Alzira Barros faz 102 anos na véspera de Natal e foi uma das primeiras residentes da Casa de Santa Maria. Perfeitamente autónoma, conta-nos como a filha de um pedreiro e de uma costureira de Portel veio parar à farmácia do Hospital de Santa Maria. Uma vida cheia, que partilha numa conversa sem pressa, à beira de um jardim, que ajudou a crescer.
A mãe “era cá uma tesoura! Tudo lhe saia certo”, elogia sorridente, como uma menina que ainda lá está a aprender à beira da saia da mãe. Era quase inevitável que as suas mãos se tornassem também uma extensão da agulha e das linhas.
Nasceu em Portel, numa família de oito irmãos. «A minha mãe mandou todos à escola» e, por isso, conseguiu fazer a quarta-classe. Depois passou a ir “coser a casa das senhoras ricas”.
Até que um dia, um casal que se instalou numa pensão lá da terra perguntou se conheciam alguém que fizesse uma saia e um casaco “bem feitinhos”. Nas vilas toda a gente se conhece, continua, e assim chegaram até à nossa Alzira.
Foi à senhora que, depois de tomar coragem, confessou que gostava de trabalhar em Lisboa. “Queria viver um bocadinho melhor”. E lá se arranjou trabalho para esta costureirinha de mãos habilidosas, que foi fazer o enxoval de uma jovem da sua idade, filha dos donos da fábrica do Tramagal, que em breve ia casar.
Quando o contrato acabou, concorreu a um anúncio para tomar conta de crianças. “Fui lá e fiquei logo”, alegra-se, ainda com o nome dos quatro meninos na ponta da língua. O José António, o Manuel, a Pitucha e a Maria José, da família Herédia, a quem ainda hoje está agradecida por lhe terem aberto as portas para o Hospital de Santa Maria, através de Joana Herédia.
Foi para a Farmácia do que ainda hoje é um dos maiores hospitais do País, acabado de inaugurar. “Entrávamos às sete horas da manhã”, recorda, recuando no tempo até à época em que lhe apresentaram Daniel Barros, seu colega, com quem acabou por casar. Era viúvo, tinha três filhos, um deles bebé. A mãe tinha morrido no parto. Viveram juntos 27 anos e foi assim que acabou por criar o António, o Manuel Joaquim e o Mário Barros, com a mesma dedicação que daria aos seus filhos.
Hoje são eles que a visitam e a levam para almoçar, explica orgulhosa. “Fazem o que alguns dos filhos de pessoas aqui não fazem”, reconhece, num misto de agradecimento por si e de tristeza pelos seus companheiros da Casa.
Mas aqui há uma equipa numerosa de profissionais de saúde que a tratam bem, desde que cá chegou há 10 anos. “Eramos poucos”, recorda Alzira, que veio com o seu segundo marido, Germano Pinto, também da farmácia do Santa Maria, com quem casou já com 70 anos. Dizem que esperou por ela para ser sua companheira de vida, depois de muito namoriscar. “Era muito certinha a minha Alzira”, cita-o, com ar de menina e moça, como a cidade onde sempre sonhou viver.
Trouxe a máquina de costura, que ainda tem instalada no seu quarto. “Nunca a larguei”. Dedicou-se a plantar flores e a tratar da figueira que o seu Germano aqui plantou. “Adoro mexer na terra e não sabia”. Ele morreu passados dois anos de cá chegarem, mas ela continuou a cuidar desta árvore, até ao seu último problema de saúde. “Tenho esta genica”, mas agora, “esconderam o sacho”, brinca sem mágoa.
E qual o segredo para esta vitalidade, perguntamos. “Sempre fui boa boca”, simplifica. Mas a genética também parece fazer parte da equação. “A minha mãe era de uma família de guerreiras”, acrescenta no final da conversa, quando se junta a nós a enfermeira Graciete, a “responsável disto tudo”, sublinha com admiração a nossa Alzira, menina, costureira, ama e funcionária da Farmácia do Hospital de Santa Maria. Se não fosse aqui, na Casa de Santa Maria, onde e como estaria?
Margarida Leal
Equipa Editorial