Do Instituto de Anatomia faz parte o Teatro Anatómico e é lá que trabalha Pedro Henriques, 36 anos, natural de Rio Maior.
Foi ele que nos conduziu durante uma manhã, pelas várias salas e corredores e aceitou partilhar o seu trabalho e algumas histórias.
Por cima da porta, uma placa onde está escrito ‘Teatro Anatómico’. Imaginamos que, ao atravessá-la, vamos conhecer um mundo que não está acessível à maioria das pessoas e isso, inevitavelmente, traz um misto de aventura e de receio. O desconhecido causa sempre algum medo. Mas, mal entramos na sala principal, somos recebidos por uma voz amável e disponível para nos revelar todos os segredos que ali estão preservados, na sua maioria, em formol. Se pensamos que vamos ouvir histórias de pessoas, estamos enganados! Vamos ouvir falar de ciência, de medicina, de estudo e de muitos processos que facilitam a compreensão do corpo humano e permitem estudá-lo de forma a que quando os procedimentos médicos e cirúrgicos são aplicados nos doentes, sejam eficazes, eficientes e pouco invasivos.
Quem assume o comando deste palco é Pedro Henriques. É dele a voz calma e disponível que nos faz a visita guiada. Que suba o pano.
Pedro Henriques é natural de Rio Maior e a conselho dos pais, desistiu do curso de Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico, para enveredar por um curso na área da saúde. “Os meus pais acreditavam que tinha mais saídas profissionais. Naquela altura, antes de entrar na faculdade, a área da saúde oferecia mais estabilidade.” Decidiu-se por Anatomia Patológica na Cooperativa de Ensino Superior Egas Moniz, no Monte da Caparica. “Estava completamente a zeros,” diz, mas ficou fascinado quando leu na descrição do curso, ‘fazer autópsias’. “Pensei, isto é mesmo estranho e fora do habitual. Sou uma pessoa da aldeia e quis fazer uma coisa diferente.”
Quando concluiu a licenciatura em 2008, o mercado de trabalho já estava mais difícil. “Os cursos de Anatomia Patológica focam-se mais nos laboratórios e eu vi o país parado. Ninguém entra nos hospitais, pensei. Decidi então inovar”. Numa atitude perspicaz, fez um estágio no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, (ICBAS), onde aprendeu conservação e disseção cadavérica. “Foi aí que eu divergi do que era habitual na minha área.”
Mais tarde, surgiu a possibilidade de fazer um estágio na Faculdade de Medicina (FMUL). “Vim para o Instituto de Anatomia. Fiquei durante um ano até que surgiu a possibilidade de integrar a equipa em definitivo.”
Chega todos os dias por volta das 8 da manhã e não tem hora para sair. A FMUL é uma segunda casa, e após 13 anos a trabalhar aqui, Pedro conhece todos os cantos. As salas, os armários e as gavetas já não escondem segredos. Algumas têm ossos e outras peças anatómicas que Pedro prefere não partilhar. Talvez por considerar que aquilo que faz nem sempre é bem entendido pelas pessoas de fora e, que por vezes, revelam algum desconforto. Mas sobre isso, falaremos mais à frente.
Durante a visita guiada ao ‘palco’ do Teatro Anatómico conta-nos que, quando aqui chegou tudo era muito diferente. “Em 2009 as salas e os materiais eram os mesmos desde há 60 anos. E quando fizeram as obras, foi interessante assistir à renovação do Teatro Anatómico. Lembro-me, por exemplo, que as mesas eram de ferro esmaltado e havia janelas partidas. O ambiente não era sinistro, mas era um pesado.” Outra memória que guarda dessa altura é da copa. “Era um espaço multifunções”, diz bem-disposto, “tínhamos as tinas de formol que davam para pôr 3 ou 4 cadáveres lá dentro, e era onde pousávamos os nossos tupperwares. Havia um arame para pendurar batas e os alunos iam buscar ossos para estudarem durante a hora do almoço. Tínhamos também uma colega, entretanto reformada, que não gostava de aquecer a refeição no micro-ondas e aquecia numa estufa antiga, desativada. O ambiente era informal e engraçado”, recorda.
Mas desde que as obras foram feitas – em 2013- o espaço tornou-se amplo, iluminado e muito ‘clean’.
É aqui na primeira sala que decorrem as disseções. Várias mesas anatómicas estão distribuídas pela sala. Nestas, são colocadas as peças cadavéricas, para que os alunos possam observar, estudar e aprender. E é Pedro quem prepara tudo.
