Reportagem / Perfil
Bruno Silva Santos – O investigador que faz poesia com os linfócitos T
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É um anfitrião por excelência, por onde passa fala e conhece todos. Escorpião de signo e um líder nato, diz que nunca teve perfil de seguidor. Desde os tempos de escola que assumia os papéis de delegado de turma e gostava de ficar à frente das batalhas. Apaixonado pelo risco e de corajosa iniciativa, tem 22 pessoas que o seguem fielmente no seu laboratório de Imunologia do iMM. É vice-Diretor do iMM, investigador premiado e Professor de Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, chama-se Bruno Silva Santos e no lugar dos títulos que acompanham o nome, traz o carisma.
As coisas foram acontecendo na sua vida quando lhe davam jeito, diz. Como cientista que é, tem a certeza que não há destino e que de todas as possibilidades, haverá sempre uns 20% de hipótese de acontecer na vida, também, aquilo que nós queremos.
Recebe-me num gabinete repleto de artigos científicos e revistas que o destacam, mas o que exibe com maior orgulho são dois desenhos, um da sobrinha de 4 anos e outro da filha de uma das suas colaboradoras.
Afável e convicto comunicador, fala de Ciência de uma forma que parece intrínseca à nossa vida. Vê-se até ao fim da vida a falar e escrever sobre ela, a Ciência, e está a preparar o guião de uma série de divulgação científica para televisão. Talvez depois dos 70 anos, quando tiver mais tempo, elabore um Manual de Imunologia para manter a sua ligação ao ensino. E sempre, mas sempre, manter a sua paixão pela Ciência, paixão que o arrebatou desde os tempos de miúdo.
“A Bioquímica tornou-se uma ideia concreta aos meus 14 anos. Tinha grande atração por entender a Natureza, quanto mais microscópica melhor”. A culpa foi de uma professora de físico-química que no 9º ano apareceu na sua vida. Ensinava muito para lá do que os estava nos livros e era diretora do grupo de teatro, onde também participou ativamente. Partilharam muito tempo juntos, o que permitiu que a professora “intoxicasse” os seus gostos para o futuro. Poucos anos a seguir, conhece também o mundo da Biologia Celular (nos 10 e 11º anos) e fica a perceber que Biologia e Química seriam o casamento perfeito. Isso levou-o a conhecer melhor a Bioquímica e foi uma conversa com a tia-avó, que lhe conta ter sido baby-sitter do Professor Catedrático de Bioquímica de Lisboa, o Professor Ruy Pinto, que fez a faísca final ao sobrinho neto Bruno. A tia apresentou-os.
Ruy Pinto, fundador da Bioquímica em Lisboa, doutorou-se em Oxford, durante a nossa ditadura, sob a supervisão direta do Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina, Sir Hans Krebs, e depois de regressar a Portugal criou o curso de Bioquímica na Universidade de Lisboa no início dos anos Oitenta. Uma década mais tarde vem a ser Professor de Bruno Silva Santos, por culpa da conversa proporcionada pela sua tia-avó. “Foi na casa de verão do Professor, na Caparica, fomos para o jardim e ele convenceu-me do quão importante era que eu seguisse Bioquímica”.
Nem a pressão de ter boas notas e de socialmente se considerar que os excelentes alunos têm todos de optar por Medicina demoveu Bruno Silva Santos de escolher a natureza da matéria viva, em vez da natureza do corpo humano. Precisava de descobrir as coisas, indo até à raiz dos problemas e por isso fez apenas uma escolha na lista de candidaturas: Bioquímica. Entrou e fez o curso, mas percebeu que esse era só um primeiro passo para chegar ao ponto onde hoje investiga, a Imunologia. Agora havia que aplicar a matéria ao contexto, estudando o sistema imunitário e as suas respostas a infeções e tumores.
