A gravidez é por regra um momento de felicidade e de esperança. É por definição o começo de algo, de uma vida e, inevitavelmente, há expectativas criadas quanto àquele filho. A curiosidade de lhe conhecer o rosto, as características físicas e a personalidade vêm sempre acompanhas de muitos projetos. Mas, nem todas as histórias têm um final feliz e existe um número de gravidezes que não são levadas até ao fim. Várias razões levam a que os projetos e os sonhos sejam arrancados e o amanhã afinal, não exista com aquela auréola de felicidade que se imaginou. O testemunho que aqui deixamos é o de uma “mãe de colo vazio” como a própria diz. Olívia, a filha, não chegou a revelar-se. Não teve o primeiro dia na creche, nem na escola e nem chegou à casa que a esperava, mas a sua memória permanece na mãe que nunca a esquecerá e agora fica também na nossa.
Esta é uma homenagem a todas as “Olívias” que não tiveram oportunidade de ter um futuro.
“A perda gestacional ainda é um tema tabu na nossa sociedade. Pouco ou nada se fala do assunto e quando a situação nos bate à porta pensamos que somos os únicos a passar por essa dura experiência. A realidade, porém, é bem diferente.
No meu caso, as palavras que nenhuma mãe quer ouvir chegaram aos três meses do que parecia ser uma gravidez normal. Na ecografia do primeiro trimestre foi detetada uma grave anomalia cardíaca (artéria conotruncal com duplo arco aórtico), confirmada depois por mais dez ecocardiogramas fetais, devido à extrema raridade do problema. Seguiram-se várias consultas com especialistas em cardiologia pediátrica, na tentativa de ajudar a salvar a pequena Olívia à nascença, com a que seria a primeira de muitas operações necessárias para reparar o seu coraçãozinho. Aos quatro meses foi realizada uma biópsia das vilosidades coriónicas para confirmar se o problema era limitado ao coração, que confirmou o pior: uma deleção terminal de 1.34 MB na região 6q27, que se traduziu numa enorme possibilidade de limitação intelectual, motora e epilepsia, além do diagnóstico anterior, o que na realidade inviabilizava a sua vida.
A decisão de colocar termo à gravidez aos cinco meses foi (e ainda é) extremamente difícil, mas constituiu sobretudo um ato de amor. A última coisa que qualquer mãe ou pai quer é ver os seus filhos a sofrer e não me passava pela cabeça condenar a Olívia a uma existência assim. Amo-a demais para isso, mesmo que tal significasse deixá-la partir sem ter a possibilidade de a conhecer.
Já tinha perdido avós e a minha mãe, mas a perda de um filho é uma dor totalmente diferente: é a perda de sentimento maior que tudo o que já tinha sentido por alguém, mesmo alguém tão pequenino, é a perda do futuro que tanto sonhamos e que nunca se vai realizar, é a enorme saudade e amor que ficam sem serem nunca materializados. Quando vejo alguma menina moreninha na rua penso inevitavelmente se a minha filha seria assim, se teria esse aspeto ou essa personalidade... Nunca saberei.
Tive a sorte de a puder ver e abraçar depois de um longo e doloroso parto de 24 horas, com a devida dignidade que nem sempre ocorre nestas circunstâncias. O enfermeiro e a estagiária da Maternidade Alfredo da Costa que estiveram comigo no bloco de parto embrulharam-na com todo o cuidado, retiraram-lhe as impressões da mão e do pé para recordação numa caixinha de memórias e deixaram-me pegá-la. Era uma pequena bebé perfeitinha apesar do seu tamanho, reconheci-lhe os meus olhos e o nariz do pai, e foi um momento de paz e de grande ternura, apesar da Olívia já ter nascido sem vida.
Não creio que tivesse conseguido superar os dias, semanas e meses que se seguiram sem o apoio do Grupo Pais Coragem, um grupo de voluntários constituído por profissionais de saúde da MAC e por outros pais que também perderam os seus filhos durante a gestação. Foi aí que compreendi que esta realidade é vivida por um esmagador número de pais que sofrem em silêncio e quase sem apoio. Foi também aí que percebi a legitimidade daquilo que já sentia e que tantos outros sentem: a minha filha morreu, mas a mãe que há em mim não. Sou uma mãe de colo vazio, mas não deixo de ser uma mãe, o que não é reconhecido pela maioria das pessoas que nos rodeiam.
Por experiência própria e também pelas vivências partilhadas no seio do grupo de apoio (um dos muito poucos que existem em Portugal e sem qualquer financiamento), verificamos que a família e os amigos raramente falam sobre o assunto, perguntam como foi o processo e mencionam os bebés. Por certo, para não relembrar a perda, porque lhes é difícil abordar o tema e não sabem o que dizer e porque é complicado em sociedade reconhecer que perder um filho durante a gravidez é, ainda assim, perder um filho. Porém, para os pais, o silêncio é extremamente doloroso, pois a perda está connosco todos os dias, faz parte de quem somos hoje e mudou-nos inevitavelmente. Falar do bebé que partiu é de certa forma honrá-lo, dar-lhe significado e ajudar a preservar a sua memória, pois a última coisa que uma mãe ou pai quer (ou consegue fazer) é esquecer que o seu filho existiu. Lembrar e abordar a Olívia, não obstante, não é para mim triste ou negativo. Muito pelo contrário, a minha filha deu-me uma força incrível para ultrapassar obstáculos que eu acreditava intransponíveis, para olhar para o futuro com esperança… e mudou indelevelmente a minha forma de encarar as prioridades da vida. Recordo-a, sobretudo, nas muitas ecografias que fiz, no modo como fazia bolhinhas de líquido amniótico com a boca e como se enrolava de costas para a sonda, bem escondida junto à minha coluna, quando a tentavam virar de um lado para o outro para ver o seu coração.
Agora grávida novamente, sinto-me ainda mais conectada com a Olívia. Nenhum bebé substitui outro, mas o coração dos pais tem um tamanho infinito e consegue acolher todos os filhos no seu amor, estejam eles onde estiverem.”