Espaço Ciência
A Geriatria como Resposta à Transformação Demográfica em Medicina
Luís Mieiro
Interno do Internato Complementar em Medicina Interna, Serviço de Medicina III, Hospital Pulido Valente, Centro Hospitalar Lisboa Norte
Colaborador da Unidade Universitária de Geriatria
Assistente livre de Introdução às Doenças do Envelhecimento, Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa
luis.mieiro@gmail.com
A Geriatria como Resposta à Transformação Demográfica em Medicina: Experiência nos Hospitais Universitários de Genebra
Desde cedo, na minha formação pré-graduada, fui exposto à abordagem do doente idoso. Enquanto aluno Erasmus em Paris, no Hôpital Henri Mondor, foi-me proposto complementar os estágios nas diversas especialidades médicas com turnos, durante a tarde, no Serviço de Urgência. Na altura, considerei tratar-se de uma oportunidade para consolidar não só os conhecimentos adquiridos, mas também para treinar o método francófono de colher histórias clínicas. Rapidamente compreendi que no Serviço de Urgência teria a oportunidade de contactar com todas as especialidades e que este diálogo constante me faria crescer profissionalmente. Foi neste contexto que conheci a Geriatria e a sua missão e compromisso no restabelecimento da autonomia do doente idoso, tornando-se numa área apelativa em todos os sentidos.
A transformação demográfica é uma realidade demonstrada que não carece de mais evidência. Cada recenseamento populacional apenas confirma aquilo que poderíamos ter predito há 60 anos. O baby boom do pós-guerra aliado à revolução trazida pela descoberta da penicilina trouxeram-nos hoje um verdadeiro elderly boom invertendo a pirâmide demográfica. Era expectável e muitos países adaptaram-se rapidamente a esta transformação. Não é por acaso que a Geriatria nasceu como especialidade médica no Reino Unido, pela mão de Marjorie Warren que estruturou a avaliação do doente idoso, e que rapidamente atravessou o canal e o oceano.
Escolhi Medicina Interna por não me rever em mais nenhuma especialidade, porque acredito na sua abrangência e na visão holística do doente. Mas foi precisamente na Medicina Interna que me senti limitado na abordagem do doente idoso. Doentes independentes, que vivem no seu domicílio, a quem um evento agudo os traz ao hospital, os deita numa cama e daí a torná-los dependentes pouco falta. É uma cura que traz limitação, perda de autonomia e declínio rápido da funcionalidade. Esta realidade quotidiana que não aceito e o apoio e entusiasmo que recebi do Senhor Professor Dr. Gorjão Clara, à data meu diretor, levaram-me até ao Hôpital des Trois-Chêne em Genebra para fazer um estágio em Geriatria e aprender não só a gerir o envelhecimento fisiológico normal, mas também a patologia geriátrica e as atitudes preventivas recomendadas nesta coorte populacional.
O Hôpital des Trois-Chêne é o hospital geriátrico dos Hospitais Universitários de Genebra e um dos grandes centros de investigação em Geriatria a nível mundial. Como médico convidado foi-me proposto integrar as unidades assistenciais tal como qualquer outro médico interno. O hospital conta com 18 unidades funcionais: metade das unidades são de Geriatria, onde são admitidos os doentes idosos com patologia médica aguda sem prejuízo significativo da sua autonomia; a outra metade das unidades são de Medicina Interna de Reabilitação, onde são admitidos os doentes com uma ou mais patologias agudas ou crónicas agudizadas mas que condicionam perda de autonomia. Dentro das unidades de reabilitação há algumas especializadas em patologia geriátrica mais prevalente e que necessita de uma abordagem intensiva tais como: a Unidade de Doenças Ósseas, a Unidade de Demência e Patologia Aguda e a Unidade Geriátrica Integrada Médico-Psiquiátrica.
