Era véspera de Natal. Sonhara com esse dia quase todo o ano, antecipando tantas vezes a luz desta manhã, sempre diferente das outras manhãs. Mas, neste ano, passaria o dia e a noite a trabalhar no hospital. Senti uma enorme tristeza e- tive dificuldade em reunir forças para conseguir sair de casa.
Ao chegar à Urgência, deparei com uma multidão que inundava a sala de espera. Seguiu-se uma imensa correria, que durou todo o dia; multipliquei-me em tarefas incontáveis, procurando responder aos múltiplos pedidos que iam surgindo,- vindos de todo o lado. E, no final da tarde, estava exausta…
Senti o cansaço tomar conta de mim, invadida por uma enorme tristeza. Foi então que vi, ao fundo do corredor, deitada numa maca, uma doente de cabelos brancos e olhar triste: era uma doente muito idosa com uma infecção respiratória, que a família ali deixara, abandonada e incontactável, naquela noite. Aproximei-me dela e comovi-me com a sua dor e a sua fragilidade. Segurei-lhe a mão, com comoção, e fiquei a olhá-la, afagando-lhe os cabelos, curvada perante o mistério da sua vida. Pensei na sua história, nos sacrifícios que eventualmente fizera em noites como esta para que, nesse dia, os seus filhos tivessem sempre Natal. Na sua enorme fragilidade e pobreza vi concretamente a sua imensa dignidade, solene e majestosa, envolta em panos e deitada em pouco mais que uma manjedoura. E ali fiquei, não sei bem por quanto tempo…
Era quase meia-noite quando consegui que a levassem para um quarto, na enfermaria. Não queria que passasse o Natal, sozinha, num corredor, numa maca. Nesse quarto, encontrava-se já uma mulher jovem, sem família, a recuperar de um problema pulmonar. Despedi-me dizendo-lhe:
- Boa noite; é quase Natal!
- Não me importa! – respondeu ela – Já nada importa. Não sei se quero viver mais.
Senti os olhos maternais da idosa que chegara a abrirem-se de espanto e a voltarem-se para a jovem. Saí do quarto e encostei a porta devagarinho, vendo ali a luz do cuidado e a humanidade mais profunda de duas mulheres que, numa noite de Natal, se encontraram num quarto de hospital.
Era já quase meia-noite quando voltei a passar naquela porta. Ainda se ouvia a conversa daquele encontro. Uma troca de histórias que se fez vida onde nada mais parecia poder existir… Ao afastar-me, no fundo do corredor, ouvi alguém rir… Aquela mulher jovem, desesperançada de tudo, partilhava a comida da ceia de Natal com a senhora idosa; e ambas riam da sua fraca qualidade.
- “Para o ano, tem de ir a minha casa. Faço umas excelentes rabanadas!”
- “Está combinado. Levarei a minha aletria. Já não a faço há anos… Não havia ninguém para quem a fazer!”
- “Mas agora já há”, disse a jovem
- “Sim. É verdade.” E fez uma longa pausa. “Sei que acabámos de nos conhecer, mas posso pedir-lhe uma coisa?”
Imaginei um gesto de assentimento em resposta.
- “Mesmo que, no próximo ano, eu já não esteja aqui, faça essas rabanadas e ao comê-las lembre-se de mim. Eu estava perdida e fui encontrada nesta noite. Queria poder fazer algo semelhante por si”.
Nesse dia, tratei muitas pessoas, vi muitos doentes; mas --- nada relembro de tão especial como aquele encontro.
A minha noite tinha chegado ao fim. Era dia de Natal. E, ao sair do hospital, apenas vi a luz muito especial daquela manhã de Natal.
À saída do hospital estava um presépio muito simples: um tapete de musgo colocado no chão, com imagens muito grandes de Maria, José e do Menino Jesus, dentro de uma cabana de madeira. Parei, por instantes e, pela primeira vez na minha vida, senti que tinha um presente para deixar ali, naquele dia: envolto em fita vermelha: deixei a simplicidade das minhas vinte e quatro horas de trabalho… Era tudo o que tinha para dar.
Sofia Reimão
Dezembro de 2021