Investigação e Formação Avançada
Oncologia e Cancro - Unidade de Biologia do Cancro | Prof. João Taborda Barata
foto: site IMM
João Taborda Barata
Diretor da Unidade de Biologia do Cancro
Unidade de Biologia do Cancro: porquê
No Dana-Farber Cancer Institute, em Boston, onde realizei há mais de dez anos o meu doutoramento, os elevadores que dão acesso aos vários andares de laboratórios, bem como aos pisos de atendimento e tratamento de doentes, possuiam frequentemente panfletos a avisar da existência de sessões de terapia através da música. Não se pretende iludir as pessoas que sofrem de cancro com a falsa miragem de uma cura que chegue serenamente, colada às notas de um harmonioso concerto para violino e orquestra. O acompanhamento dos doentes e respetivas familias é constante e humano, mas não pode evitar o sofrimento que a doença e o próprio tratamento implicam. A cura, quando acontece, nunca é rapida nem suave. A música é apenas um paliativo, um contraponto à agressividade necessária das terapias atualmente existentes, que não conseguem eliminar as células tumorais sem afetar, em maior ou menor grau, as células normais.
É por isso que não só naquele Instituto, mas também no Instituto de Medicina Molecular (IMM) e em tantos outros centros espalhados pelo Mundo, numerosos laboratórios se dedicam à investigação científica, básica ou clínica, na área do cancro. Porque é através dela que se poderão encontrar os caminhos que verdadeiramente erradiquem a doença ou que, na pior das hipóteses, minimizem a necessidade do uso de terapias que afetam a qualidade de vida a curto e a longo prazo. É também por isso que, em abril de 2006, a Unidade de Biologia do Cancro do IMM foi criada. Procuramos, como tantos outros, conhecer as razões que levam uma célula a abandonar a ordem, a desviar-se, a deixar de executar um programa que a Evolução levou milhões de anos a aperfeiçoar. De certa forma, como noutras doenças, o homem trava uma luta quotidiana contra o seu próprio corpo, ou melhor, contra a ignorância que tem do seu próprio corpo. E será do somatório de grandes e pequenas descobertas, muitas delas feitas por indivíduos que provavelmente não ficarão na História, que se saberá porque é que o corpo, máquina quase-perfeita, se deixa iludir, fechando os olhos numa aparente inércia suicida, à transformação que está a ocorrer dentro dele. Evidentemente, quanto melhor se conhecer a biologia de um cancro, mais perto se estará da sua cura.
Reflexos: o meio extracelular e as cascatas intracelulares
Qualquer pessoa que tenha trabalhado num laboratório com células tumorais recolhidas diretamente de um doente, ter-se-á deparado com um paradoxo: as mesmas células que dentro do corpo humano se multiplicam sem parar, morrem, regra geral, rapidamente quando postas em cultura, ou seja, não possuem intrinsecamente o "elixir da longa vida". O que acontece é que as células malignas precisam, durante algum tempo, talvez sempre (embora esta afirmação seja bastante controversa), de ter sinais exteriores que suportem a sua existência, numa peculiar interação entre o que aparentemente ainda está são no organismo e o que já sofreu aquilo a que chamamos de transformação maligna. Essa interação depende da ativação de cascatas bioquímicas intracelulares conhecidas por vias de transdução de sinal. Há vias de transdução de sinal que são tão importantes para a sobrevivência e proliferação de uma célula, que são frequentemente recrutadas pelas células tumorais e se tornam, em última análise, essenciais para a expansão do cancro, estando permanentemente ativadas nas células malignas – quer em resultado de alterações genéticas na própria célula tumoral, quer em resultado de sinais do ambiente onde a célula se encontra. Isto, por outro lado, significa que potencialmente, poderemos eliminar um cancro ao inibir essas vias de sinalização. Por isso mesmo, a Unidade de Biologia do Cancro tem vindo a estudar quais as vias de sinalização que são indispensáveis para a génese e manutenção tumorais. Acreditamos que assim não apenas teremos um melhor conhecimento da doença mas poderemos também desenvolver novas armas antitumorais, que sejam mais seletivas e eficazes.
O passado
A Unidade de Biologia do Cancro é constituída por um grupo de investigadores que podem conhecer aqui e que estão envolvidos em diferentes projetos. Para se perceber o que estão a fazer no presente e aquilo que irão explorar no futuro, sem cansar quem tiver tido a paciência de chegar até esta linha, tenho de dar dois exemplos rápidos da investigação que fizemos no passado.
