Por João Eurico Cabral da Fonseca
Os corredores tinham agora uma luz ténue, um pouco oscilante, pelo efeito dos discretos enfeites de Natal junto a um pequeno presépio. O ruído de fundo dos monitores e das bombas infusoras salientava-se agora mais pela ausência de outros sons. Um cheiro discreto a festividade de Natal imiscuía-se no odor hospitalar. As visitas tinham terminado há muito, num dia com mais familiares presentes na enfermaria do que o habitual, e a maioria dos doentes dormia, ou tentava dormir, em quartos agora escuros. As enfermeiras passavam o turno e com a porta fechada só era percetível um vago som de vozes humanas. As auxiliares de ação médica estavam também na sua sala, talvez a descansar um pouco de uma atividade sempre muito dura. Existia um ambiente de calma, equilibrado e controlado.
Mas não era o que o médico de urgência interna sentia. Sozinho, já há mais de 12 horas e ainda com uma noite pela frente, revia mentalmente os doentes que estavam instáveis, entre as cerca de 60 camas sob a sua responsabilidade, distribuídas em 3 sectores, localizados em pisos diferentes. Embora todos os doentes com condições mínimas de segurança tivessem tido alta para passar o Natal a casa e por isso o Serviço tivesse menos doentes internados do que o habitual, aqueles que ficaram eram todos casos que necessitavam de cuidados imprescindíveis. Entre eles existiam situações clinicamente instáveis que focaram a sua atenção durante o dia e inevitavelmente preenchiam a mente do jovem médico. Um dos casos preocupava-o particularmente. Tinha a perceção que não estava a captar bem a causa do problema e ao longo do dia já tinha conferenciado com vários colegas de outras especialidades e realizado todos os exames que achou pertinente. Reviu de novo o caso no silêncio absoluto da sala dos médicos. Analisou as suas notas, repensou as análises, verificou a terapêutica e procurou transmitir a si próprio que tudo o que deveria ser feito tinha sido garantido. Talvez pudesse ter conversado com os familiares e alertado para a instabilidade do quadro. Ou mesmo ter conversado um pouco com o seu chefe telefonicamente. Mas o dia tinha sido demasiado intenso e não se lembrou. Agora a pouco mais de uma hora da meia-noite de dia 24 de Dezembro não era seguramente o momento para fazer esses contactos.
Entretanto, as enfermeiras convidaram-no para tomar um chá e uma fatia de bolo-rei que aceitou com agrado. Aquelas noites causavam-lhe sempre um estado de fome contínua. Trocou alguns palavras de circunstância, mas antes da chávena de chá estar vazia desculpou-se e afastou-se para atender o seu telefone pessoal. Do outro lado, o ruído característico de um ambiente festivo. Era a família para saber se estava a correr tudo bem. Os filhos pequenos falaram ao telefone, excitados com as prendas que, entretanto, já tinham aberto. A excitação e a falta de desenvolvimento da linguagem que ainda tinham abafou muito do conteúdo do telefonema. Ficou inevitavelmente com uma sensação de perda e até de culpa. Voltou para junto das enfermeiras e transmitiu as suas preocupações sobre a doente e a necessidade de vigilância. Sentia-se agora profundamente cansado. Deitou-se no sofá da sala dos médicos e a mistura de um dia longo e das noites mal dormidas em casa por causa das múltiplas intercorrências noturnas dos filhos foram a combinação perfeita para um sono imediato.
Uma batida rápida e intensa à porta. “Doutor venha rápido!”. Sentiu a sua característica taquicardia destes momentos. Bata, estetoscópio, telefones nos bolsos. Num minuto estava ao lado da doente. Era a tal doente que o preocupava. Sentada na cama, ansiosa, com dificuldade respiratória. O exame físico era compatível com edema pulmonar. A enfermeira e a auxiliar olhavam apreensivas para ele, à espera de instruções que também aliviassem as suas próprias ansiedades. Foi rápido a decidir um chorrilho de instruções relacionados com a terapêutica imediata, enquanto ele próprio fazia um eletrocardiograma e colhia sangue arterial e venoso. Passava agora para uma fase expectante. Verificar repetidamente a tensão arterial, a frequência cardíaca, a auscultação, a oxigenação e o débito urinário aliviava um pouco a ansiedade da situação e reforçava que o diagnóstico e a terapêutica estavam corretos, com pequenos sinais de melhoria a surgirem felizmente com rapidez. Começou a interrogar-se se não poderia ter antecipado a situação antes de ter adormecido. Voltou a focar-se no momento, concentrado em garantir a estabilidade da doente até ao amanhecer. Ao fim de algum tempo, com exames já disponíveis e a doente mais estável conseguiu sossegar um pouco. Continuava a dificuldade em compreender o que se passava de base com o problema clínico da doente mas pelo menos a sua missão nesta urgência interna tinha sido assegurada. Estava agora seguro que conseguiria passar o caso ao seu colega do dia seguinte com um cenário clínico de razoável tranquilidade.
Sentou-se num cadeirão numa sala ao lado do quarto da doente. Toda a enfermaria estava demasiado quente e a agitação em redor do doente deixou-o suado. Estava ainda um pouco taquicárdico. Não conseguiu evitar pensar no telefonema da família e na enorme agitação contínua das últimas 24 horas. Era difícil não se interrogar se era aquilo que de facto queria da vida. Passar um dia 24 de Dezembro longe dos filhos e trucidado pela responsabilidade profissional. Voltou para a cabeceira da doente que lhe sorriu, agora muito mais aliviada. Ele pegou na sua mão e perguntou como se sentia agora. A doente voltou a sorrir e apertou-lhe a mão com força. “Obrigado por me ter dado o seu Natal”.
João Eurico da Fonseca
Diretor do Serviço de Reumatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte
Diretor do Instituto de Semiótica Clínica e Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Investigador Principal do Instituto de Medicina Molecular