Este ano cada criança recebe uma estrela que tem uma abertura, permitindo guardar nela o desejo de Natal. O primeiro espaço onde entro é na Pneumologia, onde há crianças que estão a receber oxigénio e todas têm vias abertas para tratamentos vários. Numa cama está a Liz, sozinha e calada a olhar para a estrela, pés descalços e cabelo comprido liso, a expressão distante pede a nossa atenção. Enquanto o grupo da Associação Mundo dos Sonhos segue com a bonequinha Karyna, a duende Célia e a pirata Sónia, fico para trás com ela. Com a estrela na mão, explica-me então que está a pensar seriamente que desejo pedir. O foco é sério e os desejos não são coisas que se peçam a brincar e, por isso, a Liz pensa nas prioridades que a vida já lhe exige. Mesmo no berço diante dos seus olhos há um bebé tão pequenino que nem o berço preenche por inteiro, tubos e um suave lençol branco rodeiam-no e ainda assim dorme como se estivesse protegido em tudo o que o envolve e liga através da pele.
Depois de dois anos de restrições por todo o Hospital, regresso este ano às visitas de Natal que as Educadoras do Hospital de Santa Maria organizam para as crianças das diversas áreas da Pediatria.
A coordenar o grupo das Educadoras, que se mantêm fielmente as mesmas desde há anos, está a Elisabete Vaz. Este grupo de mulheres que assume várias funções em simultâneo, investe na companhia, desenvolvimento e animação lúdica todo o ano e não só às crianças, como às mães que as acompanham nos longos dias de internamento. São vários os pisos que percorremos da Pediatria de Santa Maria e em cada área estratégica está uma das Educadoras. Sempre os mesmos sorrisos, a mesma boa-disposição, com soluções improvisadas para qualquer contratempo, são como a mão mágica que tira de uma pequena caixa preta, uma panóplia de habilidades só para arrancar sorrisos.
No corredor tudo decorado pela generosidade das mães, equipas internas e com a ajuda do serralheiro do Hospital, que fez uma árvore de madeira, o espaço parece o mundo dos sonhos, onde nada de mal pode acontecer. Desenhos coloridos, estrelas no céu, anjinhos de algodão, o presépio e os reis magos, o Natal instalou-se aqui e faz que todos se sintam no mundo da magia. O dever de gratidão é extensível a quem já passou longo tempo nestes corredores e, por isso, retorna agora com presentes para estas crianças. A Sandra Sousa é exemplo disso, depois de ter estado com a bebé Ariana internada por várias vezes, após uma pré-eclâmpsia, traz agora as estrelinhas dos desejos, feitas pela sua empresa a Costurando com Amor. Há sacos cheios de estrelinhas e nenhuma criança ficará sem presente. E se a pequena menina de laço vermelho faz contrato tácito com a duende Célia para levar encomendas ao Pai Natal, já a Elô está pouco flexível a sorrisos e distrações. Cadeirão reclinável e embrulhada em manta polar, o choro é fulminante quando percebe que vão mexer no cateter que tem na pequenina mão. Contraste estranho este de emoções, enquanto os Caricas (grupo de animação infantil) cantam no canal Panda, sempre a ser emitido, as crianças oscilam entre estados de alma, afinal ninguém está ali porque quer. Caracóis loiros, cara redonda ainda de bebé, a Elô parece não criar confiança com a estrela, até que me sento com ela e guardo um segredo que não partilho, entregando-lhe apenas a estrela de volta e deixando-a com um aceno de mão.
