É no 7º piso, do edifício das urgências de pediatria que encontramos um dos corredores mais coloridos e decorados do Hospital de Santa Maria: estamos no Serviço Neonatologia! Um panda gigante recebe-nos logo à saída do corredor e de seguida, há fotografias de bebés que por ali passaram. Na porta que dá acesso à zona mais restrita, grandes flores com pétalas amarelas, têm escrito mensagens de agradecimento a toda a equipa que ali trabalha. Médicos e enfermeiros unem esforços para salvar as vidas dos homens e das mulheres de amanhã.
O Serviço de Neonatologia do Hospital de Santa Maria presta cuidados a todos os bebés que não tenham saído do contexto hospitalar. Para começar estão os bebés que acabaram de nascer e que ficam com as mães durante um ou dois dias, até terem alta.
Estes, mesmo saudáveis, ficam sob a alçada do Serviço de Neonatologia, do qual o Professor André Mendes da Graça é o diretor. É ele quem explica quais os outros contextos de internamento; “internamos bebés que nascem cá ou que são transferidos de outros hospitais ou maternidades porque precisam de cuidados mais diferenciados”. Como em tantas outras especializadas, na Neonatologia o Hospital de Santa Maria é o que se chama de serviço de fim de linha, “Somos das poucas unidades que tem todas as valências. Tratamos desde a prematuridade em todas as idades gestacionais, até cirurgia neonatal. Um bebé de termo que faz cirurgia é sempre complexo e ficam connosco, nos cuidados neonatais.” Além dos bebés intervencionados pela Cirurgia Pediátrica, dirigida pela Dra. Miroslava Gonçalves, temos o apoio de algumas especialidades cirúrgicas do Hospital, como é o caso da Neurocirurgia, onde “o apoio imprescindível da Professora Cláudia
Faria” faz toda a diferença na vida dos recém-nascidos com patologia neurocirúrgica, muitos deles referenciados por outras instituições.” É o caso de bebés prematuros com hidrocefalia após hemorragia intraventricular, “que precisam de ser referenciados para serem tratados cá.
O Serviço de Neonatologia é também um centro especializado para o tratamento de cardiopatias congénitas, em articulação com os Serviços de Cardiologia Pediátrica do HSM e do Hospital de Santa Cruz. ” Não existindo em Lisboa nenhum hospital que tenha maternidade e cirurgia cardíaca neonatal, os recém-nascidos com cardiopatia congénita nascem cá, são estabilizados e transferidos quando necessitam de cirurgia. Depois, ou ficam lá ou podem ter de regressar. Não sendo a situação ideal, esta solução de complementaridade tem funcionado bem.”
Apesar de termos poucos casos de doença metabólica, somos centro de referência para essas situações.”
O período neonatal são os primeiros 28 dias, “mas um bebé que foi a casa que tenha de ser internado, já não vem para a neonatologia” e isto acontece porque “temos uma capacidade limitada de isolamento.” Apesar de existir uma sala capaz de proporcionar esse isolamento, e que tem sido usada para o contexto atual de pandemia, não tem capacidade de resposta para todos os casos. “Não recebemos bebes do exterior que já tiveram na comunidade porque os bebés vêm, por regra, por motivos infeciosos e há um risco muito grande, de passar aos outros e pode ser problemático.” Mesmo estando nas incubadoras, o médico explica, “os vírus não se transmitem só por via aérea, mas também através das mãos dos profissionais, e o rácio de enfermeiros para bebés, é de 1 para 2 em intensivos, e de 1 para 4 nos Cuidados Intermédios, o que não permite receber estes bebés numa enfermaria onde estão bebés de grande suscetibilidade a uma eventual infeção respiratória.”
A equipa médica do Serviço de Neonatologia é constituída por 12 médicos, divididos em 3 grupos, um dos quais alocados ao internamento em alojamento conjunto com as mães dos bebés sem problemas de maior, os outros 2 dedicados ao internamento de bebés com patologia na UCIN, sendo que as equipas rodam entre si, de forma a manter o treino permanente de toda a equipa em todas as situações e evitar o desgaste emocional associado a um trabalho permanente em ambiente de cuidados intensivos. É impossível as equipas não criarem laços quer com os recém-nascidos quer com as respetivas famílias. “Em princípio é a mesma equipa médica que são 3 ou 4 profissionais, que assiste os bebés desde que nascem ao longo de todo o internamento e, em alguns casos, sobretudo dos grandes prematuros, estamos a falar de meses.
