O olhar de Eddy Martins
Quando falámos poucas horas depois de terem partido, a Maria enviava fotografias de uma sala repleta de caixotes cheios de medicamentos e materiais médicos que em breve seguiriam para a fronteira da Polónia com a Ucrânia.
O Eddy Martins do 4º ano e a Joana Matos do 2º ano, ambos de Medicina, com o Rodrigo Bernardo do 2º ano de Nutrição, partiam de Portugal dia 15 de março, ficando por 5 dias numa das cidades com maior afluência de refugiados, Medyca, na Polónia. Numa entrevista à rádio local de Vagos, a sua terra natal, Eddy reforçava a sua disponibilidade para partir sem hesitação, “levou-me a ir este espírito de missão e chegar àqueles que precisam, mas sabemos que este é um desafio enorme em tempo de guerra”.
Atrás destes três estudantes da FMUL, seguir-se-iam dezenas e dezenas de caixotes com ofertas que chegavam até ao dia da partida do camião. “O material médico é mais exigente de acondicionar e este é muito necessário para os primeiros-socorros às pessoas que estão no terreno e com tamanho sofrimento. Precisam de um abraço e de uma sopa quente, mas também de verem salvaguardada a sua saúde”, anunciava Eddy horas antes de partir, rumo à Polónia. Em Portugal as notícias dos bens recolhidos avizinhavam realidades talvez nunca pensadas por nós antes. Mesmo antes da partida dos materiais voltava a falar com a Maria, “estamos ainda a reunir várias caixas da pílula do dia seguinte, para as mulheres que possam ser vítimas de violação”. Há informações que nunca as teríamos equacionado, porque simplesmente não nos são viáveis à nossa experiência de vida e, no entanto, e com tanta distância, conseguimos sentir tão de perto o medo e a fragilidade da condição humana.
Avaliar em que condições se encontravam os refugiados que continuam a tentar fugir todos os dias da guerra, foi o que ligou o Eddy, a Joana e o Rodrigo, à Associação Entremundos. Associação que tem como foco a integração de refugiados em Portugal. Inspirada nesta missão a AEFML decidia assim que a Feira Solidária, que se realiza todos os anos durante uma semana intensiva, deveria integrar-se nesta ajuda nacional aos refugiados ucranianos. Também a Madeira Emergência uniu esforços e depois de enviar um barco com donativos e materiais, até ao Continente, juntou-se a esta equipa e partiu com ela de avião.
A notícia propagou-se rapidamente depois de o relato passar na TSF. Quem eram estes alunos corajosos que partiam sem certezas do que os esperava? Quem era o rapaz de olhos claros que promovia orgulhosamente a sua Faculdade, sem pedir acordos, nem apoio, nem esperar o devido reconhecimento? Como se estariam a sentir todos eles, depois das horas de voo e mais seis horas seguidas a conduzir? Eram algumas das perguntas que ia enviando colocando no ar, ou trocando com a Maria Delícias, também ela estudante de Medicina do 3º ano e uma das coordenadoras do Projeto Feira Solidária, e o nosso elo de ligação a este grupo.
Calculado e detalhado um plano de trabalhos, desenhado em Portugal, nada aconteceu por mero impulso de quererem ser apenas solidários. O primeiro passo foi entrar em contacto com a Cruz Vermelha da Polónia, para conhecerem o terreno que iam pisar. Falaram com alguns ucranianos já chegados a Portugal e ouviram igualmente o ponto de vista de alguns jornalistas portugueses. E enquanto uns partiam rumo à fronteira com a Ucrânia, uma equipa, onde ficava a Maria, ia organizando outras pastas e formalidades antes da chegada oficial de todos.
Eddy Martins é o outro Coordenador Geral da Feira Solidária, juntamente com a Maria. O projeto já trabalhava com a EntreMundos de outras realidades antes da própria guerra. O primeiro processo de ajuda conjunta foi com uma família refugiada vinda de Cabul. Só depois viria a nascer a grande ação humanitária de integração com a Ucrânia. Integração é, aliás, princípio muito defendido pela Associação EntreMundos que só acolhe aqueles que tem capacidade de inserir devidamente com uma casa e emprego. Localizadas mais a norte do país, são várias as ofertas de trabalho feitas para quem precise de recomeçar a vida, explicava-me a Maria, “há várias Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais que asseguram os empregos a estes refugiados e preparam tudo para que eles possam vir”.
A ida desta equipa humanitária não se destinava, contudo, apenas ao possível resgate de refugiados. Mesmo ainda de partir para a Polónia, Eddy explicava os vários caminhos de ação, “os bens serão distribuídos em dois grandes grupos, um que vai entrar num dos corredores humanitários criados, com o objetivo de chegar até Lviv, aos hospitais e famílias onde são muito necessários materiais médicos. A outra metade ficará mesmo na fronteira com a Polónia, onde é igualmente necessário socorrer tantos refugiados que já aparecem mal”. Mas não só, “a forma como estamos a avaliar o terreno, permite-nos avaliar depois que outras pessoas possam vir e também ajudar como nós”.
Depois do primeiro grande embate que os abalou de forma muito visível, surgiam as primeiras fotografias por eles publicas nas redes sociais.
Dois dias depois, Eddy Martins aparecia numa reportagem de televisão enquanto coordenador do grupo de voluntário, mas também pela sua experiência de enfermeiro e Mestre em Ação Humanitária. Desse primeiro relato Eddy dava conta dos principais sintomas dos vários refugiados que observara: “desidratação, profundo cansaço e descompensação de doenças crónicas causadas pela falta de medicação habitual”. Primeiro elo de ligação, passando a fronteira, Eddy e os seus companheiros voluntários captavam destes refugiados ucranianos não só os sintomas mais evidentes, como tantas emoções cuja língua é ainda universal.
Seria o próprio Eddy a contar em nome dos nossos 3 estudantes, aqueles marcantes dias vividos com tantas marcas por segundo.
“Chegados ao local, deparámo-nos com uma realidade avassaladora. A primeira paragem foi no Centro de Refugiados de Przemyśl, instalado num antigo Centro Comercial chamado Tesco, que faliu durante a pandemia. Com capacidade para acolher 2000 pessoas, naquele dia tinha mais de 5000. Crianças a chorar, mulheres desesperadas e idosos exaustos são algumas das primeiras imagens que ficam marcadas na nossa memória. Nesse mesmo dia, uma criança de 4 anos correu para os nossos braços, esboçou um sorriso por nos ver e ofereceu-nos um desenho. Não era uma casa nem um jardim. Era um carro blindado. Passou-nos pela cabeça: “Que tipo de memórias ficarão gravadas nas cabeças daquelas crianças?”. Neste primeiro dia de missão, tínhamos como objetivo conhecer bem o terreno, para que ao longo da semana os objetivos a que nos tínhamos proposto pudessem parecer menos ambiciosos. Deslocámo-nos, então, a Medyka: a verdadeira porta de entrada. Naquele corredor humanitário passavam dezenas de milhares de seres humanos que deixam as suas vidas pendentes. Decidimos montar uma tenda de apoio médico e logístico nessa mesma fronteira em Medyka, a 12 km de Przemyśl e a escassos metros de território ucraniano. Sentimos de imediato que aí faríamos toda a diferença: primeiro, porque não havia, ainda, voluntários portugueses naquele corredor e, segundo, porque tínhamos condições para ser a primeira instituição credenciada no local.
Os restantes dias de missão foram um verdadeiro desafio. Entregámos a uma coluna militar, que seguia para Lviv, o material médico angariado, começando de seguida toda uma gestão de refugiados com interesse em vir para Portugal. Em articulação com o Alto Comissariado para as Migrações, sob tutela da EntreMundos, foi repatriada nos nossos 3 autocarros mais de uma centena de ucranianos. A boa capacidade de trabalho, aliada ao rigor da comunicação que a equipa demonstrou ter, quer no terreno quer em Portugal, permitiram que grande parte das famílias recebidas no nosso país tivesse casa, trabalho e acesso à saúde e à educação.
