Também no código da estrada e no uso de tabaco, só as proibições funcionaram. A natureza humana tem muito da nossa evolução animal.
size="20"
O nosso corpo tem apetência para o açúcar, ou foi a cultura de consumo alimentar que nos fez aprender a desejá-lo?
IC: O nosso corpo tem muita apetência para o açúcar… Foi assim que o género humano sobreviveu. Quando eramos caçadores – recoletores, comíamos caça, mas também andávamos a colher sementes, frutos, que continham açúcar e ficámos particularmente aptos a distinguir esse sabor. Foram muitos milhares de anos. Para mim tenho que quem caçava eram essencialmente os homens e quem colhia eram as mulheres. Está-se mesmo a ver quem é que comia mais de uma coisa e de outra… Esses estudos de género têm pouca investigação, mas na clínica vejo que há muito mais mulheres a gostar de doces do que homens O ser humano ficou a ter apetência para o açúcar e ao longo da sua história ganhou também apetência para ter resistência à insulina e portanto poupar o açúcar e armazená-lo sob a forma de gordura (triglicéridos, ácidos gordos) em épocas de fome ou de necessidades extra com a gravidez. A questão é que essa apetência herdade foi selecionada, guardada. E aqui estamos com gordura de reserva, muita resistência à insulina e pâncreas cansados de tanto a produzirem.
size="20"
Li um artigo de opinião que dizia “agora quando a criança faz birra para ir visitar o avô ao hospital, já não pode comer o bolo e ficar sossegada, porque tem como prémio de consolo a folha de alface”
IC: A criança não está reduzida à folha de alface… tem sandes, tem leite, tem iogurtes, pode ter queijinhos com gordura reduzida. E reservar os doces só para um dia por semana.
size="10"
Há uma estatística que afirma que o açúcar é oito vezes mais viciante que a cocaína. Tomar açúcar é o mesmo que consumir cocaína?
MC: Apesar de se começar a ouvir falar em "dependência alimentar" ou "dependência de açúcar", proposto por alguns autores, para aquilo que se descreve como uma tendência para um consumo excessivo de alimentos com alto teor calórico (lipídico e/ou em hidratos de carbono), não existem dados suficientes que comprovem esta entidade como uma entidade nosológica independente, não havendo nem consenso científico acerca do mesmo, nem uma correlação neurobiológica clara para a mesma. Deste modo, não surge classificada no DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).
size="20"
Será que me pode falar de uma coisa que se chama dopamina e que nos faz sentir bem? E qual a relação da dopamina com o açúcar?
MC: A dopamina é um neurotransmissor (substância química produzida pelos neurónios que permite a transmissão de informação entre as células nervosas) que desempenha vários papéis importantes no cérebro e no corpo. O cérebro contém várias vias dopaminérgicas, uma delas desempenha um papel importante no sistema de comportamento motivado a recompensa. A maioria das recompensas aumentam o nível de dopamina no cérebro (uma experiência positiva, uma atividade prazerosa, um prémio, uma boa refeição, etc), o que também acontece aquando do uso de substâncias aditivas. Deste modo, tenta correlacionar-se o aumento da dopamina verificado mediante o consumo excessivo de açúcar com o que sucede com o consumo de substâncias com potencial aditivo comprovado. A dopamina também está envolvida no controle de movimentos, aprendizagem, humor, emoções, cognição e memória.
Não será a proibição a tentação final para querermos mais aquilo que até até aí estava ao alcance de todos?
MC: Penso que a limitação na venda de produtos alimentares ricos em carbo-hidratos simples e de alto valor calórico em locais ligados à prestação de cuidados de saúde, à semelhança do que acontece nas escolas, possam permitir a disponibilização de alimentos habitualmente vistos como "mais saudáveis" ou "menos prejudiciais" para a saúde. Talvez possamos encarar a medida proposta como uma forma de podermos encontrar uma variedade de alimentos que atualmente são mais difíceis de encontrar em bares e restaurantes, também devido à maior dificuldade na sua preservação, como fruta, iogurtes, saladas e outros, e não como uma restrição daquilo que é vendido. Desta forma, pode haver um incentivo na diversificação do tipo de alimentos oferecido, entre os quais alimentos mais saudáveis. Quantas vezes não vamos a um café ou a um bar e acabamos por escolher um bolo ou um salgado por ser rápido e por não haver alternativa? A existência de alternativas mais saudáveis, principalmente em locais que devem estar ligados à promoção da saúde e de bons hábitos alimentares pode ser uma forma de tentar melhorar os hábitos alimentares da população. Os hábitos alimentares são instituídos desde muito cedo e estão relacionados com os hábitos dos nossos pais e familiares e a promoção de uma dieta mediterrânica nas escolas, hospitais e centros de saúde, poderão prevenir várias doenças, entre as quais a obesidade.
size="30"
Joana Sousa
Equipa Editorial