“Se se sentir mal, o meu conselho é que se sente de imediato, ou pode mesmo deitar-se no chão, esta sala é o lugar mais desinfetado que pode ter”.
Entenderia mais tarde que nem o depósito de sucção de líquidos onde sangue e soro se misturam, me demoveria diante do que prometia estar prestes a começar. A cirurgia a um meningioma de uma senhora de 60 anos era a razão da mobilização matinal no bloco A de Santa Maria, momento anunciado numa escala impressa com a ocupação semanal dos dois blocos operatórios para a Neurocirurgia.
Fardas verdes, toucas e proteções para os pés, mal se conseguia prever quem era quem, no entanto as funções ficariam claras muito brevemente.
O ritual é sempre o mesmo, a roupa fica nos vestiários e entra apenas a que está desinfetada, a restante fica aglomerada em dois pequenos vestiários que mal dão espaço para gestos repentinos.
Já no bloco há uma extensa mesa de instrumentos médicos que não é tocada por mais ninguém, a não ser pela enfermeira Inês. Das três presentes no bloco, a Isabel, na casa há 18 anos, e a Carina há menos de metade, davam apoio à enfermeira Inês, a mais recente em Santa Maria e o braço direito dos dois Diogos que iam executar a cirurgia.
No bloco operatório forrado a paredes de mármore branca e chão de linóleo azul, estavam ainda mais dois médicos anestesistas, o Gerson no 4º ano de internato, acompanhado pela sénior e tranquila Dra. Beatriz que só muito raramente se manifestava, enquanto olhava para a doente e observava calmamente alguns valores, trocando discretas impressões com o seu interno.
Num grande plasma as imagens da TAC da doente e a playlist do telemóvel que ia tocando. “Welcome to the jungle, we’ve got fun and games”, a música dos Guns N’ Roses quebrava um certo gelo de quem não imaginava o que se podia esperar de uma cirurgia de cabeça aberta e onde parte do osso seria removido para poder extrair o tumor alojado na parte frontal do crânio – meningioma frontal direito com hiperostose (aumento do osso do crânio por cima do tumor)
O acordo para eu estar no bloco já vinha detrás no dia em que pedi para o ir ver ao local onde passa a maior parte das horas que a vida lhe dá.
Antigo aluno da casa que ainda hoje habita, é filho do campus onde tem deixado já a sua assinatura. Foi como interno em Neurocirurgia no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte que o conheci. A poucas semanas da meta cumprida do internato, o Diogo Belo dedicava as suas últimas semanas numa preparação exaustiva para a prova final à especialidade. Apesar de dedicado às longas horas de preparação estoica, ainda assim recebeu doentes que dependiam dele para soluções de saúde. Numa das muitas vezes que estudava silenciosamente na biblioteca do piso 6, uma das almas da Faculdade e onde o pai Lobo Antunes fazia as reuniões clínicas com a equipa, visitei-o. Nesse dia explicou-me os métodos de estudo e a forma como tinha separado centenas de páginas por áreas temáticas e cores identificativas. Para cada área estudada dava um tempo planeado e gerido meticulosamente. Planeava ainda uma segunda volta e a final por toda a matéria analisada. Só aí se sentiria pronto a avançar para a avaliação final. Pouco tempo depois viajaria até ao Porto para fazer o exame final. Longas horas se passaram. Viria finalmente a notícia esperada, era formalmente médico especialista com uma prova superada com 19,8 valores.
Tempos árduos que previa colmatar com uma viagem sabática ao Oriente. Nem sempre tendo o tempo como seu aliado, facto é que não conseguiu cumprir o desejo do escape, era chegada agora uma onda avassaladora, a pandemia. Readaptou-se e ficou a postos para trabalhar e apoiar os seus pares de outras especialidades, era tempo de unir esforços.
Seguiu a sua linha de trabalho e rapidamente regressou ao bloco para recuperar o tempo e a saúde de quem aguardava por cirurgia. Cirurgia que o próprio precisou de fazer, impedindo-o algumas semanas de se mover. Disciplinado na força mental como na física, impôs-se a uma recuperação rápida e dorida, obrigando o corpo através do cérebro, a erguer-se e a voltar ao terreno, audácia característica dos que se superam. Aguerrido na profissão talvez o desporto também o instigue a tal, a verdade é que para Diogo Belo é certo o provérbio japonês que diz que “Se cair 7 vezes, 8 vezes se levantará”.
Entre encontros e formações pelo mundo e três hospitais (Pulido Valente, CUF e Loulé), além de Santa Maria que lhe pede mais tempo, em todos exerce Neurocirurgia, não negando que a neurocirurgia vascular e a cirurgia de coluna lhe causam particular paixão.
Regressemos ao bloco, onde me permitiu entrar.
A equipa estava a postos para começar a cirurgia. Doente anestesiada e com o cabelo parcialmente rapado. Nos lençóis que identificavam o Hospital, havia calor sempre a preservar a temperatura do corpo. Junto ao tórax percebia-se o subtil movimento da respiração.
Interno do 4ª ano de Neurocirurgia, o Diogo R. ia injetando à volta do crânio uma mistura de lidocaína com adrenalina para evitar que a incisão causasse excessiva perda de sangue.
O corpo estrategicamente colocado na mesa de cirurgia ficava seguro num suporte metálico (Mayfield) que se ajustava até imobilizar a cabeça, segurando-a de ambos os lados, como um encaixe do filme Matrix que ligava as pessoas à rede pela cabeça. Estranha imagem de volatilidade de um corpo tecnicamente adormecido às mãos de um discreto e seguro comando, o cirurgião.
Desinfetada toda a área que ia ser intervencionada, a enfermeira Inês passava compressas com o desinfetante, num ritual cuidado entre o silêncio do momento e a preocupação com o que a cercava.
A escolha musical marcava, também ela, novo momento. Diogo Belo dirigia a cirurgia, dando habilmente margem de manobra para que o seu outro cirurgião executasse cada gesto em plena harmonia e ao segundo.
Incisão executada, começava a parte séria da cirurgia, perfurar o crânio e criar múltiplas vias de acesso (ou trepanações) até chegar à camada ou membrana que reveste o cérebro, a dura-máter. Mesmo ali, debaixo de uma camada tão densa quanto fina, e que ao sair parece cera branca desfeita, estava o cérebro, a descoberto a pulsar vida, apesar do “cansaço visível e da sua fragilidade”, explicava Diogo Belo.
Pulsos firmes e persistência, nem todas as vias seriam fáceis de furar. A técnica era executada através de leves berbequins que iam sendo trocados até que o osso se permitisse perfurar.
Gorro médico da saga Star Wars, cada gesto em Diogo Belo tinha a mesma dose de dureza contra o osso e a subtileza de uma voz que ia partilhando impressões e um norte orientador para o Diogo interno. A cada nova execução a enfermeira Inês parecia já adivinhar o que seria pedido, a cada tempo mantinha o ritmo ágil para passar tesouras, pinças, berbequins, brocas substitutas, compressas, ou litros de soro.
No mesmo compasso em que tocava baixinho “Rollin’” dos Limp Bizkit, o batuque ritmado dos sinais vitais mantinha-se constante. Ainda assim Gerson vigiava valores nos monitores e olhava para os vários depósitos de líquidos à volta da doente. O estado de homeostasia que procura o equilíbrio do corpo face a uma agressão do exterior é função que a Anestesiologia segue como ninguém, pois ouve o doente através dos indícios que o corpo lhe dá. "Cada doente precisa de ser avaliado individualmente, para lá da verificação das guidelines que a ASA (American Society of Anesthesiologists) defende para todos”, explicava-me Gerson, enquanto carregava nas várias opções dos monitores ligados ao corpo adormecido.
Talvez por um segundo tenha pensado se me deveria sentar e não voltar a ver o procedimento. As costas apoiavam-se na fria parede de mármore e os meus sentidos voltavam a dizer-me que estavam todos despertos.
Na primeira vez que conversámos, o Diogo Belo contou-me que a preparação física e mental era muitas vezes comparada ao treino dos Navy Seals, preparando os médicos neurocirurgiões para horários extremos e situações adversas de cansaço. Bate certo, se pensarmos que a média comum de trabalho são cerca de 100 horas semanais, horas partilhadas entre os pisos 9 e 7 da mesma área do Edifício de Santa Maria.
“Temos um caso interessante”, dizia-me, “vamos retirar parte do crânio e tumor, reconstruindo essa parte do osso através de uma rede de titânio e cimento (metilmetacrilato)”, explicava na antevisão da cirurgia que iniciava pouco depois das 09h00.
Ali, diante do nosso olhar, o cérebro vivo, abraçado por vasos e o pulsar do sangue em sinal de vida, como uma caixa de pandora, guardada e misteriosa e que finalmente se abrira. Calmo e apaziguador, o Diogo apontava para os lobos do cérebro, fazendo uma breve visita guiada.
As enfermeiras de apoio traziam agora várias caixas pretas com materiais, uma pequena máquina semelhante a uma batedeira e um pó que se viria a transformar em pasta, em poucos segundos tornada massa.
Aplicada a rede de titânio, para reconstruir o osso, era agora desenhada uma curvatura na testa que iria ficar simétrica à metade não mexida.
Rede recortada com uma tesoura e encaixada no espaço sem osso, seguiam-se os parafusos que, um a um, iam fixando o titânio. Como uma pequena caixa de ferramentas que se guarda em casa, a enfermeira Inês ia passando parafuso a parafuso para as mãos dos cirurgiões que têm também parcela de artistas plásticos, cuidadores das suas peças de arte. Como uma imagem de arame farpado que poderia ferir ou ficar com arestas, todas as pontas eram arredondadas e forradas com partículas de cera de osso. Por fim o metilmetacrilato, a massa branca semelhante a cimento, forraria de forma homogénea o espaço que estava já protegido com a rede. Formava-se assim o osso artificial, nova caixa de proteção da jóia mais preciosa, o cérebro.
Aproximava-se a meia hora final do efeito anestésico, razão pela qual a enfermeira Carina administrava agora medicação anestesiante para a dor, precisamente antes de a doente acordar.
Chegava a fase final de voltar a repor na cabeça a última textura de um elemento cheio de camadas protetoras. A pele era agora cosida com linha que virá a ser absorvida naturalmente pelo organismo. Por fim os agrafes finais que assegurariam nada mais se soltar até a pele voltar a criar pontes definitivas entre si.
Terminava a cirurgia. Novo ritual. Os cirurgiões eram os primeiros a sair. Ficavam as enfermeiras e os anestesistas. A cabeça da doente assumia agora forma natural que não conhecia há 10 anos, reconfortada em ligaduras e de regresso à paz. Confirmados pelo Gerson os valores das análises ao sangue, a médica Beatriz tocava levemente no rosto adormecido e chamava pelo nome. Corpo aquecido e expressão serena, estava prestes a seguir para os Cuidados Intensivos.
Quanto ao Diogo neurocirurgião, já tinha retirado as duas camadas de luvas de latex e a proteção azul em forma de avental. Sentado na curta sala com um único computador e impressora, algumas das pessoas da equipa iam juntando refeições para almoçar rapidamente, seguindo às 14h para nova cirurgia. Ele não seria exceção.
Foram breves as palavras trocadas, porque para o Diogo Belo estes procedimentos são tudo aquilo que sempre sonhou e para os quais se preparou mais de metade da sua vida.
Todos os dias Diogo Belo tem pela frente vidas, caras curiosas que o interpelam e depositam nele a esperança e responsabilidade para que encontre soluções. A verdade é que tem a vida de todas estas pessoas nas mãos. Ele sabe e cuida-as para lá das obrigações de protocolo entre médico e doente.
Quando pergunto se sente medo antes entrar no bloco, responde que “faz parte do treino saber gerir a ansiedade. Faz parte confiar no processo”. Porque o processo o ensinou a saber o que fazer.
Inspirado por uma qualquer força inspiradora que me diz em tempos ter-lhe soprado ao ouvido que a sua missão seria cuidar dos outros, recuperar o percurso do Diogo é apenas reafirmar as convicções passadas.
Reencontrado o Diogo Belo recorda-me o velho lema “fortis fortuna adiuvat”. A sorte protege os audazes.
Fortuna de quem se prepara todos os dias, puxando a si a sorte. Sorte que planeia minuciosamente e que então acontece, mas só depois de muito trabalho.
Nota Final - Decidimos evitar imagens explícitas da cirurgia para proteger os leitores mais sensíveis, por esse motivo as fotografias usadas não esclarecem os passos cirurgicos. Mas sendo o nosso público muito abrangente, optámos por não condicionar o acesso a este artigo, permitindo assim que todos o possam ler sem sobressalto.
A primeira entrevista como Diogo Belo:
https://www.medicina.ulisboa.pt/newsfmul-artigo/102/sempre-que-pensares-desistir-continua-vitoria-adora-os-tenazes
Joana Sousa
Equipa Editorial