Depois de, no segundo dia, termos entregue as 4 toneladas de material médico recolhidas, no terceiro dia fizemos uma triagem médica e psicológica de todos os refugiados que entraram nos nossos autocarros. Foi maravilhoso perceber que estamos a dar esperança de um futuro melhor àquelas pessoas. Aqui, o momento mais marcante foi o de uma mãe que nos confiou a própria filha, dizendo-nos que pretendia voltar para a Ucrânia. Queria, por um lado, estar próxima do marido, que tinha ficado a defender o seu país, mas, acima de tudo, não podia abandonar os pais acamados.
Os restantes dias de missão foram de uma solidariedade ímpar. Prestámos apoio médico às pessoas que ali chegavam com pequenas lesões ou descompensações de problemas de saúde, mas muito mais do que isso foram todas as sandes, chás, mantas, sorrisos e abraços que lhes pudemos ceder. É indescritível a forma como uma sopa quente e um olhar ternurento podem aliviar tanto sofrimento. O sofrimento daqueles que fizeram dias de viagem a pé, à espera para cruzarem a fronteira, debaixo de temperaturas negativas, com fome e separados dos seus entes queridos.
Agora regressados, fica a certeza de que demos o nosso melhor, mas prevalece também a vontade de regressar um dia. Ainda há feridas para sarar. São as feridas que esta guerra deixou, deixa e deixará a estas pessoas. Quanto a nós, também vai marcar para sempre as nossas vidas, mas terá sido sempre em prol de uma causa maior, é a causa de um povo irmão que faria o mesmo por nós”.
No que toca à Feira Solidária e nos próximos meses haverá continuidade a todo este trabalho com vendas de rifas, organização de webinars expositivos e dinamização de um evento solidário. O objetivo é de angariar fundos que permitam à Associação EntreMundos um acompanhamento tão próximo quanto possível destas famílias resgatadas em Portugal.
Dados avançados pela RTP dizem-nos que a cada minuto há mais 55 crianças deslocadas dentro da própria Ucrânia. Dos 3.600 milhões que já atravessaram até à Polónia, cerca de metade são crianças. A ONU estima que a guerra já tenha desalojado 6.500 milhões de ucranianos, obrigados a procurar outras regiões. E se previa a médio prazo que se atingissem os 10 milhões de refugiados, agora os números parecem poder aumentar. Diante do cenário atual, a ONU afirma que esta é a maior e mais rápida crise de refugiados na Europa, desde a II Guerra Mundial.
É talvez a primeira vez que o artigo não segue a linha habitual do tempo para contar uma história. Mas opto por fechar com o Eddy que foi partilhando emoções e pensamentos que o passarão a assombrar. Mas que são de todos nós, penso.
Até quando?
Até quando, por "meia dúzia de terrenos" morrerão mais seres humanos? Até quando, às mãos da prepotência, uma criança ficará órfã? Até quando, sob o olhar da democracia alheia, um idoso deixará para trás o conforto do seu lar? Até quando, uma mulher, às sombras do medo, deixará o seu marido na guerra?
Esta viagem marcará para sempre o sentido da minha vida: tenho tudo e, às vezes, insisto em sentir-me no nada!
Desafiei-me, de malas às costas, a dar todo o meu amor àqueles que deixaram tudo para trás: tentei ser-lhes luz e esperança num mundo melhor.
Fizemos tanto com tão pouco!
Tão importante quanto as 4 toneladas de material médico entregues em solo ucraniano, os 3 autocarros de resgate e os cuidados de saúde prestados foram: as sopas, os chás, as mantas e todos aqueles "abraço casa"!
Que bom foi sentir-me um "porto seguro" para aquele povo irmão que a conta gotas passava (aos milhares) naquela fronteira de Medyka.
Regressei com vontade plena de ficar! Mas a missão continua também aqui!
Obrigado a todos pelas mensagens de carinho e força! Mas, sobretudo, obrigado a todos os companheiros de viagem: aos que foram e aos que vieram gravados no coração!
Até quando?
- Eddy Martins – 4º ano MIM, enfermeiro e mestre em Ação Humanitária, coordenador da equipa de voluntariado
Joana Sousa
Equipa Editorial