A animação já seguiu adiante, depois de mais uma área atravessada e de nos despedirmos daquele bloco, descemos e subimos edifícios por tantos elevadores que perco o norte em que torre estamos agora e como lá chegámos. A porta dá o enquadramento objetivo, chegámos à área de Isolamento, da Unidade de Infecciologia e de Gastroenterologia. É por aqui que a equipa do Mundo dos Sonhos enche uma sala entre músicas, balões e pinturas várias nas mãos, na cara e nos braços. Nada se faz antes de confirmar com a Educadora daquele piso quem são as crianças que podem ter pinturas na pele. À medida que a música aumenta, mães, auxiliares, enfermeiras e outras crianças espreitam curiosas a animação instalada, espalhando-se por pequenos grupos em conversas ao longo do corredor. É nessa altura que me chama a atenção a Ana, jovem mãe de um bebé de 4 meses que ali nasceu e permanece ainda. A Ana foi divertir-se um pouco, já que o bebé João agora dorme. Complicações graves várias já refletidas em cirurgias, o pâncreas deste bebé dá valores complicados, produzindo excessiva insulina e obrigando a que se mantenha alimentado por uma via no nariz. Barriga de cicatriz extensa, o João já teve um saco externo temporário a substituir o intestino, agora já reconstruído e ligado. Peço para o ver, ali está no quarto do canto, numa pequenina espreguiçadeira que baloiça se der aos pezinhos, com tubos vários e máquinas ligadas a dar valores vitais, uma mãozinha escondida dentro de uma meia, para tentar contrariar que arranque o tubo que o alimenta pelo nariz. Sobre o colo uma fralda pintada com o nome, João Guilherme. Bebé robusto e de sono agitado, a mãe Ana mexe na barriga e eu toco nas mãos e aqueço o pé e nada no João o demove de descansar.
Aqui, muitas destas crianças, mães e equipas passarão o Natal, tratam-se pelo nome e são a família uns dos outros. Sobre a Ana que vem de Peniche haveria muito a dizer para lá da autoria das pinturas de grande parte dos desenhos de Natal e ter tratado das bandeirolas que pintam o teto. Quando a quisermos ver em paz, é ir vê-la à noite à sala das brincadeiras, onde se resguarda a pintar e a esquecer por um tempo que começou o papel de mãe de forma tão diferente do habitual. Possivelmente ficará por algum tempo, enquanto as equipas médicas reúnem para decidir a melhor operação para o bebé João. Mas esse tempo passa e não se prevê ainda a sua duração, a Ana precisa de companhia, mas também de ajuda: roupas, toalhitas e comida para ela.
Despeço-me da Ana na esperança de a reencontrar e de saber boas novas do bebé e divago entre pensamentos enquanto me dirijo ao elevador de saída, sem conseguir dizer adeus a mais ninguém. Uma voz ligeira fala-me alto e pede que prenda a porta do elevador. Olhos cor de amêndoa, doce quanto bonita, vem uma menina de 9 anos com a mãe e a enfermeira, em cadeira de rodas e uma cicatriz na cabeça que a atravessa de uma ponta à outra. Sorrio para a mãe e aconchego a manta que protege aquela que será para ela sempre a sua bebé frágil. Olhar de compaixão, sorrio apenas porque já não consigo dizer nada sem quebrar. E então a mãe fala: “Se era para fazer isto tudo tinha de ser aqui, foi aqui que nasceu e é aqui que fará tudo”. Concordei, “é mais uma bebé filha deste Hospital”.
Ao Hospital de Santa Maria que pertence ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, às Educadoras, às equipas várias, mães que fazem donativos, aos pais que ali vivem de dor e esperança e aos meninos todos, Feliz Natal.
Que a estrelinha dos desejos da mãe Sandra vos ouça e traga a todos e à Elô aquilo que pedi para ela, uma saída rápida e tão cheia de saúde.
Agradecimento especial para as Educadoras: Mané do Piso 8 de Pneumologia; Daniella dp Piso 8 da Cirurgia; da Margarida do Piso 7; Da Bárbara e Rita do Piso 6; da Lena e Filipa do Piso 9, à Anabela, auxiliar de Educação e à Elisabete pela consulta, desenvolvimento e coordenação do Serviço de Educação
Joana Sousa
Equipa Editorial