Foi em 1997 que um programa doutoral da Fundação Gulbenkian, em Biologia e Medicina, lhe permitiu, após um ano de cursos, escolher onde fazer o doutoramento. No final dessa formação teve de escrever um projeto e procurar um laboratório, fez um inter-rail pela Europa para conhecer 8 laboratórios e decidiu mudar-se para o Reino Unido. “Aquela minha pergunta, houve um cientista importante que a achou muito interessante e me disse que iria apostar na investigação nessa área”.
Dos sete anos e meio que ficou em Londres, os primeiros quatro foram no Cancer Research UK e os restantes no Kings College, onde fez o seu pós-doutoramento. Londres vincou a sua vida. Foi onde teve a primeira casa, onde cortou o cordão umbilical com a família e viveu a sua primeira relação séria. Foi em Londres que soube o que queria ser como adulto. Nos últimos anos nesta cidade, questionou-se se queria continuar ali, assumindo que, se o fizesse, ficaria sempre na sombra do seu mentor. O seu espírito de liderança e a vontade de contribuir para o desenvolvimento da Ciência portuguesa, aliados às saudades da família, trazem-no de volta para Lisboa, com 32 anos e já como Professor convidado da Faculdade de Medicina, na especialidade de Imunologia. Nessa altura conhece o iMM e percebe que a investigação na área do cancro era, precisamente, onde se queria encaixar. Candidatou-se a investigador do iMM e depois de acertar agulhas com a Diretora, Carmo Fonseca, e com o Presidente, João Lobo Antunes, começa, no arranque de 2006, o seu laboratório de investigação. A grande dúvida que o acompanhava era se conseguiria ser um investigador bem-sucedido, que pudesse implementar uma estratégia e recrutar pessoas. Mas para isso precisava de financiamentos. Uma Instituição que viria a marcar o início da sua carreira em Portugal e que se chamava EMBO – European Molecular Biology Organization – tinha um programa a começar para Investigadores que quisessem ir trabalhar para os seus países de origem. Candidatou-se e foi um dos primeiros selecionados a receber uma bolsa. Consegue assim financiamento para 5 anos que são sempre os críticos para começar a fazer Ciência independentemente de supervisores, explicou. Mas como a sorte e o mérito têm andado sempre de mão dada na sua vida, Bruno Silva Santos recebeu mais duas Bolsas de programas da FCT. Dos 3 projetos candidatos a bolsa, todos ganharam. De repente, em 2007, altura em que chega o dinheiro, o seu laboratório começa a ficar mais preenchido, chegando aos 22 de hoje.
Bruno Silva Santos descobriu, com a ajuda da sua equipa, que, através da injeção de milhões de um tipo especial de glóbulos brancos, os linfócitos T, se poderia travar a leucemia em modelos animais.
Foi sobre esta descoberta que falámos até ao fim.
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Se a leucemia é o excesso de glóbulos brancos, como é que encontrou precisamente nesses glóbulos brancos a possível cura para a doença?
A leucemia é a proliferação de alguns glóbulos brancos doentes, isso significa que têm mutações genéticas, o que os torna particularmente agressivos, e que vão interferir com a biologia dos órgãos. Isso leva, por exemplo, à falência da medula óssea. Ora nós agarramos nos “soldados da paz”, glóbulos brancos saudáveis, sem mutações genéticas, e em grande número, podemos fazer com que eles travem os malignos.
O nosso processo foi pegar em glóbulos brancos – chamados linfócitos T – e produzi-los em número suficiente para enfrentar o cancro. Num doente com cancro, os seus linfócitos T estão a perder a batalha, então o que nós fazemos é tirar sangue para agarrar nestas células e reeducá-las em laboratório. Leva 2 a 3 semanas para aumentarmos o seu potencial de ganharem a batalha. Os linfócitos T recebem uma série de compostos químicos e biológicos e multiplicam-se para gerar um bilião de células reeducadas para seguir a batalha. O cancro tem, à partida, uma grande vantagem porque contém muitas células a dividirem-se rapidamente, que nós temos de destruir com um “exército” suficientemente forte. E sabe que, no cancro, não há Aljubarrotas, não há exércitos pequenos a derrotar os grandes, tem de ser um exército imunitário também grande.