No dia em que visitámos o Teatro Anatómico, uma turma de 2º ano estava a dissecar o encéfalo humano. Acompanhados da Professora Lia Neto, atual diretora do Instituto de Anatomia, rodeavam a mesa, onde no centro estava o objeto de estudo. “Os alunos ficam sempre fascinados por poderem ter contacto com um cérebro real. Ficam surpreendidos porque quase tudo aquilo que estudam nos livros, conseguem observar no cérebro post mortem. Os alunos não têm noção das dimensões e consistência e ficam surpreendidos como é que estruturas tão importantes, como o tronco cerebral, são tão pequenas. Essa curiosidade e descoberta faz com que estudem e olhem para as coisas de maneira diferente”, diz a professora que acrescenta, “têm também alguma curiosidade em saber algumas características sobre a pessoa que doou o corpo à ciência, mas não podemos dar essa informação.” É por isso que, antevendo essa curiosidade, sempre que o Pedro tem de preparar um cadáver para estudo, deixa apenas visível a parte do corpo que vai ser observada. “Os alunos dispersavam-se quando eu colocava o cadáver completo. Olhavam para as extremidades, para a cabeça e eu percebi que não podia ser assim porque perdiam o foco. Hoje em dia, numa dissecação ao abdómen só deixamos essa parte visível.” Esta é também uma forma de despersonalizar o cadáver, mas isso não significa desvalorizar o corpo como um todo. “Temos de ter muito respeito. Aquele corpo chega-nos porque alguém decidiu em vida doar o corpo à ciência, e isso é muito louvável.” Por essa razão não se tiram fotografias e a privacidade é sempre preservada. A prova disso são as tatuagens conservadas em formol. “A coleção não se formou ao acaso. Por uma questão ética começaram-se a tirar as tatuagens dos corpos para que não fossem identificados. Temos tatuagens de 1892.” As mais antigas são quase sempre motivos religiosos, mas quem esteve preso ou embarcado também tem figuras alusivas. “Há também algumas que são expressões de amor.”
Na sala estão apenas meia dúzia de tatuagens expostas, mas há mais guardadas. Neste momento não há espaço para trazê-las para o Teatro Anatómico.
Desviando o olhar deparamo-nos com um enorme frasco de vidro e lá dentro está a cabeça de Diogo Alves, um dos últimos condenados à morte em Portugal. Há grupos de turistas que vêm de propósito ver aquele que ficou conhecido como o assassino do Aqueduto das Águas Livres. A fama desta cabeça conservada em formol atravessa fronteiras. “É bastante famoso – Diogo Alves- e atrai muitos visitantes. É quase um ícone”, confidencia Pedro.
Numa prateleira próxima, existem outras peças conservadas em formol e uma delas, chama a nossa atenção; uma mão translúcida. Como é possível?
Pedro explica, “o método usado chama-se diafanização e, embora existam muitos artigos escritos sobre este processo, não desvendam tudo.” Não foi fácil chegar à fórmula certa para conseguir este resultado. Quando lhe pergunto quanto tempo demorou com esta tarefa, explica que não é fácil dar uma resposta precisa porque o processo de trabalhar um órgão começa muito antes, quando vai buscar o cadáver à casa mortuária. São muitos passos até chegar aos órgãos que podem ser vistos, tocados e estudados. Não nos podemos esquecer que estamos numa sala onde se respira ciência. O propósito diário deste mestre é o de criar ‘peças anatómicas’ com o máximo de aproveitamento para que possam servir a ciência durante muitos anos.
Mas as tarefas são imensas e nem todas óbvias. Há muito trabalho invisível que é feito no laboratório, no piso inferior e na sala seguinte à do Teatro Anatómico. É que não nos podemos esquecer que para além de dar apoio às aulas práticas, há um laboratório de histologia, outro de plastinização e ainda outra parte, mais reservada, que tem a ver com a preservação de cadáveres. O embalsamento é um trabalho minucioso e solitário que permite conservar o corpo humano.
Após o embalsamento estes corpos são conservados em câmaras de congelação e de refrigeração. A diferença é que os corpos que estão prontos a ser utilizados estão refrigerados, método que permite a utilização, por exemplo, numa aula. “Já os cadáveres congelados estão preservados, a uma temperatura de menos de 20 graus.“
“Todos os cadáveres doados à ciência e ao ensino têm a sua utilização otimizada ao máximo. Temos alguns que estão preservados há 6 anos. Só quando não têm mais uso possível é que são cremados,” esclarece.
Nas doações do corpo à ciência e ao ensino, a lei obriga a que haja uma vontade expressa em vida.
Pedro fala com algum à vontade sobre estes procedimentos, mas admite que nem todas as pessoas estão preparadas para os ouvir. “Ficam surpreendidas e acredito que a algumas cause até arrepios, mas também não conto detalhes do que faço. Falo de forma mais abrangente.”
Falemos nos cérebros que nos mostrou e que estão preservados há décadas.
O método de conservação utilizado é o da plastinização. Um método criado por Gunther Von Hagens e, que se tornou mais conhecido pela exposição itinerante sobre o corpo humano. “Consiste em fazer uma desidratação a frio em acetona onde retiramos toda a água existente nos tecidos. De seguida fazemos uma impregnação forçada em silicone. A fase seguinte, que é a final, chama-se polimerização.
O trabalho do Pedro é maioritariamente solitário. Vale-lhe a companhia do rádio. “Gosto de ouvir música. Ao mesmo tempo que me abstrai, foca-me. ”Pode parecer contraditório, mas Pedro explica; “é um trabalho que exige muita atenção nos procedimentos a ter para que não sejam cometidas falhas, mas ao mesmo tempo não podemos estar fixados na pessoa que temos ali deitada na marquesa. Invariavelmente a mente leva-nos a questionar, e prefiro não me perder nesse tipo de pensamentos. Os corpos estão aqui para um bem maior: o ensino da ciência. Não pudemos esquecer a dimensão humana, mas não podemos vivê-la.” Uma curiosidade: “durante o processo de embalsamento tenho de manipular o corpo, fazer fisioterapia, para que fique com alguma flexibilidade e sirva por exemplo, para a ortopedia. Um corpo rijo sem flexibilidade não é muito útil e não serve os propósitos da medicina.”
A visita guiada continua e agora vamos ao piso inferior. É lá que está o laboratório onde os processos de desidratação e impregnação são feitos. Bidões de acetona, barómetros digitais, mecânicos e analógicos e vários tubos constituem maioritariamente a panóplia de utensílios que Pedro precisa. Muitos destes sistemas foram criados por ele. Por exemplo; a caixa onde é feita a polimerização é uma adaptação. “A caixa original é muito dispendiosa. Custa cerca de 5 mil euros, mas percebi como funcionava e consegui com uma caixa de plástico e um sistema adaptado, construir algo semelhante, praticamente sem custos.” A polimerização do silicone é feita aqui. “Construí uma estante de madeira e adaptei umas luzes ultravioleta. Colocam-se as placas com as seções de cérebro lá dentro, e acontece o processo. As secções têm de ser muito fininhas e graças a um aparelho de corte, também adaptado, rentabiliza-se o cérebro e possibilitam ao aluno ter acesso ao máximo de tecidos.” É uma espécie de ressonância real.
“Esta pós-graduação e outras aprendizagens aprendeu em Múrcia e acrescenta, “que eu tenha conhecimento, somos o único laboratório no país a usar estas técnicas.”
O laboratório, conseguido numa parceria com a reitoria, tem características muito particulares; não existem interruptores devido ao risco de explosão pelas enormes quantidades de acetona, os motores das arcas de congelação e de vácuo estão do lado de fora e existe proteção antifogo.
Seguimos pelo corredor. Uma mesa de madeira tem uma série de frascos em cima. Lá dentro, observam-se fetos aparentemente normais, outros com malformações. Há gémeos siameses, “aqui preservados e catalogados temos os siameses mais antigos de Portugal” e dentro dos armários vários ossos do corpo humano, já tratados e preservados pelo Pedro Henriques.
Quando olhamos para estes frascos com rostos parados no tempo, sentimos como se estivéssemos a espreitar pelo buraco da fechadura e a quebrar a barreira do tempo. É um mundo muito particular. Parece que estamos a violar uma regra ao invadir este espaço. Ver aqueles rostos, ossos, esqueletos, faz-nos imaginar quem seriam aquelas pessoas e que vida teriam. Imaginamo-los a calcorrear as mesmas pedras da calçada que percorremos e questionamos se alguma vez o nosso destino se cruzou. Estes são os tais pensamentos que Pedro evita quando está a preparar um cadáver. Mas, ele consegue abstrair-se. São muitos anos. Afinal, a capacidade de abstração aprende-se!
Não estamos habituados a lidar com a morte. Quer dizer, o Pedro Henriques está, mas mesmo para ele não é fácil. “Quando as pessoas me dizem –tu gostas imenso daquilo que fazes - eu digo gosto, mas o meu trabalho é pesado em termos psicológicos e o que realmente me agrada é o produto final. É permitir, através do meu trabalho, promover a ciência.”
Depois de uma manhã a partilhar inúmeras histórias do seu dia a dia, cada um de nós segue o seu caminho. Eu regresso ao mundo dos vivos, ele, ao mundo mortos. Para trás deixamos o Instituto de Anatomia com as salas cheias de relíquias, ciência e silêncio.
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial