Foi precisamente a Saúde Pública que justificou a tese de Doutoramento de Liliane Morais sobre o tema, Morbi-Mortality Associated with Excessive Heat Periods: Contribution to a Local Strategy for Public Health Promotion.
A integrar a 1ª edição de Doutoramentos do Instituto de Saúde Ambiental (ISAMB) da Faculdade de Medicina, a ideia de estudar as ondas de calor vinha já desde os tempos de Mestrado em que já abordara o assunto, apenas de forma diferente. Com o passar do tempo, Liliane apercebeu-se que as várias projeções apresentadas, continuavam a indicar “um aumento da frequência, intensidade e duração dessas mesmas ondas de calor”. A verdade é que “sendo estas já consideradas um dos riscos climáticos mais importantes e uma das principais causas de mortalidade em todo o mundo, a existência de mais dados e maior detalhe” dos mesmos, levou a que se interessasse novamente pelo tema, aprofundando-o e obtendo outro tipo de respostas. A escolha da Instituição não era por isso menos lógica que a escolha do tema. Entender respostas sobre Saúde Pública não implica somente estudar sobre Medicina, mas igualmente sobre todas as outras ciências e as suas perspetivas, na busca de entender como melhorar a Saúde e a vida das populações. “Trata-se de elevar o conceito de saúde numa ótica multidisciplinar, translacional, reconhecendo que na nossa saúde contribuem um conjunto de relações complexas, com fatores de diversa ordem: físicos, biológicos, ambientais, socioeconómicos, urbanísticos (ambiente construído) ”, explicava-me.
Numa primeira conversa com Liliane Morais ficou presente que a mortalidade por doença cardiorespiratória e em situações de calor extremo, analisada entre os meses de maio a setembro, era mais flagrante. Mas evidente ficava também que as grandes cidades como Lisboa interferem na saúde física das suas populações. É nesse sentido que falar em Saúde implica não só o conceito físico, como também o ambiental. A dicotomia entre o ambiente verde e aquele que é construído viriam ainda a dar-lhe respostas novas. Vejamos, no espaço verde, a componente cardiorespiratória melhora, pois aqui existe uma maior dispersão dos poluentes e diminuição de temperatura, já que a circulação do ar é mais aberta. Por contrário, os grandes espaços urbanos e cujo espaço verde é menor, agrava a concentração de calor extremo, devido a vários factores, e consequentemente contribui para a formação de elevadas concentrações de ozono.
“Os políticos não podem por isso fugir muito mais”, dizia-me calmamente, explicando as evidências espelhadas nos dois papers publicados. Falar em cidades pensadas de forma emocional, é impor-lhes características cada vez mais próximas da realidade verde e com desempenho mais harmonioso entre a intervenção humana e a da na natureza.
As evidências ambientais mostram-nos que se nada for minimizado até 2050, a economia terá o grande fardo de lidar com as vagas de calor que vão causar grandes custos à saúde, uma vez que tornam as suas populações mais expostas a estas ondas, vulneráveis. Ainda com algumas diferenças significativas entre cidades, são as estas que mais concentram o calor e que causam maiores danos na saúde das populações acima dos 65 anos. Outros fatores como o acesso a espaços médicos e condição socioeconómica, afetam ainda as conclusões finais no que toca às doenças cardiovasculares e respiratórias e que podem mesmo levar à morte.
Foi para aprofundar a análise das ondas de calor, com o índice de EHF (Excess Heat Factor) e o GATO (Generalized Accumulated Thermal Overload – índice Ícaro,) bem como compreender e cartografar a interação da mortalidade cardiorrespiratória associada ao calor nos idosos com múltiplos fatores de análise (de ordem ambiental, urbanística, socioeconómica, e o acesso a cuidados de saúde primários), que Liliane Morais elaborou a sua tese de doutoramento.
O que justifica um aumento cada vez maior das ondas de calor e em que medida elas implicam na Saúde Humana?
Liliane Morais: Vários investigadores e múltiplos relatórios, por parte de diferentes instituições, evidenciam que as alterações climáticas por efeito da influência da atividade humana têm contribuído para o aumento dos eventos meteorológicos extremos, de que são exemplo as ondas de calor – que se preveem não só mais frequentes, como intensas e duradoras. Têm sido tomadas várias medidas por parte de diferentes países (uns mais que outros) para limitar o aquecimento global abaixo de 2ºC e vários são os esforços para limitar o aumento da temperatura acima de 1,5ºC. Porém, nas últimas décadas a Europa tem registado um aumento no número de ondas de calor, assim como aumento significativo do número de noites tropicais (temperatura mínima ≥ 20ªC) e dias extremamente quentes (temperatura máxima ≥ 35ºC).
O impacto das ondas de calor na saúde humana é enorme e está associado a diversas relações complexas, que se traduzem num aumento da morbilidade e da mortalidade. Já mencionei que as ondas de calor são uma das principais causas de mortalidade em todo o mundo, o que enquadradas com o aquecimento climático revela o quão seriamente este assunto deve ser abordado. Para se ter a noção dos dados, deixe-me dar-lhe o exemplo clássico da onda de calor europeia de 2003, responsável por cerca de 70.000 mortes associadas ao calor. Em simultâneo também se regista um aumento no número de hospitalizações, pois o calor agrava algumas patologias crónicas, especialmente as doenças cardiovasculares e respiratórias, mas também as doenças renais, a diabetes, distúrbios de saúde mental, entre outras. Naturalmente, que os idosos são o grupo de maior vulnerabilidade, pois o envelhecimento atrapalha a capacidade fisiológica do corpo de regular a sua temperatura. Por fim, termino com os efeitos diretos do calor extremo que pode resultar numa sucessão de doenças como as cãibras, síncope, exaustão pelo calor ou mesmo o golpe de calor/insolação.
Depois de todos os paralelos que cruzou que conclusões retira e que impactam na nossa Saúde Pública?
Liliane Morais: Dos vários objetivos atingidos podemos sintetizar os seguintes aspetos:
i) i) Não existe, atualmente, necessidade de atualizar o Índice ÍCARO ( que efectua a vigilância e monitorização das ondas de calor com potenciais efeitos na saúde humana). Foi estabelecida uma comparação com um outro índice para medir as ondas de calor, o Excess Heat Factor (EHF), de forma a averiguar qual tem maior poder preditivo da mortalidade relacionada com o calor, potencialmente evitável. Das várias análises efetuadas com base na mortalidade diária e as temperaturas do ar de 1980 a 2016 em Lisboa com os dois índices, concluiu-se que, ambos foram estatisticamente significativos para o grupo da mortalidade total (todas as idades e todas as causas). Para a mortalidade diária em indivíduos com idade ≥65 anos e com todas as doenças do aparelho circulatório e respiratório, o Índice ÍCARO foi o único índice que previu significativamente o impacto das ondas de calor na mortalidade, aparentando possuir as melhores propriedades estatísticas.
ii) as escalas geográficas revelam diferentes graus de detalhe na análise dos resultados de saúde (health outcomes). A escala do bairro (secção estatística) revelou diferentes padrões de mortalidade cardiorrespiratória face à escala habitualmente disponível, a freguesia. Os resultados sugerem a relevância da análise dos resultados de saúde numa escala mais precisa para enfrentar melhor os desafios do sector de saúde e melhorar o apoio na tomada de decisões de planeamento, correspondendo de perto às necessidades dos cidadãos. É possível obter uma melhor gestão da saúde, otimizar a alocação dos recursos, bem como aperfeiçoar a formulação de políticas, mais detalhada e conscienciosa, permitindo uma maior equidade clima-saúde na promoção das cidades.
iii) Através da análise dos pontos quentes (hot spot analysis), identificou-se o padrão espacial da mortalidade cardiorrespiratória relacionada com o calor em idosos, à escala do bairro. Após perceber o onde? percebeu-se o porquê?, ou seja, foram investigadas as potenciais associações entre a variabilidade espacial na mortalidade associada ao calor e vários fatores independentes em cada bairro. Pode-se afirmar que o modelo espacial explica cerca de 60% das variações espaciais da mortalidade cardiorrespiratória por calor em idosos. As principais variáveis preditoras são os idosos (o fator demográfico é importantíssimo), os espaços verdes (pelos imensos benefícios, nomeadamente na contribuição da diminuição da temperatura) e o emprego (fator decisivo para possuir maior poder de compra e enfrentar melhor o calor excessivo).
No seu relatório final referia que a Europa será aquela que sofrerá o maior aumento de temperaturas. Porquê?
Liliane Morais: Sim é verdade. Devido à sua posição geográfica, todas as projeções mostram que a Europa, em especial o sul da Europa e a Península Ibérica, serão uma área particularmente sensível ao aumento da temperatura, cujo aquecimento será superior ao aumento médio global previsto. Na verdade, já se denota um pouco isso, e como também já referi, nas últimas décadas têm ocorrido na Europa um aumento do número de ondas de calor, de noites tropicais e de dias extremamente quentes. Se mencionarmos os números (eu gosto de referir números porque nos dão uma ideia mais exacta da extensão do fenómeno), caso não existam medidas de adaptação e aclimatização, a mortalidade relacionada ao calor na Europa, especialmente no Sul, aumentaria entre 60.000 e 165.000 mortes por ano na década de 2080, comparativamente com a linha de base atual. Ainda não mencionei as repercussões económicas, mas estima-se que as ondas de calor na União Europeia tenham um custo 150 bilhões de euros até 2050.
Afirma que não há uma definição quantitativa global que possa avaliar transversalmente as ondas de calor, tendo cada país a sua própria análise. Qual é a razão?
