António Nunes tem 66 anos e desde 1996 que é o responsável pela equipa que trata dos mortos do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, CHULN. Ingressou no Hospital em 1981 como auxiliar de ação médica e por aqui foi ficando. Foi fazendo formações e passou por vários serviços. Começou como maqueiro no bloco operatório, depois no serviço de urgência e mais tarde na obstetrícia. O gosto pela área da saúde vem desde cedo. Quando cumpria serviço militar era socorrista e, mais tarde, enquanto mecânico, conciliava a profissão com a vida de voluntário na Cruz Vermelha. Quando a oficina onde trabalhava prescindiu dos seus serviços, pensou que esta via podia ser o seu plano alternativo. “Estava na Cruz vermelha e vi afixado na parede um ofício onde pediam auxiliares de ação médica para o CHULN.” Decidiu tentar a sorte até porque, no seu íntimo achava que tinha boas hipóteses. “Já estávamos formados e habituados a trabalhar na área, portanto era uma mais valia.” Assim foi. Entrou como funcionário dos CHULN em 1981.
“Não me fez confusão. Já estava habituado a lidar com a morte”
Quinze anos depois, foi chamado e comunicaram-lhe que seria o próximo coordenador da morgue do hospital. “Questionei porquê eu? Havia pessoas mais velhas na casa que, na minha maneira de pensar, estariam à minha frente para ocupar o cargo.” Mas foi-lhe explicado que todos eles estavam a caminho da reforma e fazia sentido alguém mais jovem para poder coordenar e dar continuidade ao serviço. Assim foi. “Não me fez confusão. Já estava habituado a lidar com a morte”.
A equipa é constituída por 10 pessoas, todas do sexo masculino e em regime de rotatividade com o Hospital Pulido Valente.
Estão dois funcionários permanentes no Hospital de Santa Maria e um no Pulido Valente, 24 horas por dia, 365 dias do ano. A morgue não para, porque todos os dias morrem pessoas. A média mensal é de 150 a 170 pessoas e todas elas, sem exceção descem ao piso térreo, em forma do conhecido “H” arquitetónico do hospital.
Poucos vão até lá, apesar de haver 5 capelas, 3 delas católicas e mais duas ajustáveis aos ritos culturais. Este espaço pode ser disponibilizado às famílias que ali queiram realizar a cerimónia fúnebre. “As primeiras 2 horas são gratuitas”, informa. “Podem trazer um padre ou o capelão do hospital pode fazer esse serviço.”
Isto da morte ainda não é um assunto fácil!
Quando recebem um telefonema do hospital a avisar de que há um corpo para ser recolhido, um dos dois funcionários sobe pelo elevador e faz o caminho até ao respetivo serviço. O procedimento determina que seja feito o percurso mais curto e rápido para que “não andemos a passear pelo hospital.” É preferível evitar os olhares dos utentes, porque isto da morte ainda não é um assunto fácil. “Quando digo que trabalho na morgue as pessoas desviam-se e ficam a olhar de lado. Ainda é um tema que faz muita confusão. Hugo Lemos, outro funcionário que se junta à conversa, assente com a cabeça e acrescenta, “é só o contrário da vida,” numa tentativa de aligeirar o assunto. A ele também não lhe faz confusão lidar com este lado mais pesado e triste e, para justificar este à vontade pouco comum, conta que anteriormente trabalhou numa agência funerária. “Já lidava com mortos antes e já estou habituado.” Veio aqui parar há cerca de ano e meio e foi um dos poucos que acedeu vir para aqui trabalhar. “Não é fácil preencher vagas neste serviço”, alega António Nunes, “as pessoas não querem”, conclui Hugo.
“Se aqui viessem parar”… o que seria?
Os elevadores da Morgue têm acesso ao hospital, mas só os funcionários com código conseguem descer até este piso e as escadas terminam com uma porta de acesso restrito e zelando por alguma privacidade. “O que seria se as pessoas, por engano, aqui viessem parar, ”diz António Nunes, porque sabe que este assunto é tabu.
Pergunta se me incomoda ver mortos, porque para ele não há nada que meta medo na morte. Essa certeza de que os mortos não fazem mal a ninguém deve ser o segredo para nunca ter apanhado nenhum susto
Outra época complicada foi durante a pandemia. Muitas regras de segurança e receio por ser uma situação desconhecida, nunca antes vivida. Luvas e máscaras eram usadas em camadas e quando recolhiam um corpo no hospital o elevador não podia ser usado por mais ninguém em simultâneo e tinha de ser todo desinfetado até poder estar ao serviço novamente. “Foi muito difícil aquela época. Chegámos a ter aqui 70 corpos e até tivemos de pedir reforço. Vieram mais 4 contentores para poder dar resposta.
Em situações normais não são guardados nas câmaras frigorificas. Só acontece quando demoram mais de 24 horas até serem recolhidos e isso acontece por diferentes razões; “Quando não é fácil localizar a família, no caso de pessoas indigentes, durante os fins de semana ou quando é feita autópsia e fica retido até o relatório ser conclusivo.” “Se ao fim de 30 dias não for reclamado, os serviços contactam a Santa Casa de Misericórdia que trata das exéquias fúnebres, naquilo a que se convencionou chamar Funerais Sociais e que é um serviço que confere a todos um enterro digno.
Nesses casos, estão guardados numa espécie de gavetas, como se vê nas séries policiais, numas arcas que estão numa zona mais afastada das salas principais. Na parte de fora uma etiqueta com o nome, data de nascimento e data do óbito.
Uma curiosidade, “antes de serem colocados nestas gavetas, os corpos têm de arrefecer. Tem a ver com a conservação.”
Em toda a equipa existe um grande à vontade em lidar com este período pós vida. Todos são tranquilos, bem-dispostos, mas contidos. Há uma serenidade no ar quando nos aproximamos daquelas instalações, um pouco afastadas da azáfama dos vivos, dos que ainda lutam. Ali, onde se ouvem os passarinhos cantar e se sente o peso do silêncio é o último reduto das pessoas que não resistiram às suas doenças. É então que passam para as mãos destes homens que, não conseguindo inverter o sentido da vida, dão-lhe um fim digno.
Falar do António, do Hugo e da equipa em geral, era, por isso, nossa intenção, porque apesar de estarem longe do olhar, esta equipa tem o trabalho que dignifica o fim a todos nós.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial