Lembro-me das duas malas antigas com fecho metálico, compostas por sarapilheira, que se guardavam de ano para ano no armário que me parecia tão longínquo e que nem o pó alcançava.
A árvore colocava-se no canto da sala, revestida a grinaldas entre o encarnado e o dourado e com bolas de tantas cores e o brilho que refletia o meu sorriso deslumbrado. No mesmo recanto as figuras sagradas que aqueciam o bebé Jesus e a quem eu fazia festas de amor.
Agora que penso bem, a noite de 23 era a melhor de todas. Quando a cozinha tão pequena quanto repleta de tantos objetos, se enchia ainda mais com as mulheres da casa e eu que entrava e saía para ir comer a massa crua das azevias de grão e dos coscorões.
Lembro-me dos aventais de tecido tão gasto, que se puxasse a ponta de um deles, rasgar-se-iam naquele instante, eu iria adorar o momento, a avó não. Na mesa revestida a um plástico que fingia ser madeira natural, agrupavam-se os alguidares de massa, o rolo branco com água a ferver lá dentro e farinha que pincelava não só a mesa como a cozinha que parecia cenário de carnaval.
Na cozinha o fim justificava o caos que eram os meios. A titi a estender a massa e a fazer caretas com dores nos braços, enquanto reforçava na massa o trago da aguardente e a avó Carmo ao fogão, a fritar aqueles sonhos pequeninos de abóbora e a queixar-se das costas. Entre as frituras chegariam os papos de anjo, a aletria e as rabanadas.
Naquele tempo não se comprava nada fora, o orçamento era controlado porque os avós albergavam os sobrinhos todos que vinham para Lisboa estudar. Tudo era feito em abundância, para contrariar os períodos do pós-guerra em que os avós passaram tempos duros de fome, mais o avô que chegaria a ficar aos cuidados da Professora da aldeia.
A noite de 23 acabava sempre com a titi a discutir com a avó Carmo, ou a avó Carmo com ela. Que nunca mais faziam aqueles doces todos, que tinham as duas muito mau feitio, diziam elas uma à outra. E eu fugia para a sala a rir e olhava para o sereno avô Luís e ele encolhia os ombros e piscava o olho a sorrir.
Na verdade, não faço ideia que pratos a avó fazia no jantar de Natal, o meu foco eram os doces e o chá de lúcia-lima com erva príncipe que fazia a meio da noite, íamos nós para a segunda ronda.
Não havia tarde que a RTP não desse a Música no Coração e eu cantava as músicas da família Von Trap e, mesmo não percebendo o inglês, adaptava ao meu dialeto de joanês e não quebrava com vergonha. Era a poucas horas da noite de 24, que prometia trazer presentes e as sobremesas, que a titi e a avó voltavam a ir para a cozinha e eu ficava na sala a fazer teatros de Natal, junto à árvore. O avô Luís, querido, alinhava em tudo, baixava a televisão e gritava para as duas adultas, “façam pouco barulho que a nossa menina vai fazer um teatro”. E ia olhando para mim e interagia, enquanto lhe fugia o olhar para a televisão, que na verdade era aquilo que ele verdadeiramente queria ver. E eu sabendo disso fingia acreditar que ele adorava as minhas peças de teatro e era a criança mais feliz do mundo.
Não me recordo que presentes recebi, tirando um saco cheio de pijamas polares e meias. Ideias da minha avó e da titi que achavam que eu devia estar agasalhada e assim evitavam dar lucro à Mattel que vendia as Barbies.
Tenho as melhores memórias do Natal porque tinha tudo o que precisava naquela noite. Durante todos os anos da minha vida seguinte poderia até abdicar de todas as outras pessoas, nunca do avô Luís, nem da avó Carmo.
No último Natal que passei com o avô Luis, já sem a avó, ele já não sabia comer sozinho. Aconteceu de repente, eu não estava à espera. No momento em que trocámos presentes, o avô, que sempre vibrara com a minha alegria, agora era um corpo a despedir-se da terra, dormitava sem emoção, sem presença. Fiquei furiosa com ele naquela noite, porque sabia que já me tinha deixado na sua mais profunda alma. Horas depois juntamos todos as mãos que tínhamos para o carregar para o piso de cima e, ele que se equilibrava na cadeira de rodas, quase nos caía no desalento da força que nos faltava ao vê-lo assim. Naquele breve patamar das escadas de mármore que me pareceram uma imensidão, chorei tudo o que podia, mas pela primeira vez o avô não me fez uma festa na cara a secar as lágrimas.
Nos dias seguintes subi eu ao piso de cima e ajudei eu a limpar e a vestir o avô. O corpo grande e forte fugia da força mental que me pedia para o erguer perante a vida. Desde então deixei de amar o Natal.
Depois da partida do avô, que a minha filha diz ter sido para a lua, vi as mesmas malas de sarapilheira do Natal largadas no passeio, um copo verde de vidro já partido e o sofá de pele comprado há décadas. Ninguém devia ver o seu passado colocado na berma do passeio, para ser avaliado, ou maltratado por estranhos.
Na minha vida surgiu a pequena Maria do Carmo que veio com a alma da avó Carmo, então já partida. Ela alimentou o meu Natal na ausência do avô, mas este ano vai embora com o pai.
Se me perguntarem se fico triste, sinto honestamente que não. Porque escolhi ir com a mãe para a casa da aldeia, a casa do avô Luis e da avó Carmo e lá então estarei com eles. E voltaremos a ser todos o que sempre fomos, a melhor família que o menino Jesus me podia ter colocado no coração.
E com o tempo saberei que o Natal deverá sempre ter magia, memórias e partilha. Só preciso de tempo.
A todos Feliz Natal!
Feliz Natal avó Carmo, avô Luís em breve estaremos aí em casa, juntos.
Joana Sousa
Equipa Editorial
