Na sua rotina diária tem por hábito questionar o que sentiria se as suas condições básicas de conforto lhe fossem abaladas?
Imagine o seguinte cenário: tem uma filha internada num hospital público, onde permanece durante dias, semanas, alguns meses. Para a acompanhar de perto dormita numa cadeira rija, faz rápidas refeições no primeiro café que encontra aberto; e para tomar um rápido banho, precisa de acordar às 5h30 para marcar vez numa fila de pessoas que esperam com pressa de regressar para perto dos filhos doentes. Muitas destas famílias veem-se longe das suas cidades, sem mais ninguém, sem refúgio físico, nem moral.
Não é um cenário de há décadas passadas, é atual, de um grande Hospital como o de Santa Maria que recebe tantos casos diariamente, não negando o acolhimento e tratamento a ninguém, mas que se vê com limitações cruas por ser de última linha. Regressemos ao nosso cenário pessoal em que não bastando o desconforto, depara-se com a sua única filha internada, tantas vezes em isolamento e em que cada dia é vivido ao máximo, celebrando cada minuto de vida, pois não sabe se haverá dia seguinte.
A Isaura tem 15 anos e desde os 3 que passou a viver com uma doença crónica hereditária, a fibrose quística, que afeta os pulmões, aparelho digestivo e aparelho genito-urinário, produzindo um excesso de secreções que se tornam tão espessas que são difíceis de eliminar, aumentando a probabilidade de colonizar bactérias nas vias respiratórias. Aos 3 anos já sabia o que era estar em isolamento por longas temporadas.
A precoce idade seria igualmente precoce nos sintomas, já que começara com hemorragias pulmonares a partir dos 7. Geralmente quando isso acontece, não geme, nem se queixa, não chora, repele as atenções e sem grande manifesto, a sua tosse faz com saia sangue pela boca, às vezes muito, outras pouco. Quem descreve todo o processo é a mãe Vanda, que aproveito para conhecer por um longo telefone, já que se ligar por zoom vai certamente acordar a Isaurinha e nenhuma de nós o quer. Quem vê a expressão facial de uma, sabe que estão ligadas mais do que por um cordão umbilical. A cara e a personalidade de ambas não enganam ninguém.
Isaura nasceu prematura, mas aparentemente muito bem de saúde, como a mãe descreve, no primeiro natal, tinha apenas 2 meses, deu os primeiros sinais de que algo se passava, a cor dos lábios e a tosse denunciavam diferença entre os restantes bebés. Foi na consulta dos prematuros que ficou internada durante mês e meio, para receber oxigénio; a bebé Isaura tinha então tinha 2 meses e meio. Primeiro pensou-se que seria uma complicação cardiovascular, depois apenas refluxo gástrico. Só depois se descobriria a fibrose quistica, através do teste do suor, com uma pulseira que mede o suor e os seus valores. Concluído o diagnóstico sairia das Caldas da Rainha, onde nascera, para seguir para a Santa Maria.
Se até aos seus 3 anos se apresentou estável, apenas com medicação, a sucessão de bactérias pulmonares contraídas, viriam a agudizar todo o quadro.
A Fundação Infantil Ronald Mcdonald
Seria em 2005 que se instalava nas paredes de Santa Maria, uma casa especial de acolhimento, um lugar de conforto e apoio para as famílias que viam os seus filhos em internamento e tratamento hospitalar.
Entrar num espaço limpo, silencioso e tão bem decorado parecia uma miragem para tantos anos de cansaço e privação do mínimo de privacidade e sensação de regresso a casa. Era possível agora passar breves momentos na Fundação para repor alguma força e continuar a desempenhar o papel da maior cuidadora de todas, o de mãe. A Vanda bem que o justifica, “até aos 9 anos da Isaura eu não tinha onde cuidar das minhas próprias necessidades essenciais. Adormecia exausta e tinha de gastar dinheiro a comer fora, não tinha onde descansar, nem lavar roupa e tomar banho? Não imagina o processo que é. Recordo-me quando ia a correr comer algo e eram as educadoras do hospital que me tomavam conta da Isaura”.