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E na tentativa versus erro, quantas tentativas precisou para acertar o número exato do exército?
2488 combinações, autênticas “receitas” testadas ao longo de dois anos. O meu pós-doutorando, Daniel Correia, que é muito importante nesta história, foi o primeiro elemento no meu laboratório e foi incansável a testar as combinações. 2488 é o nosso número mágico e o número total de tentativas diferentes para chegar à fórmula que nos dá a quantidade e qualidade ideais de linfócitos T. Estas células têm de ser capazes de matar células tumorais. Testámos no laboratório, in vitro, em pequenas caixinhas de plástico, os efeitos dos linfócitos T sobre tumores, e só se os linfócitos produzidos com uma dada “receita” matassem eficazmente o tumor é que seguíamos em frente. Foi assim que chegámos à receita final que depois testámos em ratinhos, e provámos que esta terapia permite controlar o tumor - recordo que é em ratinhos, mas que nos dá a esperança de o mesmo acontecer nos humanos.
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E entretanto já houve uma intenção de compra desta terapia?
Esta receita final foi o que patenteámos. Estamos na fase de intenção de compra, com um grupo britânico. Tudo correndo bem, vai ser comprada daqui por 1 ou 2 meses, e eles não estão a comprar só a descoberta, mas também a nossa empresa. O Daniel irá viver para Londres e leva a tecnologia com ele (tecnologia para todo o tipo de máquinas que precisam de reproduzir estes glóbulos brancos a serem administrados em humanos, garantindo que não há contaminação com bactérias ou vírus) e eu mantenho-me cá e vou estar em contacto por Skype e algumas viagens, para auxiliar a equipa britânica. O que vamos fazer é produzir as células para serem administradas a doentes, são os chamados ensaios clínicos e que marcam a Fase 1. Após terem a certeza e a segurança no tratamento, passamos à Fase 2, para testar a sua eficácia. Esperamos daqui a um ano estar na clínica a tratar os doentes.
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Podemos estar a falar de um feito extraordinário…
(Suspira de ansiedade) Esperemos que assim seja. Nós temos muita fé que a nossa terapia vá ser muito segura porque, como todos sabem, as terapias convencionais para o cancro têm muitos efeitos secundários; na quimioterapia as pessoas perdem o cabelo, vomitam, emagrecem, podem ficar com um mal-estar muito grande. A imunoterapia é muito menos tóxica porque são células nossas, a única questão é que se pode virar contra nós, porque os linfócitos descontrolados podem ter efeito inflamatório nos nossos próprios órgãos, esse é o maior efeito secundário a controlar. A autoimunidade tem como se controlar e nunca leva à queda do cabelo, não causa, de todo, o mesmo nível de perda de peso ou fraqueza, apesar de poder causar diarreia ou problemas de fígado. Isto sobre imunoterapias já usadas em humanos, pois a nossa foi só testada ainda em ratinhos e neles não teve efeitos secundários. Agora vamos ver como se porta nos humanos, quer em termos de segurança quer de eficácia. Mesmo que a nossa descoberta possa não ser já a cura, seria ótimo se permitisse uma melhoria clara em termos de prolongamento da vida, com qualidade de vida.
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Quando fala em prolongar a vida com qualidade, mesmo havendo um cancro, significa que esta doença passa a ser crónica?