Liliane Morais: De facto, não existe uma definição universal quantitativa de onda de calor. Existem já algumas propostas, mas ainda não se pode afirmar que exista uma definição quantitativa clara. Repare que devido às características e respetivos impactos, as ondas de calor variam muito. Os desafios na modelação da relação temperatura/saúde são enormes. Por exemplo, a resposta por parte da população é heterogénea devido à aclimatização, aos diferentes graus de adaptação e aos diversos fatores de vulnerabilidade. Desta forma, as ondas de calor correspondem ao clima de um local, pelo que certas condições climáticas podem criar uma onda de calor num lugar, mas não num outro. Dificilmente existirão ondas de calor iguais quanto à extensão espacial, duração e intensidade, pois podem variar substancialmente numa região. Não obstante, no contexto da saúde, podemos afirmar que as ondas de calor são eventos que estão essencialmente relacionadas com uma combinação de temperaturas diurnas e noturnas extremamente elevadas, com humidade relativa elevada e muitas vezes com uma duração prolongada (vários dias, mas pelo menos dois dias) do calor extremo. Estes eventos também contribuem para o aumento da morbilidade, mortalidade e para o aumento do número de casos de serviços de emergência.
O fenómeno das ondas de calor permitem-nos afirmar que há um conceito de mortalidade sazonal?
Liliane Morais: Sim, sem dúvida. De igual modo também existe a mortalidade sazonal relacionada com as ondas de frio. Porém, nota-se um alargamento da estação estival, pelo que é expectável que a mortalidade relacionada com o calor ocorra cada vez mais também nos meses não considerados quentes, o que tem repercussões ainda maiores na saúde humana devido ao efeito “surpresa”.
O desejo das pessoas que sonham largar a cidade e ir para lugares mais tranquilos e verdes, não é só psicológico, pois não? Há fundamentos científicos.
Liliane Morais: Sim, existem fundamentos científicos sobre o efeito que os espaços verdes possuem na saúde humana. Não falo só pelo meu estudo, que demonstrou a relevância dos espaços verdes urbanos na compreensão da mortalidade relacionada com o calor, mas existem variadíssimos estudos que mencionam o efeito benéfico dos espaços verdes na saúde, física e mental. Pode-se afirmar que os espaços verdes urbanos podem reduzir de forma eficaz os riscos ambientais para a saúde. Repare que o acesso a espaços verdes, está associado a uma melhoria da qualidade do ar, à “captação” de carbono, à contribuição para limitar a temperatura e reduzir os níveis de ruído, por exemplo. Eu diria que quanto mais extensos forem os espaços verdes e quanto mais árvores de maior porte possuírem, mais expressivas serão as vantagens para a saúde humana dos cidadãos que os frequentam.
Na primeira em que falámos e me explicou um pouco o que tinha sido a sua tese disse-me algo como, "estes estudos mostram que os políticos não podem fugir muito mais". Quer comentar? Como podemos nós prever a capacidade de adaptabilidade ao calor e evitar assim mortes prematuras?
Liliane Morais: Dominar ou controlar as alterações climáticas não se faz apenas no plano individual. Requer uma resposta que envolva players de diversas áreas, e que possuam uma única estratégia para lidar com as consequências das alterações climáticas, assegurando coordenação e sinergias. Neste sentido, tem de existir um compromisso político, quer a nível nacional como local, para garantir uma maior equidade face à saúde pública climática nas cidades. Repare, ao nível do planeamento os urbanistas têm de estar conscientes do clima atual e das projeções futuras, encontrando um equilíbrio entre os edifícios já existentes e os que se encontram projetados (e se efetivamente necessários). Precisamos pensar nas necessidades atuais e antecipar as necessidades futuras, pensando sempre numa perspetiva holística. Porém, as medidas de mitigação e adaptação para serem planeadas e efetivamente implementadas requerem uma governança “forte” e que não mais crie cidades impulsionadas por parâmetros socioeconómicos frequentemente desconectados das reais necessidades dos cidadãos e das cidades. O planeamento necessita de estar direcionado para reduzir a vulnerabilidade ao mínimo, aumentar a resiliência das cidades, garantir que as políticas sejam socialmente inclusivas e progridam em direção à transição para o baixo carbono. Tudo fica mais facilitado e célere se o compromisso político desempenhar um papel central. Ainda assim, deixe-me dizer que se registam progressos. Os políticos estão cada vez mais conscientes da importância das alterações climáticas, mas podemos sempre fazer mais e comprometermo-nos ainda mais com o futuro. Tomemos como exemplo a COP26 que ficou um pouco aquém das expectativas.
É importante que o conhecimento gerado na academia consiga sair das paredes da academia e alcançar a sociedade, as empresas/instituições que vão poder retirar as vantagens dos resultados e agir com maior consciência/conformidade. Este valor acrescentado que é atribuído ao conhecimento gerado é, sem dúvida, algo de muito interessante.
É importante que o conhecimento gerado na academia consiga sair das paredes da academia e alcançar a sociedade, as empresas/instituições que vão poder retirar as vantagens dos resultados e agir com maior consciência/conformidade. Este valor acrescentado que é atribuído ao conhecimento gerado é, sem dúvida, algo de muito interessante.
Joana Sousa
Equipa Editorial