Agora Vanda pode trazer comida e receber mimos de quem oferece alimentos, lhe prepara um almoço, ou simplesmente dá um café, “é o mimo que não recebemos de um companheiro ou amiga, pois aqui não há ninguém a apoiar e somos pais muito sozinhos, aqui basta um olhar e percebem-nos; nem me deixam levantar para fazer o meu próprio almoço, servem-me e tudo, acredita?”.
Vanda debate-se por conceitos que considera serem transversais à dignidade humana e que a Fundação Infantil Ronald Mcdonald também acredita como basilares – ser a família de quem tem a família doente. Com presença em 62 países a Ronald McDonald House Charities cumpre a sua missão social por todo o mundo, oferecendo cuidados a crianças e famílias em tratamento em 90% dos principais hospitais pediátricos do mundo. O objetivo é apoiar quem apoia os filhos internados.
Depois dos primeiros passos em Portugal em 2000, a Fundação conta atualmente com 4 casas de apoio: a Casa Ronald McDonald de Lisboa – numa parceria com o principal hospital pediátrico do país, o Hospital D. Estefânia. a Casa Ronald McDonald do Porto (2013), o primeiro Espaço Familiar Ronald McDonald (2017) e a primeira Sala de Brincar Ronald McDonald (2021) na nova Ala Pediátrica do Hospital São João, para lá do Espaço no Hospital Santa Maria em Lisboa (2017).
Nas sucessivas crises que deixam a Isaura internada na Pneumologia de Santa Maria, a mãe Vanda desce até ao Piso 01. No espaço que tem uma ampla cozinha, com uma corrida mesa para refeições, sala de estar com plasma e sala de jogos e brincadeira para as crianças, há ainda espaço de lavandaria, casas de banho privadas com duche, cadeiras de descanso e música ambiente para relaxar. Resguardada num recanto que parece encantado, a sala de amamentação guarda a magia do momento que é entre a mãe e o bebé. Tudo está pensando para os pais que têm filhos de tantas idades. “Aqui valorizam a parte que não se vê e que ninguém pensa, mas aquela que nos dá força para voltarmos para o quarto onde está a nossa filha (o). Não há pressa, nem se ouvem as máquinas que estão ligadas às crianças a apitar, não há filas, conversamos como no restaurante quando vamos encontrar amigas”, acrescenta enquanto fala da sua segunda casa, a casa do Mac como chama à Fundação Mcdonald. “A casa da Isaura é fora também, é o Hospital e a Fundação que é a nossa outra família, muito através da Sandra Baptista, da Diana e de tantas outras que são voluntárias”.
“Temos pozinhos mágicos, ai temos sim, parecemos a Sininho”
Enquanto escuto as inúmeras descrições e aventuras de Vanda com a Isaura, atrevo-me a dizer-lhe que é uma mulher vendaval, adjetivo que encaixa como uma luva, na sua personalidade que a obrigou ver apenas um copo sempre meio cheio. Foi no dilema com o pai de Isaura que entre o medo e o risco, as mulheres da casa assumiram que era preferível viver com tudo, mesmo que logo após pudesse ficar nada.
Com 15 anos, a Isaura fez já 3 embolizações pulmonares, “não pode fazer mais, já taparam as artérias possíveis “, conta a mãe, “mas ela supera tudo, tem uma força muito grande. Vivemos muitas aventuras, víamos como estava o tempo, para não a expor a grandes oscilações meteorológicas e decidíamos o destino a seguir e lá íamos as duas”. Iam passear e levavam a casa atrás, o pai tinha medo de arriscar e colocar a fragilidade de Isaura em perigo, elas também tinham medo, mas avançavam. Chegaram a viajar até à Disney, desejo concedido pela Terra dos Sonhos, o medo acompanhava-as em silêncio, mais distantes e sem socorro imediato, havia plano B, “falava sempre com a médica, aumentávamos temporariamente a medicação e adaptávamos a vida ao ritmo da Isaura”. A Serra da Estrela foi outro dos destinos traçados, lá pelo menos o frio era seco. “Ela quis sempre mais, não se resignava, quando saíamos de um internamento, íamos aproveitar ao máximo, afinal ela ia na mesma ficar doente”, refere a mãe.
