A aula de Jubilação começava às 11h do dia 14 de dezembro. Não havia como começar os preparativos em cima da hora, porque para a pessoa que era, qualquer falta de zelo com o tempo, seria erro absoluto.
Às 10h15 a equipa entrava no espaço da Aula Magna, para tentar antecipar qualquer chegada precoce, mas era já tarde demais. A essa hora, à porta e acompanhado pela sua fiel Luisa, o Professor José Ferro, já aguardava pela chegada dos seus convidados.
Despedida oficial da casa à qual sempre pertenceu, 50 anos não se relatam rapidamente, principalmente para um homem que sempre viveu num triplo papel profissional, o académico, o clínico e o da investigação.
Em breve todos chegariam a tempo de ocupar os seus lugares, da política, à saúde, às equipas de trabalho do Hospital de Santa Maria, aos amigos de sempre e pela família representada pela, mulher, as duas filhas, os genros e os sete netos.
Na mesa oficial as mais altas hierarquias simbolizavam a importância do Professor, fazendo representar as entidades às quais estava ligado, os Professores Luís Castro, Vice-Reitor da Universidade de Lisboa, Fausto Pinto, Diretor da Faculdade de Medicina, Melo Cristino, Presidente do Conselho Científico, Joaquim Ferreira, Presidente do Conselho Pedagógico e Daniel Ferro Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN).
O discurso, que pontuava alguns dos seus grandes pilares profissionais de vida, não podia ter sido mais cirúrgico, o Diretor Fausto Pinto citava David Starr Jordan, o primeiro Presidente da Universidade de Stanford, nos EUA, para resumir da melhor maneira José Ferro: “The world stands aside to let anyone pass who knows where he is going.“
O que dizer do Professor José Ferro?
Formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e especializou-se em Neurologia, afastando de vez a sua primeira intenção de ser Psiquiatra.
Academicamente viria a tornar-se Professor Catedrático da Clínica Universitária de Neurologia, Presidente do Conselho de Escola (2014-2020), bem como membro do Conselho Científico e, mais recentemente, Presidente da comissão de reforma do ensino clínico.
Foi Diretor do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e Investigador Principal do Instituto de Medicina Molecular (desde 2003), tendo publicado cerca de 400 publicações científicas e 74 capítulos de livros.
De entre outras tantas assinaturas profissionais destacam-se: a European Stroke Conference (1ª a 23rd), da qual foi Membro do Comité Científico; as 10th European Stroke Conference (2001) e 21st Meeting of the European Neurological Society (2011) das quais foi Conference Chairman; a European Neurological Society (2009-2010) à qual presidiu; Membro do “Editorial Board” de várias revistas de grande prestígio, incluindo a “Stroke” (2001-2021), “Cerebrovascular Diseases”,“Journal of Neurology” e “European Stroke Journal”; revisor das revistas como a “Stroke”, “European Neurology”, “Lancet”, “Lancet Neurology”, ou “Neurology”. Foi ainda Presidente do Júri dos Prémios Santa Casa Neurociências (2017; 2019) e Membro do Scientific Panel for Health e Directorate-General for Research and Innovation da Comissão Europeia (2015-2019).
Aquilo que viria a dar grande foco na sua aula, seria a Investigação Clínica, relatando-a através de uma “Narrativa na Primeira Pessoa”, narrativa essa que no final da sessão levaria a plateia a concluir que a primeira pessoa seria sempre a do plural, porque nada fez sozinho.
Enquanto a sala se enchia de batas brancas e muitas pessoas aparentemente anónimas e com um rosto feliz e que regressavam à sua antiga casa, José Ferro foi passeando pela História da sua história de vida.
Recordou o seu grupo de amigos de Anatomia de 1972, que com ele insistiam que não seguisse Psiquiatria, um deles era António Rendas, antigo Reitor da Universidade Nova. Foi António Rendas quem lhe começou a suscitar a dúvida sobre o caminho da Psiquiatria, sugerindo que seguisse a Neurologia e se juntasse ao laboratório “do investigador novo de que se andava aí a falar”. O tal investigador novo chamava-se António Damásio e estava a começar, no piso 8 do Hospital de Santa Maria, um laboratório de Linguagem, para estudar as perturbações de linguagem, causadas por doenças neurológicas.
A respeito deste tempo o Professor reflete na sua vida, baseado em JP Getty, “Sorte é saber aproveitar os momentos de sorte”.
Os seus primeiros trabalhos seriam apresentados ao mundo em 1974 e 1979.
Na sua vida profissional continuavam a aparecer outros protagonistas a quem o Professor dava agora a sua atenção, na altura ainda médica interna, Isabel Pavão Martins mostrava ser a próxima promessa na área da Neurolinguística.
Do seu papel de médico à periferia, concretamente em Arraiolos, e onde trabalhou com crianças, e saltando até ao Canada, onde esteve na University of Western Ontario, concluía aquilo que encontrara num papel de um biscoito de café, “Travel will prove beneficial to you”. Ganhar mundo e conhecimento, fazia-o apresentar, em quase 600 páginas, a sua tese de Doutoramento, sobre a Neurologia do Comportamento.
Em 1985 nova viagem ao seu percurso profissional se avizinhava, desta feita da Neurologia do Comportamento para a Neuropsicologia para os AVCs.
Dos mestres ganhos dos tempos da Medicina da sua Faculdade, como Alexandre Castro Caldas (Neurologista), ou Nuno Lobo Antunes (Neuropediatra), José Ferro trabalhava agora com um marcante grupo da University Hospital – Stroke Centre. CH Drake, HJM Barnett, F Viñuela, V Hachinsky. Também M-G Bousser e CC Warloweram eram agora nomes que marcariam o seu rumo profissional e que com eles apresentavam reflexões científicas ao mundo.
Em Portugal estava praticamente a zero o tratamento e acompanhamento das doenças vasculares cerebrais, pelo que o Professor criava assim, em 1985, a primeira equipa no Hospital de Santa Maria. O primeiro passo foi criar a consulta externa e foram assim crescendo para oito elementos de uma só equipa. Em 2001 inaugurava-se a Unidade de AVCs.
O tempo e o desenvolvimento do seu trabalho tornaram o Professor figura de destaque no meio vascular cerebral europeu e mundial. Avaliando atualmente as consequências neuropsiquiátricas dos AVCs, e as consequências psiquiátricas que advêm das lesões causadas pelos mesmos, a verdade é que o Professor voltou ao princípio de tudo e da sua própria vontade, a Psiquiatria, ou talvez faro apurado para a forma como lê o mundo e a si próprio.
Das suas viagens ao mundo da Ciência e da clínica e das pessoas com quem foi trabalhando, o Professor deixou legado, que o continuarão, Investigadores, médicos, professores, Bruno Miranda, Ana Verdelho, Catarina Fonseca e Diana Aguiar de Sousa. Para um homem mordaz, quanto exigente, terminar com a mensagem que “possivelmente alguns o superarão”, será o melhor elogio do Professor do rigor e da disciplina.
A mesma disciplina que sempre o regeu e que deixa como inspiração aos jovens: “para chegar à glória, seja ela qual for, não há alternativa, é preciso pedalar muito, trabalhar, trabalhar”, disse terminando num olhar emocionado a sua aula de Jubilação.
Depois de um auditório de aplausos, seguiu-se a entrega do Medalhão Jubilar. E os abraços sem fim, maioritariamente ao “amigo Zé”, que por ele foram desfilando até que a sala se esvaziasse.
Sobre o Professor Ferro, as melhores palavras a ele atribuídas naquela manhã seriam as citadas pelo Diretor da FMUL, Fausto Pinto, retomando David Starr Jordan: “The world stands aside to let anyone pass who knows where he is going.“
“And you know where you’re going”.
Até já Professor.
Joana Sousa
Equipa Editorial