Quando falamos de grandes prematuros são bebés que nascem com menos de 32 semanas, mas há ainda outro patamar; o da extrema prematuridade. Neste caso, têm menos de 28 semanas de gestação e, têm de certeza de receber oxigénio. “O grande problema é e imaturidade de todos os sistemas e o mais premente é o respiratório. Não há nenhum bebé que nasça com 28 ou 29 semanas, que tenha capacidade para respirar o ar que nós respiramos sem nenhuma dificuldade. Isso é impossível e, portanto, todos precisam de apoio a nível respiratório. Os mais imaturos ou mais doentes recebem ventilação convencional invasiva com tubo na traqueia e, felizmente, cada vez mais os bebés conseguem aguentar-se com ventilação não invasiva, isto é, através de um dispositivo a que nós chamamos CPAP nasal. É colocado no nariz e está permanente a fazer pressão o que mantém o pulmão mais aberto. A isso acresce o suplemento de oxigénio e com isso, conseguem-se manter relativamente bem.” Os níveis adequados de oxigénio são fundamentais para garantir o bom desenvolvimento, sobretudo do sistema nervoso.
Esta evolução na Neonatologia veio fazer toda a diferença na taxa de sobrevivência destes bebés. Muitos morriam porque não conseguiam manter uma respiração eficaz, e sem haver resposta por parte da medicina, acabavam por não resistir. “Bebés com 33 ou 34 semanas que hoje conseguem sobreviver facilmente, não resistiam.” Foi na década de 60 e 70 e aconteceram as maiores descobertas neste campo. “A introdução da administração da maturação pulmonar fetal com a administração de corticoides à mãe veio revolucionar os resultados na prematuridade, pois permite acelerar a produção de surfactante pulmonar no feto, melhorando a sua capacidade de adaptação à vida extrauterina. A possibilidade de administrar, quando necessário, surfactante por via traqueal após o nascimento complementou essa revolução, contribuindo em grande medida para a sobrevivência dos grandes prematuros nos dias de hoje. Os médicos ajudam, mas espera-se que o corpo também se adapte e, na maioria das vezes, é o que acaba por acontecer. “O próprio sistema exposto à necessidade de respirar faz com que acelere um bocadinho o processo e toda a maturação deles é relativamente rápida, sobretudo quando estão em condições adversas, mas às vezes as condições adversas sobrepõem-se. Hoje em dia a taxa de sobrevivência é alta, sobrevivendo a maioria dos bebés nascidos acima das 24 semanas. Por outro lado, na nossa instituição nunca sobreviveu nenhum bebé abaixo das 23 semanas.”
A importância dos laços parentais
Os recém-nascidos têm um sistema imunitário ainda muito frágil e, por isso, qualquer infeção pode ter um fim trágico e, é exatamente para prevenir esse desfecho que é obrigatória a adoção pelo Hospital de medidas adequadas à minimização da propagação de infeções na UCIN. Por outro lado, a permanência dos pais junto dos seus filhos é de enorme importância. Com a pandemia, e para proteger todos os bebés, decidiu-se fazer as visitas em dois turnos e limitar o número de entradas na sala dos Cuidados Intermédios ou Intensivos. Uns vêm de manhã outros de tarde.
O Serviço de Neonatologia tem 19 vagas distribuídas entre berços e incubadoras. Os pais são convidados a criarem laços com os seus filhos, apesar da fragilidade e dos cuidados que é preciso ter para lidar com um ser tão pequenino. Neste campo entra a equipa de enfermeiros, que está sobre a coordenação da enérgica enfermeira Graça Roldão, que assumiu as funções de chefia. Ensinam os pais a tratarem dos seus filhos e a promoverem algumas práticas que fazem a diferença.
“Temos uma sala com máquinas para extração do leite, porque mesmo os bebés que ainda não têm capacidade de sucção, devem beber o leite materno. Este leite é vital para o sistema imunitário do bebé, mas é também aconselhado porque tem melhor tolerância a nível gástrico. Promovemos o método canguru, que é aninhar o bebé no corpo da mãe ao mesmo tempo que há contacto
pele com pele. Para além de ficarem aconchegados, estabiliza-os”, garante. Circulamos por entre os corredores e deparamo-nos com uma incubadora encostada a uma parede. “Serve para fazer o transporte dos bebés. É uma unidade móvel capaz de os levar em segurança entre serviços ou até para o Hospital de Santa Cruz”. À medida que vai explicando como as coisas são, percebemos que toda aquela nova informação que recebemos é tão rotineira que quando pergunto os meus “porquês” os olhos azuis abrem-se numa atitude quase de surpresa quando alguém lhe pergunta aquilo que considera óbvio. Mas já são muitos anos a vestir a bata ou melhor, a camisola. Há 13 anos que está no hospital de Santa Maria e já lhe passaram muitos bebés do Serviço de Neonatologia pelas mãos. “Há pouco tempo veio uma mãe trazer fotografias de dois gémeos que nasceram cá e que hoje têm 18 anos”. Ao longo do corredor e mesmo à entrada da Neonatologia é possível ver molduras com
fotografias, alguns do antes e do depois. Falamos de bebés que nasceram com menos de meio quilo e que hoje aparecem sorridentes nas fotografias. Para além de serem histórias motivadoras para todos os que contribuíram para aquele desfecho feliz, são histórias que dão coragem aos que estão hoje a fazer o mesmo caminho.
Assim que entramos na sala dos Cuidados Intensivos, reparamos nas incubadoras tapadas. Parecem estendais com tecidos coloridos e cheios de bonecos, mas a razão para tal é de índole humana e protetora: os prematuros são muito sensíveis à luz e ao ruído e os panos permitem-lhes permanecer naquela bolha parecida ao útero materno. Ao todo são 12 os bebés que lutam diariamente para irem para casa. Alguns internados aqui, há meses. É o caso do Rafael. Nasceu a 16 de fevereiro quando a previsão era a 15 de maio. “As águas romperam prematuramente e o batimento cardíaco dele começou a falhar. Teve de ser feita uma cesariana de urgência.” A mãe diz que nasceu bem, mas pouco depois o quadro agravou-se; “O pulmão começou a fracassar e teve de ser ventilado.” Mas felizmente o quadro reverteu-se e para já, Rafael precisa apenas de ajuda para respirar e por isso mantém o CPAP. Agarrar a maminha é também uma tarefa que ainda está em processo de aprendizagem e, para compensar na alimentação, tem uma sonda.
Desde que nasceu Rafael ainda não saiu da Unidade de Cuidados Intensivos, mas atualmente, está mais forte, mais robusto. “Nasceu com 720 gramas e já tem mais de 2 quilos, diz a mãe enquanto fala para ele. “Presta muita atenção ao que dizemos. Gosta muito de conversa e já se ri desde que tinha pouco mais de um mês de nascido.
Ainda não há data prevista para ter alta e para ir ter com o resto da família que vive no Cercal, na zona de Sines. Rafael ainda não sabe, mas tem uma irmã. Ela já o veio ver, na altura em ele estava mal. “O quadro complicou-se muito e tivemos receio que não resistisse. Felizmente, melhorou.” Todos os dias durante o período da manhã pega nele, coloca-o no colo, estimula-o para mamar e fala muito com ele. “Estes meses não têm sido fáceis. Felizmente tenho contado com a ajuda da minha família que olha pela minha filha de 13 anos. O meu marido está a trabalhar no Dubai e eu tenho de estar aqui ao pé do Rafael.”
Não há data prevista para ter alta, “mas estamos todos muito ansiosos.”