Em muitos tipos de cancro, mutações genéticas do gene PTEN, que é um supressor de tumores, levam à perda de expressão da proteína PTEN. No entanto, nós demonstrámos em 2008, num estudo publicado no Journal of Clinical Investigation, que PTEN está inativado em células malignas de pacientes com leucemia linfoblástica aguda de células T (LLA-T) devido a mecanismos não genéticos. Apesar do gene não apresentar qualquer mutação, PTEN deixa de funcionar devido a alterações na proteína. Este estudo revelou que há uma outra proteína, chamada CK2, que é responsável pelo processo de inativação de PTEN e que, felizmente, pode ser inibida farmacologicamente. Nesse mesmo ano, o nosso trabalho foi distinguido com o Prémio Pfizer de Investigação Básica, da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, e com o Prémio Pulido Valente Ciência, da FCT. Dois anos mais tarde, publicámos um outro estudo revelando que este mecanismo não genético de inativação de PTEN por CK2 não se restringe a LLA-T, estendendo-se a leucemia linfática crónica (aqui).
Grande parte dos nossos projetos inside sobre o papel da interleucina 7 (IL-7), um fator produzido pelo microambiente onde a leucemia se desenvolve, na progressão de LLA-T. Tendo demonstrado, em 2011, que a IL-7 acelera o processo de expansão tumoral, num artigo publicado na Cancer Research (http://cancerres.aacrjournals.org/content/71/14/4780.long), viemos nesse mesmo ano a descobrir que cerca de 10% dos doentes pediátricos com LLA-T apresentam mutações no recetor da IL-7 (IL7R), que levam à ativação permanente de determinadas vias de transdução de sinal essenciais para a viabilidade e proliferação das células malignas. Este último estudo foi publicado na revista Nature Genetics, tendo sido distinguido com o Prémio Pfizer de Investigação Clínica em 2011 e com o Prémio para o melhor artigo de Imunologia 2012, da Sociedade Portuguesa de Imunologia, tendo originado um Voto de Congratulação da Assembleia da República pela excelência da investigação científica em Portugal, reconhecendo o trabalho desenvolvido pela Unidade de Biologia do Cancro.
O reconhecimento mais recente do trabalho conduzido no nosso laboratório surgiu este ano através da atribuição da Medalha de Serviços Distintos Grau “Prata” do Ministério da Saúde.
Futuro(s) Prémios e distinções deixam-nos, evidentemente, muito orgulhosos e honrados, e servem de motivação adicional, mas nada seriam se não estivessem ligados ao futuro, porque é lá que, todos os dias, na verdade, trabalhamos. Que projetos temos em mãos afinal? Que futuro é esse? É um futuro de múltiplas facetas, mas um único objetivo, em que queremos, por exemplo, tentar entender se a ativação de vias de transdução de sinal, reguladas por PTEN e por CK2, poderá ter valor prognóstico em leucemia aguda, nomeadamente utilizando metodologias que sejam facilmente transportáveis para a prática clínica. Nesse sentido, temos colaborado com o Serviço de Hematologia do HSM e Unidade de Citometria de Fluxo do IMM. Colaborações e interações no âmbito do Centro Académico de Medicina de Lisboa (CAML), envolvendo valências distintas e complementares, são importantíssimas e também elas devem constituir parte cada vez estruturante do nosso futuro comum. A ciência faz-se precisamente de sinergias e definha no isolamento. Diversas colaborações com outros grupos do IMM, como as Unidades de Imunologia Clínica, Imunologia Molecular, ou Biologia Celular, entre outras, e com instituições como o Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, Hospital dos Capuchos, e muitos centros de investigação internacionais, têm sido cruciais para o nosso trabalho e certamente continuarão a sê-lo no futuro. Futuro que também passa por descobrir novos mecanismos de regulação de PTEN; entender como microRNAs podem acelerar ou atrasar o desenvolvimento de leucemia em determinados contextos; definir o modo como as vias de transdução de sinal ativadas por IL7R mutado podem diferir ou não daquelas ativadas pela IL-7; identificar novos oncogenes e supressores tumorais que estejam envolvidos em LLA-T; desvendar se existem e quais são as características das chamadas células leucémicas estaminais em leucemia T que possam explicar a razão para resistência a tratamento e recidiva; ou testar o efeito antitumoral em modelos animais de determinados agentes (por exemplo contra CK2).
Naïvidades
Escrevi acima que, em última análise, o objetivo de todos os nossos projetos é um único. É talvez um pouco naïve e já o apresentei de diversas formas: tentar entender melhor a biologia da doença para através desse conhecimento, desenvolver novas estratégias terapêuticas. Já os Antigos sabiam que a música tem o poder de fazer sorrir os deuses. Tem certamente o poder de nos fazer sorrir a nós. Por isso, presumo que os elevadores do Dana-Farber Cancer Institute continuem a ter no seu dorso pequenos papéis coloridos que avisam quem por eles passa da existência de sessões de música para mitigar o sofrimento. Entretanto, continuamos a busca, para que um dia esses pequenos papéis (e o nosso próprio trabalho) não sejam necessários. Demasiado naïve? Na Unidade de Biologia do Cancro gostamos de desafios e trabalhamos diariamente para demonstrar que talvez não.