Sim, é uma perspetiva muito real. Os oncologistas claramente querem que a doença passe a ser crónica. Mas nós imunologistas temos tanta fé no sistema imunitário que acreditamos na cura. No melanoma avançado, que é um cancro muito específico, existem casos de doentes tratados com imunoterapia que estão livres de doença após 10 anos, esperando-se que o tumor não volte. E o nosso objetivo é fazer isto com vários tipos de cancro. E porque é que dei o exemplo do melanoma? Porque ele tem células tumorais muito aberrantes, e portanto o sistema imunitário é particularmente capaz de detetar o cancro. Já noutros cancros, como por exemplo o da mama ou o do pâncreas, as células tumorais são tão parecidas com as saudáveis (do órgão), que os linfócitos não as distinguem facilmente.
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Falamos então de uma doença muito “inteligente”?
Sim... O problema é que o cancro se desenvolve a partir de células que são nossas, enquanto que uma infeção viral, por exemplo, advém de um vírus que é muito diferente das nossas células, é logo detetado. No cancro, as células são ligeiramente deturpadas, mas são nossas. Como é que o sistema imunitário consegue detetar essa ligeira deturpação? Imagine o seguinte quadro, os nossos linfócitos têm uns recetores, é como se fossem umas mãos que “sentem” as nossas células e que, quanto mais aberrantes (devido a mutações) estas forem, mais fáceis são de identificar. A imunoterapia é precisamente a tentativa de educar o sistema imunitário a identificar e a matar as células más e a deixar as boas.
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Mesmo já estando no rumo certo, a sua viagem não termina aqui, pois não?
De todo. Eu quero estudar mais os linfócitos T, não só no cancro, mas desde a sua formação no Timo. Sabe o que é o Timo? É um órgão que está em cima do coração e o único que produz este tipo de glóbulos brancos, os linfócitos T, cujo “T” vem de Timo. Eu quero perceber melhor como é que estas células nascem e se tornam “boas matadoras” de tumores ou de vírus. Estes linfócitos T, após sair do Timo, espalham-se pelo corpo e ficam à espera de infeções ou tumores para agirem. Temos ainda muito para saber sobre o percurso de um linfócito T, desde que nasce no Timo até que entra numa massa tumoral para a tentar destruir - por isso o caminho é longo.
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Há outra coisa muito perversa no cancro é que cada pessoa pode ter quase a sua doença personalizada. Como é que se combate isso?
Há um aluno nosso, do programa GAPIC, o Diogo Maia e Silva, que ganhou este ano a melhor tese do Mestrado Integrado em Medicina, que estudou precisamente a heterogeneidade tumoral. Nós podemos ter uma fórmula ótima para matar um tipo de célula tumoral dominante, mas se o cancro contiver vários outros tipos de células malignas diferentes, algumas delas resistirão à terapia e perpetuarão a doença. Não podemos ter uma visão simplória do tratamento, pois o tumor nunca é homogéneo, pelo que uma estratégia não chega para lidar com todas as células tumorais. É por isso que cada vez mais há tratamentos combinados para o cancro, em que usamos várias estratégias. Daí que a imunoterapia não é única no tratamento, mas sim complementar à quimio e radioterapias. Só usando várias estratégias é que conseguimos alvejar as células-mãe do cancro.
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Como é que alguém que passou a vida a investigar a forma de combate ao cancro, pode um dia fazer parte da estatística que diz que uma em cada três pessoas, terá cancro? Como é que se lida com isso?
Sou algo bipolar nessa questão. Eu não tenho medo da morte, convivo bem com a ideia. Ser cientista ajuda-me a aceitar a sua inevitabilidade. Se eu morrer amanhã num acidente, imagine, morri feliz porque vivi muito bem a minha vida. Os 44 anos que vivi até agora foram muito felizes. Por isso, se pensar em abstrato na morte, lido muito bem com ela, mas se for por causa do cancro já me causa algum desconforto, pois sei como é difícil o trajeto. Mas de resto lido bem com a minha morte. Há uma poesia nisto, nós somos um poema e como um poema também tem de acabar, nós somos a última estrofe que acabou.
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Joana Sousa
Equipa Editorial