A palavra que para mim melhor descreve a Liana é imparável. A Liana Shvachiy nasceu na Ucrânia em 1994 e veio para Portugal ter com os pais no momento em que entrou para o 5º ano. Adaptou-se com facilidade ao sistema de ensino português, tendo sido bem recebida pelos colegas. Seguiu a licenciatura de Biologia Humana na Universidade de Évora, entre 2012 e 2015, tendo feito um estágio no Instituto de Medicina Molecular. Foi assim que começou a sua relação com a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Iniciava assim o Mestrado em Neurociências no Cardiovascular Autonomic Functions Lab na FMUL, com foco na exposição ao chumbo. Neste momento encontra-se a realizar o doutoramento em Ciências Biomedicas, formação mista entre a FMUL, em Portugal, orientada pela Professora Vera Geraldes, e na Alemanha, na Universidade de Gottingen, com o Professor Tiago Outeiro. Para além do seu percurso académico, não deixa de ter várias atividades, sendo voluntária do EIT Health Alllumni e embaixadora da Bimco, na área da saúde ucraniana.
Foi quando a 24 de fevereiro deste ano aconteceu o impensável. Não ficou parada. E é neste contexto que falamos com ela, para saber do muito que tem feito para ajudar os seus conterrâneos, desde a recolha de bens e medicamentos, até ir buscar pessoas à Ucrânia para Portugal.
Leiam um pouco da sua jornada.
O que estavas a fazer quando aconteceu esta fatalidade da guerra na Ucrânia?
Liana Shvachiy: Tenho andado entre Portugal e a Alemanha por causa do Doutoramento. E calhou nesse dia estar em Portugal, já que aqui estou a fazer experiências animais, e na Alemanha experiências moleculares, ficando um mês em cada um dos lados. Efetivamente no dia 21 de fevereiro tive que me deslocar para Portugal para realizar as minhas experiências animais que têm os seus momentos específicos, portanto eu estava cá nessa quinta-feira.
Lembro me bem, quando acordei e tive essa notícia. é das piores notícias que uma pessoa pode receber tendo a família na Ucrânia. Não desejo a ninguém porque foi devastador. recebi uma mensagem de uns amigos a dizer "a guerra começou à noite". Eu depois fui ver as noticias e vi que tinha havido bombardeamentos no país inteiro, o que se tornou ainda mais devastador. Eu tenho família na parte oeste, sou de perto de Ternopil, efetivamente foi um momento de pânico, e fui logo contactar a família toda, tentar perceber qual era a posição deles. Se estavam bem, se pensavam sair. Temos muita família na Ucrânia, mas contactei também a família cá que está em Portugal, para saber se tinham já alguma informação. Nesse dia já não cheguei a ir ao laboratório, porque a decisão foi de ir para Évora, a minha terra natal portuguesa. Fui logo para lá tentar ajudar a minha mãe e a minha tia que tem lá o filho. Começamos logo a tratar de documentos para eles virem, não só ao meu primo, mas também aos meus avós e efetivamente, na quinta e sexta, andei a tentar perceber como seria com os nossos familiares. Foi um dia de muito choro e pânico, por não saber como se desenvolveria a situação.
Depois desses dois dias, eu vi que havia já muitos movimentos a acontecer no mundo no geral, mas também nos países mais próximos à Ucrânia que começaram logo a receber pessoas refugiadas. Começaram a juntar bens materiais, assim como doações de sangue e tudo. Achei que estávamos um pouco parados, que não havia nada em Évora, e nós temos uma grande comunidade de ucranianos em Évora, somos mais de 1000 ucranianos e na zona do Alentejo somos mais de 5000. Ninguém dizia nada, não se fazia nada, Contactei o nosso padre, nesse dia no sábado, perguntei-lhe se havia alguma coisa que estivéssemos a fazer. Ele disse-me que efetivamente na terça-feira a seguir iam sair camiões de Lisboa, com bens materiais e que se calhar podíamos publicar algo no facebook e no instagram. Como eu tenho muitos amigos e conexões, foi o que fiz: publiquei que íamos começar a recolha de bens e então houve um boom na internet. As pessoas em Évora quase que estavam à espera que alguém lhes dissesse para fazer alguma coisa. As primeiras fizeram-me algumas doações, para eu poder ir comprar medicamentos, porque nem toda a gente tinha disponibilidade para vir ter comigo. O tempo era reduzido, dois dias para poder recolher os bens e foram os meus amigos, e amigos de amigos e pessoas que eu nem conheço, mesmo aqui de Lisboa, que fizeram imensas doações. Conseguimos num só dia angariar mais de 1000 euros em medicamentos, as próprias farmácias começaram a doar alguns materiais e medicamentos que nós não conseguíamos comprar facilmente. Com esta recolha de bens, com roupa, alimentos e higiene, conseguimos mandar na segunda à tarde 10 carrinhas cheias de bens para Lisboa, para seguirem depois para a Ucrânia. Não tínhamos, no entanto, mandado tudo, porque estávamos a receber mais coisas, tivemos de manter as recolhas e de ir falando com o padre e com os outros colegas, porque, depois de algum tempo, eu fiquei como responsável. Criei então uma equipa, e continuamos as recolhas, até ao final da outra semana. Eram vários os concelhos e cidades que vinham entregar bens, desde Portalegre até Beja, mesmo o Alentejo inteiro vinha entregar-nos bens. Tivemos que arranjar um armazém, primeiro era no seminário de Évora que colocávamos tudo, mas efetivamente já não chegava. Conseguimos mais de 100 voluntários em 3 ou 4 dias, éramos mais de 100, a capacidade das pessoas se organizarem foi incrível, algumas vinham ter connosco para entregar os bens e perguntavam "em que posso ajudar" e efetivamente quando tínhamos essas entregas muito grandes havia sempre algum trabalho para se fazer e as pessoas iam ficando. Criei também a página no facebook, porque achei que era importante para poder partilhar informação mais relevante. O facto de termos pouca informação era muito mau. A uma certa altura, dizíamos que já não podíamos recolher mais roupa, e até hoje ainda nos entregam bens, porque há partilha de informação que já não era atualizada.
Com quem é que vocês estavam a comunicar para perceber as necessidades?
Liana Shvachiy: Eu tive que comunicar com as pessoas cá em Portugal, mas também na Ucrânia. O facto de ainda ter alguma ligação com a Ucrânia ajudou bastante. Ser investigadora e estudante de doutoramento e fazer parte de uma conferencia ucraniana de saúde a Bimco, onde sou embaixadora, ajudou muito. Falei logo com os meus colegas e perguntei quais os medicamentos e materiais necessários, contactei igualmente algumas instituições para perceber o que era importante. Lá está, quando há muita partilha de informação, ela pode ser contraditória, por isso houve essa recolha de informação. Passei a fazer a gestão de pessoas, o que me fez conhecer muitas novas. Foi assim um grande boom que depois acalmou. Depois de uma semana, conseguimos encher um armazém enorme de bens e que precisávamos de enviar. Precisávamos de algum tempo para também podermos organizar tudo. Não era só recolher, era preciso empacotar e identificar tudo, para depois podermos enviar. Conseguimos enviar o nosso próprio camião. Foi uma pequena vitória para nós dentro desta guerra, porque foi mesmo organizado da nossa parte, com ajuda de algumas empresas em Évora que quiseram permanecer anónimas. Estas empresas têm ajudado bastante e depois também começámos com a ideia da caravana. Foi uma ideia de algumas pessoas que acharam que seria útil irmos lá, buscar refugiados. Nessa altura ainda não havia muitos transportes, agora já há muito e mais organizados. Da nossa parte foi uma questão de uma reunião em que algumas pessoas se juntaram, demos as nossas ideias, o que tínhamos que fazer, tínhamos que arranjar carrinhas, dinheiro, efetivamente as doações que nos foram enviando serviram para esta viagem também. Trouxemos 31 pessoas, 20 mulheres e 11 crianças, de idades entre o ano até aos 68 anos. Essa viagem foi dura, claro, muito desafiante, o que vimos na fronteira, foi que havia uma grande organização por parte da Polónia. As pessoas estão alimentadas, num local quente, não há aquela sensação de estarem sem apoio. Há um tratamento muito bom das pessoas, claro que estão assustadas e inseguras, mesmo para vir ter connosco... Algumas confessaram que se eu não estivesse lá, não viriam. Afinal fui eu que as contactei.
Foi uma questão de estabelecimento de confiança- Como se processou essa parte?
Liana Shvachiy: Foi também de crescimento para mim. Neste caso, da parte logística de pessoas, percebi que consigo fazer outras coisas que não só investigação, mas efetivamente o que fiz foi colocar publicações no facebook e contactar a Wehelpukrain, uma entidade que está a organizar não só transportes, como alojamento e apoio aos refugiados. Também tenho contactos na Ucrânia, falei com algumas pessoas que pudessem necessitar de encontrar alguém para as levar. Elas tinham familiares cá em Portugal. Trouxemos pessoas que já tinham famílias em Portugal, não só em Évora, mas também pessoas que já tinham encontrado alguém que as acolhesse e que só lhes faltava mesmo o transporte. Nós até trouxemos uma senhora de perto de Évora que foi buscar a sua família, porque eles só passavam a fronteira se passassem de família para família. Ou seja, um familiar foi pô-los à fronteira e voltou para a Ucrânia onde foram recebidos por familiares. Foi um momento de grande tensão e emoção, porque as pessoas já não se viam há algum tempo, e entregaram os familiares e separaram-se. Há muitas histórias… Acho que só não me emocionei mais porque estava sob muita tensão, muito stress, muita preocupação. Na minha cabeça a ideia era que estava numa missão, “tenho um objetivo e tinha que chegar lá”. Só quando tive as pessoas todas nas carrinhas é que efetivamente respirei um pouco e pensei “ja podemos ir”. Eu estava preocupada, podíamos não encontrar as pessoas, isto porque dizem que estão num sítio e afinal estão noutro. O que acontece por problemas de localização e internet. Mas para maior segurança, quando nos contactávamos, pedíamos foto do passaporte, do número de pessoas e um número de telefone. Quando enviavam esses dados, eu inseria num excel, para o caso de sermos mandados parar pela polícia e assim tinha lá tudo. A idade das crianças também era importante, porque temos que trazer as cadeirinhas, as pessoas não vêm com nada. Não é algo que alguém pense quando se vai embora de casa. Tivemos casos de pessoas que só tinham mesmo uma mochila ou uma mala. Foram apanhadas de surpresa, ou porque estavam nos bunkers e não puderam voltar a casa, ou outas porque já não tinham casa... Mas trouxemos pessoas que tinham várias malas e vinham preparadas. E como ato de confiança, também mandei os meus dados, disse quem era, o que estava a fazer, mandei cópia do meu cartão de cidadão, para não terem receio, e fui sempre dizendo onde estávamos, mandei também foto da nossa equipa, para que vissem que somos um grupo. O facto de falar ucraniano e russo ajudou bastante. Criou empatia. Éramos uma equipa maioritariamente de portugueses, algumas pessoas nem falam inglês, não havia possibilidade de contactá-las. O facto de ser ucraniana e mulher, foi muito importante. As pessoas que forem agora têm que ter isso em conta e encontrar pessoas que possam ser de confiança. Nós tínhamos uma pessoa da Cruz Vermelha, levámos medicamentos e produtos de higiene para as crianças e mulheres, íamos preparados dentro do que conseguíamos. Mas não havia guidelines para isto. A parte da gestão das pessoas e do dinheiro, era comigo, tinha uma pressão em cima, sentia muita responsabilidade pelas pessoas. Chegámos às 3 da manhã à fronteira, fomos procurar as pessoas, dizer os nomes e tivemos que dar os nossos dados. Nos pontos de refugiados era preciso dar o cartão de cidadão, como também a carta de condução, porque tinham que ver que aquele carro ia sair com aquela pessoa. Criámos também uma página de facebook e um logo e uns coletes de identificação, assim os carros estavam identificados. Quando fomos parados na Alemanha, o facto de eu falar alemão ajudou muito, eles viram as carrinhas e perguntaram por que razão também trazíamos bem materiais para a Cracóvia. As nossas carrinhas estavam cheias de caixas, o que não é suposto quando são carrinhas de passageiros. A única coisa que perguntaram foi quantas pessoas é que estavam a ir, porque tínhamos que ter dois condutores por carrinha, o que estávamos a levar e o que íamos fazer. Nós explicamos e eles lá disseram “boa viagem e boa sorte”. Havia alguma facilidade. Agora já é diferente, não é tao simples, houve muitos casos de transportes de tráfico de pessoas e de bens, então agora é necessário mais documentos e guias. Tive mais de 50 chamadas de pessoas que queriam transportes, nós íamos buscar as que estavam combinadas, mas as pessoas estavam desesperadas, tinham medo e uma sensação de impotência e insegurança de sair do local onde pertencem. No início a viagem era mais tensa. Na minha carrinha vinham pessoas muito simpáticas e no final da viagem já dançávamos e cantávamos com os miúdos. Criámos ali uma ligação com as crianças que ainda hoje recebemos mensagens a dizer que eles estão bem. Efetivamente a minha missão não acabou quando nós os trouxemos para Évora, foi quando chegaram onde iam ficar e disseram, "já chegámos e estamos bem". Só aí fiquei descansada. Continuamos a ajudar as pessoas, continuamos no nosso armazém a recolher os bens e todos os dias recebemos coisas e medicamentos, e todos os dias enviamos carrinhas, estamos sempre a tentar arranjar transporte. Ainda ontem saiu um autocarro de Lisboa com bens nossos, que vão para Roménia.
Não pararam, continuam a ajudar mais e mais…
Liana Shvachiy: Sim, a nossa missão continua e estamos a ajudar os refugiados que vêm para Évora. Agora o que temos em armazém é para essas pessoas. temos que pensar no futuro, porque tudo o que as pessoas trazem é uma mala. Nós damos os medicamentos, roupa e alimentos. Várias famílias que já pediram apoio a este nível, mas não só, também com animais, emprego e alojamento. Temos uma pessoa que elegemos na nossa equipa que trata de uma base de dados, e com intermediários entre as pessoas e o emprego e o alojamento. Mas há varias entidades a tratar disso, nos centros de emprego por exemplo. Nós temos uma ligação mais direta e há vários voluntários que podem dar logo casa, é mais imediato.
Como tem sido essa gestão de voluntários?
Liana Shvachiy: Tivemos muitos portugueses como voluntários, que começaram a trabalhar connosco. Também muitas pessoas que vêm para cá como refugiadas e que estão a trabalhar connosco, como o meu primo. Algumas pessoas vieram com crianças e acham importante ter este espirito de ajuda e apoio, já que elas conseguiram ajudar os outros. Eu sempre disse que Portugal é um país muito solidário e de grande inclusão. Agora, mais que nunca, digo isso outra vez. É dos países mais solidários que eu já vi e o espirito de entreajuda é impressionante. Isso vê-se por tudo o que aconteceu e que tem vindo a acontecer. Todos os dias há mais voluntários, mais pessoas que querem ajudar e mais iniciativas que querem tomar.
E qual a tua principal esperança agora?
Liana Shvachiy: O sonho de cada um, especialmente de todos os ucranianos, é que a guerra pare o mais depressa possível. Se pudesse parar hoje.. Mas sabemos que não é assim e, portanto, o que temos que fazer é continuar a ajudar o que podermos, não só a nível pessoal. O que estamos a fazer em Évora é fantástico e estamos a ajudar muita gente, mas também a nível institucional, há várias instituições que têm que fazer alguma coisa. Não conseguimos enviar medicamentos suficientes, a nível individual, mas se as associações e as grandes farmacêuticas, se se juntarem, conseguem ajudar. Não custa muito da parte deles, mas é uma grande ajuda para a Ucrânia. Também estou a trabalhar com isto, com o Eit Health e num Ukraine Appeal, para tentar recolher medicamentos e equipamentos. Houve vários hospitais que foram destruídos e a Ucrânia precisa de equipamentos hospitalares, por isso também estou a trabalhar nessa parte, mais internacional e organizacional. Mas vou continuar a fazer este tipo de voluntariado em Évora e onde quer que esteja. Cada um de nós tem a sua maneira de ser e todos nós podemos fazer um bocadinho e isso já é mesmo muito. Nem que seja disseminar ou partilhar informação relevante.
Sónia Teixeira
Equipa Editorial