Espaço Aberto
Parentalidade em Famílias Multiproblemáticas
A família, enquanto núcleo promotor e facilitador do desenvolvimento humano, permite aos elementos que a compõem a realização de duas funções fundamentais: assegurar a continuidade do ser humano e possibilitar o equilíbrio entre o crescimento/individuação e a socialização de cada membro da família. Neste contexto, a família, sobretudo através dos pais, é uma das fontes mais importantes de socialização e educação (Alarcão, 2002; Relvas, 2000; Pinsof, citado por Ribeiro, 1997).
A avaliação da parentalidade, numa perspectiva ecossistémica, tem subjacente a existência de diferentes formas pelas quais os pais gerem as suas responsabilidades reflectindo a conjugação entre as suas capacidades e características, as necessidades de desenvolvimento da criança, e os recursos disponíveis (Calheiros, 2006; Pecnik, Daly, & Lalière, 2006; Voydanoff & Donnelly, 1998). Em condições normais, o ecossistema familiar mantém um estado de equilíbrio dinâmico entre os recursos e os níveis de stress (Corcoran & Nichols-Casebolt, 2004; Fuster & Ochoa, 2000). No entanto, como acontece a muitas famílias, designadamente as “multiproblemáticas”, por vezes as mudanças no exterior da família, combinadas com as mudanças no seio da família, produzem um estado de instabilidade ecológica, no qual o nível de stress excede os recursos pessoais e familiares disponíveis (Alarcão, 2002; Cancrini, Gregório & Nocerino, 1997; Neto, 1996).
Percebe-se, deste modo, que a função parental nestas famílias multiproblemáticas também se apresenta deteriorada, quer ao nível da vinculação quer ao nível da socialização. É frequente ser a figura materna quem ocupa uma posição-chave, correspondendo, frequentemente, o sucesso na vida à procriação dos filhos, hipervalorizando e apresentando expectativas elevadas quanto ao papel de mãe (críticas à interacção mãe-filho, são sentidas como desqualificação pessoal). É, no entanto, uma figura caótica, pois, por vezes, retira-se da sua posição central, oscilando entre a raiva e a depressão e acusa e defende, simultaneamente, o marido. A participação da figura masculina depende da posição que a mãe assume no sistema familiar, sendo mais provável quando a mãe assume uma posição de maior desligamento. A rede de suporte informal assume particular importância na educação das crianças, sendo muitas vezes assegurada por elementos da família alargada e/ou pessoas significativas. O poder acaba por se dispersar por várias figuras que assumem a liderança rotativamente, não obedecendo a um sistema de regras ou princípios claros nem congruentes. A natureza do poder parental torna-se assim confusa pois, por um lado a hierarquia de poder está comprometida pela deterioração grave ao nível do seu exercício e da sua distribuição; por outro, verifica-se que os pais oscilam entre um poder autoritário e absoluto, e períodos de demissão física ou psicológica relativamente às suas funções, que coincidem com a delegação das funções parentais num filho (filho parental). Entre pais e filhos é comum estabelecerem-se algumas alianças disfuncionais: a criança é colocada numa situação de divisão de lealdade, tendo de escolher entre um dos pais, ficando numa situação indesejável de poder relativamente ao pai, com o qual se alia (Alarcão, 2002; Linares, 1997; Minuchin et al., 1967; Minuchin, 1982; Neto, 1996; Sousa, 2005).
A combinação de parentalidade deteriorada, onde a vinculação emocional está desprezada pela utilização instrumental no vínculo parental, e desarmonia na conjugalidade, marcada pelos conflitos e frustração, resulta muitas vezes na utilização sexual das crianças. Da mesma forma que os impulsos eróticos, os impulsos agressivos dos pais fluem livremente, ficando os filhos sem o controlo das funções protectoras, o que resulta em maus-tratos físicos que emergem com frequência sobre um fundo de abandono e falta de cuidados (Alarcão, 2002; Cancrini et al., 1997; Linares, 1997; Sousa, 2005).
Nas crianças, a imprevisibilidade das respostas dos pais reflecte-se em falhas na segurança básica e interiorização de modelos inseguros de vinculação (não existem regras implícitas ou explícitas da conduta que possam ser interiorizadas). Estas aprendem, essencialmente, que as proibições do comportamento estão associadas ao poder, ou disposição emocional (normalmente de sofrimento) da mãe ou outra pessoa na posição de poder. Assim, necessitam dos pais para organizar as suas transacções interpessoais, o que lhes dificulta a verdadeira autonomização e a tranquila exploração do meio. A existência de várias figuras potencialmente parentais não significa ter pais, a maioria das vezes este factor, conjugado com a elevada vulnerabilidade do meio, estimula nas crianças e jovens sentimentos de medo, abandono, comportamentos defensivos e prematura auto-suficiência emocional. A ausência de normas nas interacções pais-filhos (estruturas de socialização) está associada à ausência de instruções sobre o modo das crianças se comportarem no futuro (desconhecimento das normas culturais), sendo potenciadora de conflitos com o meio. Ao nível dos adolescentes e jovens adultos, causa perturbações que propiciam a passagem ao acto e incompetência na integração nos sistemas externos. A patologia mais vulgar é do tipo sócio ou psicopático, aliada a problemas de adaptação escolar, delinquência, toxicomanias e alcoolismo (Alarcão, 2002; Fulmer, 1989; Linares, 1997; Minuchin et al., 1967; Neto, 1996; Sousa, 2005).
No entanto, existem também aspectos positivos na parentalidade em famílias multiproblemáticas. Há o reconhecimento de que os pais amam os filhos, embora sejam incompetentes na execução das tarefas, situação que advém dos seus próprios modelos de referência, os quais foram, também, instáveis e inseguros. Nestes, encontram-se reservas de lealdade e dependência, que mantêm unidos os diversos elementos (Minuchin, Colapinto & Minuchin 1998; Sousa et al, 2007; Sousa, 2005). A labilidade afectiva que caracteriza estas famílias e a intensidade da desarmonia e do conflito que experienciam, permitem criar vivências menos monolíticas, e fissuras através das quais se desenvolvem alguns mecanismos protectores e transformadores das insuficiências da função parental (e.g. a mãe que se zanga com o marido, perante a agressividade deste para com os filhos) (Alarcão, 2002; Linares, 1997; Sousa, 2005).
Deste modo é especialmente importante que os profissionais que trabalham com famílias mutiproblemáticas não negligenciem o funcionamento familiar na sua globalidade, pois poderá ser a porta de entrada para a mudança que permita à família promover o seu desenvolvimento enquanto ecossistema, bem como o desenvolvimento individual daqueles que a compõem.
Rute Isabel Ribeiro de Oliveira Piedade Valente
Mestranda do Mestrado de “Vitimização da Criança e do Adolescente” da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
rutevalente@netcabo.pt
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Bibliografia Alarcão, M. (2002). (Des)Equilíbrios Familiares (2ª Ed.). Coimbra: Quarteto Editora.
Calheiros, M. M. (2006). A Construção Social do Mau Trato e Negligência Parental: Do senso comum ao conhecimento científico. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Cancrini, L., Gregório, F., & Nocerino, S. (1997). Las familias multiproblemáticas. In M. Coletti, J. L. Linares (comp.), La intervención sistémica en los servicios sociales ante la família multiproblemática, la experiência de Ciutat Vella (pp. 45-82). Barcelona, Paidós.
Corcoran, J. & Nichols-Casebolt, A. (2004). Risk and Resilience Ecological Framework for Assessment and Goal Formulation. Child and Adolescent Social Work Journal, vol. 2, 3, pp. 211-235.
Fulmer, R. (1989). Lower-income and professional families: a comparison of structure and life cycle processes. In Carter, B.& McGoldrick, M.(eds.) The Changing family life cycle: A framework for family therapy. Boston: Allyn & Bacon.
Fuster, E. & Ochoa, G. (2000). Psicologia Social de la Familia. Barcelona, Paidós.
Linares, J. L. (1997). Modelo sistémico y familia multiproblemática. In M. Coletti, J. L. Linares (comp.), La intervención sistémica en los servicios sociales ante la família multiproblemática, la experiência de Ciutat Vella (pp. 23-44). Barcelona, Paidós.
Minuchin, P., Colapinto, J., & Minuchin, S. (1998). Working with Families of the Poor. New York: Minuchin, S. (1982). Famílias, Funcionamento & Tratamento. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul LTDA. Edição Original, 1974.
Minuchin, S., Montalvo, B., Guerney, B., Rosman, B., & Schumer, F. (1967). Families of the slums: an exploration of their structure and treatment. New York: Basic Books.
Neto, L. M. (1996). Familias Pobres y Multiasistidas. In Millán, M. (dir.), Psicologia de la familia – un enfoque evolutivo y sistémico (vol. 1, pp. 201-227). Valência: Promolibro.
Pecnik, N., Daly, M. & Lalière, C. (2006). Towards a Vision of Parenting in the Best Interest of the Child. Council of Europe, Parenting in Contemporary Europe - Committee of Experts on Children and Families Positive Draft report to the CS-EF (não publicado).
Relvas, A.P. (2000). O ciclo vital da Família. Porto: Edições afrontamento.
Ribeiro, M. T. (1997). Psicologia da família: A emergência de uma nova disciplina. In Marchand, H.; Pinto, H. R.(1997). Família – Contributos da Psicologia e das ciências da educação, Lisboa: EDUCA.
Sousa, L. (2005). Famílias Multiproblemáticas. Coimbra: Quarteto.
Sousa, L., Hespanha, P., Rodrigues, S., & Grilo, P. (2007). Famílias Pobres: Desafios à intervenção. Lisboa: Climepsi.
Voidanoff, P. & Donnelly, B. W. (1998). ‘Parents’ risk and protective factores of parental well-being and behavior’. Journal of Marriage and the Family, 60: 344-355.