No início do estágio integrei a Unidade de Doenças Ósseas onde são admitidos não só os doentes para pós-operatório e reabilitação de fraturas, mas também doentes com fraturas para tratamento conservador, que sofreram quedas e que têm elevado risco de queda. A todos os doentes é necessário fazer uma avaliação geriátrica global (AGG) que é composta por: Mini-Mental State Examination, Teste do Relógio, Escala de Depressão Geriátrica, Índices de Independência nas Atividades de Vida Diária básicas e instrumentais, Mini Nutritional Assessment – Short Form, Timed Up-and-Go Test, Five Times Sit-to-Stand Test, Escala de Tinetti para marcha e equilíbrio e ainda o cálculo do risco de fratura segundo o FRAX®. A intervenção é sempre personalizada e é construída com base nos défices encontrados em cada item da AGG. Ao mesmo tempo, todas as intercorrências médicas são otimizadas permitindo que o doente possa ser mais participativo na sua reabilitação. Por exemplo, um doente com doença pulmonar obstrutiva crónica e insuficiência cardíaca não conseguirá cumprir um programa de fisioterapia intensiva enquanto não tiver o seu estado mórbido o mais compensado possível. Mas mesmo com as suas doenças crónicas compensadas o benefício máximo da sua reabilitação não será obtido enquanto não forem identificados e melhorados os seus défices nutricionais, vitamínicos e sensoriais, já para não falar nas implicações do défice cognitivo e da depressão. Dos doentes internados nesta unidade, tinha que identificar os que cumpriam critérios para integrar o programa CHEOPS (acrónimo em francês para Quedas e Osteoporose), um programa de fisioterapia e terapia ocupacional intensiva que visa o restabelecimento da maior independência possível nas atividades de vida diária. Os doentes são treinados em todas as atividades testadas pelos índices de independência, isto é, vestir, higiene íntima, transferência, banho, controlo de esfíncteres, alimentação, gestão de medicação, utilizar os transportes públicos, fazer compras ou preparar uma refeição sem acidentes, entre outras.
Na segunda parte do meu estágio integrei a unidade que recebe os doentes já com diagnóstico de demência e que são admitidos por patologia médica aguda. É uma unidade com enfermeiros especializados e com estratégias de intervenção adequadas a este tipo de doença. Aqui tive a oportunidade de conhecer a indicação de inúmeros testes neuropsicológicos e de aprender a avaliar clinicamente uma demência consoante os défices encontrados. É um mundo fascinante, em que os fármacos de que dispomos são poucos e de eficácia limitada, mas em que uma intervenção, focando o meio em que o doente está inserido, previne eficazmente as complicações e oferece melhor qualidade de vida.
Foi-me ainda proposto analisar todos os episódios de contenção física do hospital durante um período de 15 meses e comparar as diferenças encontradas entre a unidade de demência e o resto do hospital. Os resultados deste trabalho foram por mim apresentados no 7o Congresso da European Union Geriatric Medicine Society em Setembro deste ano em Málaga.
Além de ter aprofundado os meus conhecimentos em Geriatria, esta experiência trouxe-me a oportunidade de contactar com uma abordagem da realidade presente e compreender por que é que alguns centros são, de facto, de excelência.
Interno do Internato Complementar em Medicina Interna, Serviço de Medicina III, Hospital Pulido Valente, Centro Hospitalar Lisboa Norte
Colaborador da Unidade Universitária de Geriatria
Assistente livre de Introdução às Doenças do Envelhecimento, Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa
luis.mieiro@gmail.com
A Geriatria como Resposta à Transformação Demográfica em Medicina: Experiência nos Hospitais Universitários de Genebra
Desde cedo, na minha formação pré-graduada, fui exposto à abordagem do doente idoso. Enquanto aluno Erasmus em Paris, no Hôpital Henri Mondor, foi-me proposto complementar os estágios nas diversas especialidades médicas com turnos, durante a tarde, no Serviço de Urgência. Na altura, considerei tratar-se de uma oportunidade para consolidar não só os conhecimentos adquiridos, mas também para treinar o método francófono de colher histórias clínicas. Rapidamente compreendi que no Serviço de Urgência teria a oportunidade de contactar com todas as especialidades e que este diálogo constante me faria crescer profissionalmente. Foi neste contexto que conheci a Geriatria e a sua missão e compromisso no restabelecimento da autonomia do doente idoso, tornando-se numa área apelativa em todos os sentidos.
A transformação demográfica é uma realidade demonstrada que não carece de mais evidência. Cada recenseamento populacional apenas confirma aquilo que poderíamos ter predito há 60 anos. O baby boom do pós-guerra aliado à revolução trazida pela descoberta da penicilina trouxeram-nos hoje um verdadeiro elderly boom invertendo a pirâmide demográfica. Era expectável e muitos países adaptaram-se rapidamente a esta transformação. Não é por acaso que a Geriatria nasceu como especialidade médica no Reino Unido, pela mão de Marjorie Warren que estruturou a avaliação do doente idoso, e que rapidamente atravessou o canal e o oceano.
Escolhi Medicina Interna por não me rever em mais nenhuma especialidade, porque acredito na sua abrangência e na visão holística do doente. Mas foi precisamente na Medicina Interna que me senti limitado na abordagem do doente idoso. Doentes independentes, que vivem no seu domicílio, a quem um evento agudo os traz ao hospital, os deita numa cama e daí a torná-los dependentes pouco falta. É uma cura que traz limitação, perda de autonomia e declínio rápido da funcionalidade. Esta realidade quotidiana que não aceito e o apoio e entusiasmo que recebi do Senhor Professor Dr. Gorjão Clara, à data meu diretor, levaram-me até ao Hôpital des Trois-Chêne em Genebra para fazer um estágio em Geriatria e aprender não só a gerir o envelhecimento fisiológico normal, mas também a patologia geriátrica e as atitudes preventivas recomendadas nesta coorte populacional.
O Hôpital des Trois-Chêne é o hospital geriátrico dos Hospitais Universitários de Genebra e um dos grandes centros de investigação em Geriatria a nível mundial. Como médico convidado foi-me proposto integrar as unidades assistenciais tal como qualquer outro médico interno. O hospital conta com 18 unidades funcionais: metade das unidades são de Geriatria, onde são admitidos os doentes idosos com patologia médica aguda sem prejuízo significativo da sua autonomia; a outra metade das unidades são de Medicina Interna de Reabilitação, onde são admitidos os doentes com uma ou mais patologias agudas ou crónicas agudizadas mas que condicionam perda de autonomia. Dentro das unidades de reabilitação há algumas especializadas em patologia geriátrica mais prevalente e que necessita de uma abordagem intensiva tais como: a Unidade de Doenças Ósseas, a Unidade de Demência e Patologia Aguda e a Unidade Geriátrica Integrada Médico-Psiquiátrica.
No início do estágio integrei a Unidade de Doenças Ósseas onde são admitidos não só os doentes para pós-operatório e reabilitação de fraturas, mas também doentes com fraturas para tratamento conservador, que sofreram quedas e que têm elevado risco de queda. A todos os doentes é necessário fazer uma avaliação geriátrica global (AGG) que é composta por: Mini-Mental State Examination, Teste do Relógio, Escala de Depressão Geriátrica, Índices de Independência nas Atividades de Vida Diária básicas e instrumentais, Mini Nutritional Assessment – Short Form, Timed Up-and-Go Test, Five Times Sit-to-Stand Test, Escala de Tinetti para marcha e equilíbrio e ainda o cálculo do risco de fratura segundo o FRAX®. A intervenção é sempre personalizada e é construída com base nos défices encontrados em cada item da AGG. Ao mesmo tempo, todas as intercorrências médicas são otimizadas permitindo que o doente possa ser mais participativo na sua reabilitação. Por exemplo, um doente com doença pulmonar obstrutiva crónica e insuficiência cardíaca não conseguirá cumprir um programa de fisioterapia intensiva enquanto não tiver o seu estado mórbido o mais compensado possível. Mas mesmo com as suas doenças crónicas compensadas o benefício máximo da sua reabilitação não será obtido enquanto não forem identificados e melhorados os seus défices nutricionais, vitamínicos e sensoriais, já para não falar nas implicações do défice cognitivo e da depressão. Dos doentes internados nesta unidade, tinha que identificar os que cumpriam critérios para integrar o programa CHEOPS (acrónimo em francês para Quedas e Osteoporose), um programa de fisioterapia e terapia ocupacional intensiva que visa o restabelecimento da maior independência possível nas atividades de vida diária. Os doentes são treinados em todas as atividades testadas pelos índices de independência, isto é, vestir, higiene íntima, transferência, banho, controlo de esfíncteres, alimentação, gestão de medicação, utilizar os transportes públicos, fazer compras ou preparar uma refeição sem acidentes, entre outras.
Na segunda parte do meu estágio integrei a unidade que recebe os doentes já com diagnóstico de demência e que são admitidos por patologia médica aguda. É uma unidade com enfermeiros especializados e com estratégias de intervenção adequadas a este tipo de doença. Aqui tive a oportunidade de conhecer a indicação de inúmeros testes neuropsicológicos e de aprender a avaliar clinicamente uma demência consoante os défices encontrados. É um mundo fascinante, em que os fármacos de que dispomos são poucos e de eficácia limitada, mas em que uma intervenção, focando o meio em que o doente está inserido, previne eficazmente as complicações e oferece melhor qualidade de vida.
Foi-me ainda proposto analisar todos os episódios de contenção física do hospital durante um período de 15 meses e comparar as diferenças encontradas entre a unidade de demência e o resto do hospital. Os resultados deste trabalho foram por mim apresentados no 7o Congresso da European Union Geriatric Medicine Society em Setembro deste ano em Málaga.
Além de ter aprofundado os meus conhecimentos em Geriatria, esta experiência trouxe-me a oportunidade de contactar com uma abordagem da realidade presente e compreender por que é que alguns centros são, de facto, de excelência.
