Espaço Ciência
Experiência na Área da Geriatria no Hospital de San Carlos em Madrid


Desde os meus primeiros anos de prática clínica, a abordagem e a relação com o doente idoso revelou ser algo muito gratificante para mim. O contacto diário com o doente idoso no âmbito da actividade assistencial em Medicina Interna despertou naturalmente uma apetência para a Geriatria, pelo que durante o internato médico dediquei parte da minha formação a esta área. Cedo percebi que os idosos são tipicamente abordados de forma idêntica aos outros adultos, sendo ignorados os problemas específicos desta faixa etária, que tanto condicionam a sua qualidade de vida. O desejo de aperfeiçoar a prestação de cuidados a este grupo etário foi o estímulo para realizar um estágio de Geriatria no âmbito do internato médico.
A inexistência de Serviços de Geriatria em Portugal, ao contrário da maioria dos países da Europa, implicava ter formação no estrangeiro. Tendo os hábitos culturais tamanha influência na génese dos problemas dos idosos, era claro que deveria escolher o país que culturalmente mais se assemelhasse a Portugal, indubitavelmente a Espanha. Por intermédio do Prof. Gorjão Clara, que me referenciou, foi-me permitido estagiar no Serviço de Geriatria do Hospital Clínico de San Carlos (HCSC) em Madrid, um dos maiores e mais antigos serviços de Geriatria de Espanha, que abrange distintas áreas de intervenção, sendo cientificamente muito activo e reconhecido para o ensino pré e pós-graduado, estando associado à Universidade Complutense de Madrid.
Assim, durante 3 meses tive o privilégio de estagiar no Serviço de Geriatria do HCSC, então dirigido pelo Prof. Ribera Casado. Contactei com uma equipa multidisplinar, passando pelos vários níveis assistenciais abrangidos.
Comecei pela Unidade de Internamento de Geriatria, criada há 27 anos. Apesar de estruturalmente ser semelhante às tradicionais enfermarias de Medicina, distingue-se por vários factores, dos quais saliento: a avaliação funcional sistemática de todos os doentes, permitindo a identificação e resolução adequada de problemas típicos do idoso (os síndromes geriátricos), geralmente ignorados pela Medicina Interna, apesar do seu impacto na qualidade de vida e autonomia do idoso; a maior sensibilidade para as especificidades diagnósticas e terapêuticas do idoso; a intervenção proactiva do Serviço Social com eficiente manejo dos vários recursos da comunidade, no sentido de optimizar a autonomia, segurança, qualidade dos cuidados de saúde e qualidade de vida do idoso. São assim admitidos doentes que beneficiem de avaliação geriátrica dada a sua fragilidade, compromisso funcional e/ou cognitivo ou presença de síndromes geriátricos. A metodologia de trabalho própria da Geriatria traduz-se assim não só no eficaz tratamento da patologia orgânica mas também na eficiente orientação dos problemas geriátricos, sem esquecer os problemas de índole social, que frequentemente são a causa de descompensação clínica, internamentos indevidamente prolongados ou mesmo reinternamento.


A constante preocupação da Geriatria em devolver autonomia e qualidade de vida aos idosos é notória na ampla existência de instituições ou departamentos dedicados à reabilitação, como por exemplo a Unidade de Média Duração do HCSC. Esta unidade deu-me a conhecer uma realidade inovadora: um plano de reabilitação funcional individualizado incluindo reabilitação e terapia ocupacional, capaz de restituir ao doente a sua autonomia e prevenir a sua deterioração funcional e cognitiva. Da inexistência de planos de manutenção e/ou reabilitação funcional, estruturados e sistemáticos, resulta que doentes previamente autónomos ao serem internados por uma patologia aguda se tornem completamente dependentes, o que frequentemente acontece com os idosos frágeis internados nas Enfermarias de Medicina.
Ainda no âmbito do internamento passei pela Unidade de Ortogeriatria. Espanha é um dos países pioneiros na criação destas unidades interdisciplinares, onde facilmente se constata a eficácia da abordagem médica sistemática e contínua do idoso frágil com pluripatologia e fractura do colo do fémur. É evidente a redução das complicações médicas peri-operatórias tão comuns nestes doentes as quais podem mesmo ser fatais, comprometendo o sucesso da cirurgia ortopédica. Sendo a preocupação central a recuperação da marcha, o doente é envolvido num processo de reabilitação intensivo e estruturado.
As Consultas de Geriatria foram outro dos níveis assistenciais pelo qual passei. A metodologia de trabalho é idêntica às Consultas de Medicina Interna. Contudo, enquanto que nas Consultas de Medicina Interna há uma focalização na patologia orgânica, na Consulta de Geriatria há uma focalização na situação funcional e qualidade de vida do idoso, sendo identificados e manejados os principais Síndromes Geriátricos. O recurso sistemático a escalas de avaliação validadas facilita o diagnóstico e embora pareça inicialmente moroso, permite uma abordagem global e multidimensional do doente. Após algum treino na aplicação dessas escalas, a sua utilização determina não só maior sensibilidade diagnóstica mas também rentabilização do tempo de consulta, não sendo por isso ferramentas exclusivas de investigação. Na consulta de Geriatria contactei também com um arsenal terapêutico específico para o idoso, alguns fármacos inexistentes em Portugal.
A passagem pela Unidade de Memória sensibilizou-me para a problemática da deterioração cognitiva mas sobretudo para a importância do seu rastreio e diagnóstico atempado, imprescindível para a eficácia das medidas farmacológicas e treino cognitivo, o que frequentemente falha em Portugal. A formação em geriatria é fundamental para minimizar esta lacuna.
Por fim, a Assistência Domiciliária é o melhor exemplo do paradigma da continuidade dos cuidados geriátricos, já que a impossibilidade do doente ir ao hospital pelo síndrome de imobilidade não determina a disrupção dos cuidados geriátricos. Se o doente não pode ir ao Hospital, vai o Hospital a casa. Além de garantir a qualidade dos cuidados médicos especializados prestados ao idoso, são identificadas eventuais adversidades existentes no domicílio, podendo-se prevenir acidentes desnecessários. Do ponto de vista médico, são detectados e corrigidos problemas precocemente, evitando agravamento dos mesmos, por vezes causa de internamento e de deterioração funcional irreversível.
Alguns aspectos foram transversais a todos os níveis assistenciais: a empatia com o idoso, a dedicação, o empenho e a qualidade técnica de toda a equipa multidisciplinar que diariamente contribui para a melhoria da qualidade de vida do idoso madrileno. Jamais esquecerei também a hospitalidade e simpatia com que me receberam, fazendo-me sentir parte da equipa. Grata por esta oportunidade, sinto-me agora menos sozinha neste percurso da Geriatria e com mais ânimo para tentar fazer algo pelos idosos em Portugal.
Sofia Duque
sofia.b.duque@gmail.com