Conhecer Isaura e interpretar nela o que são os seus sinais e a sua vontade, é grande aprendizagem diária de Vanda. “Temos que prevenir”, dizia o pai e eu pensava sempre, “temos que aproveitar”. Há quem não me entenda, mesmo dentro da família, mas eu sou grata por este caminho, é uma montanha russa de emoções. Sabe? E eu sou assim sim, este vendaval de bom e de mau”. Lição de vida quase sempre no limite, Vanda percebeu que há dois natais podiam estar a viver o último juntas, mas sempre uma vontade inabalável da Isaura mudava as regras da evidência e mantinham cruzados os caminhos das duas. “E ela contínua comigo, mais cansada, é verdade, e a precisar de momentos de maior resguardo e proteção. Adora bebés e ir às aulas, mas não pode conviver muito, porque pode apanhar bactérias. Tem tantas agudizações que não se pode expor. Então acordámos com a escola que só vai lá uma manhã e todos usam máscara para a proteger. E nós vamos vencendo assim, parece que temos pozinhos mágicos (fica a pensar) ai, temos sim, até parecemos a Sininho do Peter Pan, abanamos a varinha e o pozinho faz magia”, diz a rir.
Neste momento sem estar internada, a Isaura faz antibióticos inalados, está ligada ao oxigénio e tem regularmente fisioterapia respiratória, precisa de um transplante de pulmões e aguarda pela sua vez.
A Vanda vigia apenas, sem aguardar nada para si, os seus órgãos vitais estão todos bem, no entanto tem muitas cicatrizes internas, “o meu coração está cheio de remendos, mas falo abertamente de tudo”.
Um dia antes de falarmos, as duas foram passear e fazer compras para uma grande superfície comercial de Lisboa, a Isaura lá cedeu pela primeira vez e foi de cadeira de rodas, a verdade é que o excesso de cansaço lhe pede uns auxiliares de ajuda. A acompanhar foram algumas amigas que vão com ela trocando as primeiras impressões de namoricos. “O que a salva é isto, trazer amigos, ouvir piano e sorrir com ela”. Na montanha russa das emoções, Vanda assume que também chora, algumas vezes diante dela, “eu peço-lhe desculpa e ele entende, até porque sabe que também choro de alegria, na verdade a Isaura fez este caminho comigo”.
A passar heroicamente por mais um Natal ambas prometem que o viverão a sorrir e respirar fundo, nos desejos a cumprir conta-me que a Isaura adoraria conhecer o Manuel Luís Goucha e o João Baião, célebres figuras da televisão.
Sobre os caminhos a cumprir Vanda sabe que não é tempo de quebrar, “não quero ir abaixo porque não tenho tempo para isso, não tenho tempo para lamentar, senão como é que eu a aproveito?”.
A Vanda tem razão. Mas o que ambas não sabem é que há na verdade uma Sininho à volta de ambas e que continua a lançar pozinhos de magia, fazendo cumprir os desejos da valente Isaura.
Para todas as Isaurinhas e Vandas que precisam de um olhar atento, podemos estender a ajuda de forma simples, oferecendo tempo para voluntariado, levando alimentos, roupas, ou produtos que a qualquer casa faz falta. É essa a missão da Fundação Infantil Ronald Mcdonald, dar uma família e um abrigo que remende o coração dos pais das crianças doentes.
https://fundacaoronaldmcdonald.com/
Joana Sousa
Equipa Editorial