Na sala dos Cuidados Intermédios encontramos Raquel Barbosa. É mãe de primeira viagem e já contava que o Afonso fosse nascer antes do tempo. “Era um bebé pequenino e que estava com pouco espaço para se desenvolver. Por isso este desfecho era expectável, não sabíamos é que seria às 34 semanas.” O parto estava previsto para o dia 12 de julho, mas as águas rebentaram a 5 de junho. Vieram para Santa Maria e por aqui se mantiveram. Afonso precisa de ajuda para mamar e ainda tem a sonda para se alimentar. “Venho todas as manhãs e treinamos a parte da alimentação. É importante estimular a sucção e habituar-se a mamar porque isso é fundamental para poder ir para casa.” Nos intervalos da mama coloca-o no colo, aconchegado a si, e sente que esse contacto o acalma. Mas heis que chega a hora em que a mãe tem de sir embora; “custa ir embora e deixá-lo, mas está a correr bem e dentro em breve vamos todos para casa.” Vai ter alta em breve.
Por baixo do cobertor vislumbramos um gorro colorido, “as enfermeiras dizem que devemos colocar o gorro para manter a temperatura corporal,”, explica Inês Mateus que tem Clara no colo. Também ela está nos Cuidados Intermédios e já não carece de ajuda artificial para respirar. Nasceu com 29 semanas, no dia 27 de abril. Uma pré-eclampsia obrigou a que tivesse de ser feito uma cesariana. O primeiro mês de vida foi passado nos Cuidados Intensivos e, muito embora tenha sido transferida para os Intermédios, a mãe diz que tem sido um período “cansativo psicologicamente”. O resto da família está muito ansiosa para conhecer a Clara e o que lhes tem valido são as novas tecnologias. “Enviamos vídeos e fotografias e isso aproxima as pessoas.” A Clara estava a dormir na posição canguru e nas palavras da mãe “é muito atenta, calma e, mesmo quando chora, é fácil de acalmar”. Para já ainda tem a sonda para compensar na alimentação.
Ainda sem previsão de data para alta.
Professor na FMUL
Para além de ser o Diretor da Unidade de Neonatologia, André Mendes Graça é também professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “Coordeno toda a área Neonatal dentro da cadeira da Pediatria e sou regente de uma disciplina opcional, criada em parceria com a Professora Ana Isabel e o Professor Francisco Abecasis, que é a cadeira de Cuidados Intensivos Neonatais e Pediátricos. Foi criada na altura da pandemia e por isso sofreu alguns constrangimentos, mas é muito apreciada pelos alunos por que tem uma vertente muito prática que lhes permite o acesso aos Cuidados Intensivos, Pediátricos e Neonatais. E ficam com uma noção da nossa realidade.”
O número de vagas é limitado às 12, porque seria impensável ter muitas pessoas a circular nestes serviços.
André Mendes Graça é natural de Lisboa e desde pequeno que queria ser médico. Talvez influenciado pelo pai que ainda hoje é médico obstetra. “Nunca o ouvi queixar-se da vida e sempre me pareceu satisfeitos com a sua opção,” provavelmente por isso, “nunca coloquei outra hipótese. Podia ter corrido mal, porque no meu tempo já não era tranquilo entrar para medicina.”
O doente pediátrico sempre lhe fez mais sentido do que o do adulto e “talvez por o meu pai ser obstetra e eu ter ido com ele a alguns partos, inclinei-me para a Neonatologia e tive essa oportunidade. Nem todos conseguem ser médicos e nem escolher a especialidade, pelo que me considero um privilegiado.”
Na altura que enveredou por esta subespecialidade, era ainda uma novidade. A primeira geração de profissionais nesta área foram Pediatras que se começaram a dedicar aos recém-nascidos, só se começando a organizar em unidades com equipa própria talvez no final dos anos 80. Esses médicos estão agora a reformar-se ou já se reformou. “Eu já sou da segunda geração e, portanto, quando entrei, havia uma necessidade de começar a renovar e também não havia muitos interessados em vir para Neonatologia. Curiosamente, neste momento as coisas mudaram, e há uma grande proporção que gostaria de seguir esta área e não o vai conseguir fazer, porque naturalmente é necessário distribuir os Pediatras pelas múltiplas áreas de especialização, não esquecendo a mais importante, porque serve todas as crianças em todo o país, que é a Pediatria Geral.”
Neste momento a equipa tem o melhor de dois mundos, alguma juventude, e experiência. “Precisamos de ir renovando e ir introduzindo novas pessoas, mas gradualmente.”
Dora Estevens Guerreiro
Equipa Editorial