NOTA Editorial: Este artigo contém algumas imagens de alguma violência, pedimos por isso que as pessoas mais sucetíveis não as vejam. No entanto, considerou-se que pela pertinência do tema, não era possível ignorá-las. Valerá sempre a pena repetir estas imagens para recordar o que a Guerra causa. É pela dor da Svitlana e por todos os ucranianos que queremos mostrar uma ferida aberta que é de todos nós.
Os primeiros anos passou-os numa pequena aldeia rural. Tempo suficiente para recordar os animais que se cruzavam no seu caminho diariamente e da senhora que levava as vacas para as pastagens. Quando percebi que a entrevista era a causadora de alguma tristeza, pedi-lhe que se transportasse até aos seus sonhos, aqueles que tinha da sua terra, quando precisava de voltar a ela para encontrar abrigo.
Era dia 24 de fevereiro, já passava das 03h30 em Portugal e a Europa acordara mais cedo ao saber das primeiras explosões nos arredores de Kiev, na Ucrânia. Poucas horas antes, Vladimir Putin, líder russo, reconhecia publicamente a independência de Donetsk e Luhansk, na Ucrânia, assumindo que o conflito entre os dois seria “inevitável”. Em resposta aos mais de 200 ataques por três principais frentes, o líder ucraniano, Zelensky, comparava Putin a Hitler, avisando que este momento poderia ser o começo de uma Guerra Mundial. Poucas horas depois Zelensky aplicava a lei marcial a todo o território ucraniano, os homens maiores de idade e até aos 60 anos tinham de ficar no país e combater as tropas inimigas.
Já se habituou a ter vários nomes: Stivlana, Svitelana, Svetlana, mas para os mais próximos pede que a chamem apenas de Svi.
Tem 25 anos e veio para Portugal com 10. O pai veio para amealhar algum dinheiro, mas como a vida oferecia melhores condições, todos acabaram por se mudar. Ela, a mãe e o pai e a irmã, 7 anos mais nova.
Até vir para Portugal, sempre viveu na periferia de Lviv, a cidade agora altamente fustigada pelas tropas russas e que fica
A Ucrânia era o seu lugar, lugar pacato e rural, com cheiros de infância e a roupa estendida ao vento, entre amigos e primos e dividida pela atenção de todos os avós.
Mas como não via a sua vida sem os pais, veio para Portugal, onde fez então a escola e num só ano aprendeu a falar fluentemente. Enquanto ia aprendendo a nova língua, falava entre gestos universais e o inglês básico e nem por isso deixou de comunicar.
Assim foi durante os primeiros cinco anos, Svi e a família não podiam viajar até à Ucrânia, pelos custos das viagens, o que foi aumentando a saudade e a distância da restante família e dos amigos de sempre.
O primeiro embate que teve foi quando recebeu a mensagem da mãe, "a guerra começou".
O processo do choque e a gestão das fugas e das tristezas, é o que a própria nos conta, em seguida.
Sobre ela podemos ainda dizer que mantém na Ucrânia a avó e o tio do lado da mãe e a viver
Da menina de cabelo arruivado, olhos expressivos grandes e dentes brancos, tudo nela fala, mesmo quando as palavras lhe ficam presas pela comoção. Formada em Biologia na Faculdade de Ciências, veio para a FMUL fazer o Mestrado em Neurociências,
Recordo que era quinta-feira bem cedo e que, mal liguei a televisão, estava ali diante dos olhos aquilo que ninguém queria acreditar que podia acontecer na Europa. A Rússia invadia a Ucrânia. Não era um filme, nem um documentário de um país já sacrificado no passado. Era tudo real. O que sente uma pessoa que vê a sua terra a ser invadida?
Svitlana: É...é algo inexplicável. Acordei com uma mensagem da minha mãe e ao ver as primeiras notícias desatei a chorar. E assim fiquei o dia inteiro. Chorei, chorei…, não conseguia desligar a televisão, não conseguia deixar de pensar nas pessoas em pânico e eu ali, impotente, sem ter como ajudar. O meu pai, pelo trabalho que tem, chegou de madrugada a casa
Como foi o vosso processo de estar à distância e tentar saber da família e pedir que fugisse do próprio país?
Svitlana: Com todas as notícias que íamos vendo, sabíamos todos que algo podia acontecer. Mal a guerra surgiu, pedimos aos meus tios para saírem. Tinham tudo estável na Ucrânia, casa, trabalho, os amigos e por isso estavam reticentes em sair, mas nós íamos dizendo, "encarem esta saída como uma viagem de férias", mas sabíamos que era como estar a enganar uma criança. Foram então os meus primos, a prima com as três filhas e marido, que se decidiram
Os meus primos saíram numa fase em que as fronteiras estavam totalmente lotadas, havia
Mas acabaram por conseguir passar e ficaram ainda uma semana na Polónia, em casa de pessoas amigas. Só depois vieram para Portugal.
