Espaço Aberto
A Questão da Rabdomiólise
Uma colega da Consulta de Toxicodependências contou-me que notava um franco aumento da afluência de toxicodependentes ao Serviço de Urgência, maugrado a escassez da resposta proporcionada, que se restringe à administração endovenosa de líquidos. Surpreendido, ela esclareceu-me que essa medida visa a prevenção da insuficiência renal aguda por rabdomiólise devida à agitação induzida pelo estado de privação. Ainda mais surpreendido fiquei, pois nunca vi tal situação em nenhum das centenas de dependentes de heroína em privação que pude observar na minha relação clínica com o problema das drogas desde os anos 80; também nunca vira recomendada esta medida em nenhum protocolo corrente num serviço de urgência hospitalar. Não se trata da correcção da medida – posso compreender o risco (distante) de um estado de agitação descompensar uma função renal e hepática periclitante.
Muitos toxicodependentes recorrem ao Hospital em situações limite, provocadas quer pela ruptura numa economia de fornecimento de drogas que os deixou depauperados, quer por intercorrências médicas e infecciosas complexas e, em geral, descuradas. Em qualquer caso, estes toxicodependentes são pessoas, por regra, oriundas da fracção mais marginal e vulnerável do ponto de vista físico, psíquico e sociocultural. As intervenções devem ponderar os ganhos e os riscos para os doentes que são, naturalmente, independentes das intenções (boas) dos interventores em saúde. Neste sentido, uma intervenção bem intencionada, mas desadequada ao contexto clínico pode revelar-se prejudicial ao doente.
Mesmo uma intervenção bem intencionada e virtualmente adequada pode ser desastrosa se não ponderar as condições de implementação e os maus usos a que pode dar lugar. É sabido, por exemplo, a interrupção do uso de drogas, em si mesma um passo terapêutico necessário, associar-se, por circunstâncias diversas, a um risco de acidentes graves de sobredosagem e morte.
Porque é que heroinodependentes em privação recorrem a um hospital que lhes proporciona um determinado tratamento de urgência, uma perfusão de líquidos, para uma perturbação crónica carecendo de um longo tratamento? Porque recorrem eles a esta intervenção desinserida de uma estratégia de intervenção perspectivada no quadro da longuíssima evolução das toxicodependências? Em primeiro lugar, porque, tal como muitos outros doentes, não escolhem muito racionalmente os tratamentos mais adequados. Usam, tal como muitos outros doentes, critérios de escolha baseados em benefícios a curto prazo, divulgados na sua rede social e disponibilizados de uma forma acessível. Em segundo lugar, o recurso a um serviço de urgência não significa um desejo de tratamento, tão só, tal como muitos outros doentes, uma necessidade de alívio do sofrimento, neste caso, dos seus sintomas de privação. Tratar-se-á de consumidores de drogas por via endovenosa em quem o prazer da droga se associou ao “vício da agulha”; alguns injectam qualquer coisa ou encontram prazer em aspirar e reinjectar o próprio sangue, “bombar”. A injecção associou-se ao prazer e ao alívio da privação, pelo menos isto eles encontram na solução hospitalar.
Mas pensando a situação ao nível do comportamento médico individual, ao nível hospitalar e institucional de um serviço público e a nível sistémico, isto é, sociopolítico, o que é que encontramos? O médico é confrontado com uma população da qual tem dificuldade em se aproximar, doentes que lhe solicitam uma intervenção e que se apresentam, frequentemente, muito deteriorados também do ponto de vista médico. O médico está treinado para responder e responde, mesmo porque seria mais difícil não responder. Responde proporcionando uma solução somática para uma perturbação grave do comportamento. Ele terá consciência do estado de saúde precário destas pessoas cuja marginalidade é evidente: oriundas de camadas desfavorecidas da população, atingidos precocemente por uma doença (a toxicodependência) que interferiu dramaticamente com a sua identidade pessoal, com a sua formação escolar, desde a adolescência encontraram uma socialização à margem ou criminal, nalguns casos, e cuja manifestação, já em final de carreira, as traz ao Serviço de Urgência deste Hospital. Este contacto com uma instituição de saúde é uma ocasião única para pessoas que vivem à margem e é uma ocasião institucional única para passar mensagens de saúde básicas ou despistar situações de riscos induzidos pelos consumos. Não é possível tratar a toxicodependência nesta situação clínica – o toxicodependente confronta o médico com a impotência terapêutica e com a necessidade de a assumir. A rabdomiólise convém a todos.
Em geral, o médico tenta não frustrar as expectativas do doente: que perspectiva alternativa à prevenção da rabdomiólise pode o médico ter num serviço de urgência face a um utente que lhe solicita ajuda? Na perspectiva do interesse do doente, podemos considerar a necessidade de um diagnóstico rápido das condições de saúde compatível com as solicitações num serviço de urgência, com vista a uma recomendação de eventual tratamento numa consulta de Medicina. Mais do que outros doentes que poderão fazer um diagnóstico da sua condição de saúde numa consulta de ambulatório, estes doentes estão, por regra, fora do sistema e nunca recorrerão a ele senão por o que avaliem como uma necessidade aguda. No contexto de uma população desfavorecida e altamente em risco, esta perspectiva não só se justifica como pode ser mais eficaz e compensadora do que intervir mais tardiamente sobre processos mórbidos com uma evolução surda. Relativamente à terapêutica do quadro de privação de opiáceos, a resposta clínica lógica deveria ser proporcionada por um serviço especializado que fornecesse um opiáceo de substituição numa lógica de baixo limiar, obviamente funcionando 24 horas por dia. É difícil compatibilizar a distribuição de metadona a esta população no quadro de um serviço de urgência. Assim, a terapêutica farmacológica é sintomática: as manifestações noradrenérgicas resultantes da desinibição do locus coeruleus pela privação de opiáceos podem ser controladas com clonidina, um alfa-2-agonista, enquanto a ansiedade associada à experiência de privação, uma experiência comum para um toxicodependente, pode ser controlada com benzodiazepínicos ou tranquilizantes, que têm uma rapidez de acção razoável por via oral. A utilização placebo da via endovenosa reforça comportamentos que queremos extinguir, já que acrescentam riscos ao consumo. O encaminhamento para uma consulta de toxicodependências de fácil acesso é recomendável e deverá constituir o cerne da intervenção.
Nuno Felix da Costa, FML
nunofelixdacosta@gmail.com