Nessa altura os meus tios decidiram vir também e para eles a saída foi mais fácil, no caso deles estiveram só umas poucas horas na fronteira. E isto porque as pessoas começaram a dispersar pelas várias fronteiras, procurando outros países como solução.
A avó ficou...
Svitlana: Já não tinha força nem condições para sair e afirma que vai ter o destino
Já chegaram as tropas russas onde a avó vive?
Svitlana: Até ver está tudo calmo nas imediações da aldeia onde ela está. Nos últimos dias nem têm tido sirenes a informar do perigo de ataque. As pessoas têm tentado manter a vida relativamente normal, porque (faz uma pausa engasgada entre a palavra e a comoção) estar sempre a viver com medo, é terrível para a sanidade mental. Estar a viver no medo constante, não é suportável para ninguém.
Acha que a sua avó tem medo?
Svitlana: Não... (sorri) Acho que não. Ela acredita mesmo que se for a hora de ela ir embora, que irá. (Fica a pensar) Poucos dias antes da guerra começar, ela já tinha um discurso de "despedida". Parecia um pressentimento de que poderia morrer em breve. Fiquei chocada e emocionada quando a ouvi. Fiquei perturbada, mas a minha avó estava em paz com a ideia.
Passou exatamente um mês desde o primeiro dia da invasão. Como está agora?
Svitlana: Tive de parar de ver as notícias. Ainda assim tenho estado muito sensível a tudo. Tenho estado bastante ansiosa e na minha cabeça tenho escalado logo para o pior e não consigo travar.
Ajuda falar sobre o que está a viver?
Svitlana: Ajuda muito. Não imagina as pessoas que me contactaram nos primeiros dias para me dar apoio, numa primeira fase nem consegui reagir e devolver a resposta às pessoas. Não conseguia falar do assunto, precisei de tempo para processar os pensamentos e sentimentos. Agora até me ajuda mais falar do que calar.
Vamos fazer aqui uma pausa, para que ao falar demais da guerra não a faça entrar na tal escalada de pensamentos negativos. Deixe-me voltar a um ponto de partida da nossa conversa, quando me falou dos seus sonhos com a Ucrânia. Se eu lhe pedisse agora para imaginar a sua terra, no momento em que a deixou, que Ucrânia me descreveria?
Svitlana: (De rosto profundamente emocionado, surgiu um sorriso no mesmo fragmento de tempo) Então... eu nasci numa aldeia e depois vivi em vários sítios que os tenho a todos bem presentes na minha cabeça. Vivi na aldeia onde nasci em casa da minha avó... Havia uma vivenda e um baloiço onde eu andava, e lá estavam os animais de estimação. Tive vários cães e um gato, galinhas
Como é que comenta esta transição de sairmos de uma crise pandémica. E assistirmos a uma guerra a entrar pelos olhos de todos?
Svitlana: Os primeiros tempos foram muito difíceis... Estava
Sabe, até me sinto mal de estar a pensar no pior, quando há realmente pessoas a viver o inferno. Tento por isso estar grata todos os dias, por tudo o que tenho, por ter a minha família em segurança... (Comove-se)
A crise de ansiedade da guerra obrigou o pai de Svitlana a por baixa e a pedir apoio psicológico. Quanto a Svitlana e porque já tinha apoio dos tempos agudos da pandemia, sente que não quebrou tanto por já ter o suporte detrás.
No final da conversa, agradeceu ao povo português pela forte adesão e ajuda prestada a toda a família, mal chegaram a Portugal.
A família de Svitlana foi recebida com um apartamento emprestado, assim como todo o recheio de casa. Foi tudo feito em nome do bom coração dos portugueses.
Ao falar com a Svi sei que tem tido a disciplina de exorcizar os seus fantasmas, tentando aliviar a dor que lhe dá à alma imaginar a sua terra sem verde, nem paz. Porque não há previsão de fim da guerra e a Ucrânia se mostra valente no combate às tropas russas, muitos poderão ser os dias de fogo e escuridão de um povo habituado a dar vida pela glória de uma nação que não quer ser mais oprimida. Essa é a escuridão que não deverá mais assombrar os pensamentos da Svi, razão pela qual ficou expresso e combinado que, se o terror lhe bater à porta, fechará os olhos e lembrar-se-á da sua Ucrânia da infância, quando passar pelo portal entre os dois países que são dela de coração.
Joana Sousa
Equipa Editorial