Bolos, refrigerantes, hambúrgueres, pizzas, batatas fritas, salgados e gelados são apenas alguns exemplos de alimentos que deixaram de constar no cardápio dos bares, cantinas e máquinas de venda automáticas das escolas públicas, no arranque no novo ano letivo. Com o Despacho n.º 8127/2021, o atual Governo tem por objetivo limitar o acesso a alimentos prejudiciais por crianças e adolescentes. Uma medida que prevê o desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis e diminuir as taxas de obesidade infantil. Mas será esta uma medida democrática e de fácil aplicação? Terão as escolas condições de garantir a aplicação do novo conjunto de normas? E onde se encaixa o papel dos pais e dos nutricionistas?
Muitas foram as questões na base de uma polémica que inflamou a sociedade civil, ao longo do mês de agosto, e que agora podem ser respondidas por Catarina Sousa Guerreiro e Joana Sousa, ambas especialistas em nutrição e docentes da Licenciatura de Ciências da Nutrição na FMUL.
Professora Catarina Sousa Guerreiro
Professora Joana Sousa
Com a nova medida, passamos de uma recomendação para uma proibição. Eticamente, será este o procedimento certo?
Catarina S. Guerreiro: O Despacho n.º 8127/2021 do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Educação publicado em Diário da República n.º 159/2021, Série II de 2021-08-17, estabelece as normas a ter em conta na elaboração das ementas e na venda de géneros alimentícios nos bufetes e nas máquinas de venda automática nos estabelecimentos de educação e de ensino da rede pública do Ministério da Educação. É incumbido ao Governo e de acordo com o Orçamento do Estado para 2020, implementar um conjunto de medidas para a promoção da saúde em geral, e em particular para a adoção de hábitos alimentares saudáveis, bem como de proceder à regulamentação do modo de organização e funcionamento dos bufetes escolares, contemplando, designadamente informação sobre os alimentos que podem ou não ser disponibilizados, bem como sobre a composição da refeição e componentes e formas de elaboração das ementas. É em cumprimento deste propósito que o Governo emanou este despacho.
Joana Sousa: Partindo dos pressupostos que, a escola é por excelência um local promotor de saúde por ser nela que as crianças passam grande parte do seu dia e o facto de a alimentação ser um dos principais fatores de risco que mais contribui para as principais causas de morte e incapacidade, não entendemos esta medida como um procedimento que levante questões éticas. Na escola ou fora dela, qualquer aluno poderá consumir qualquer alimento que deseje, sabendo, porém, que na escola (local promotor de saúde) a compra de determinados alimentos está condicionada.
A alimentação resolve todos os problemas de obesidade infantil/juvenil? Deveria esta medida ser reforçada com mais medidas adicionais, como a literacia alimentar, aumento do número de horas de atividade física nas escolas?
Joana Sousa: A alimentação é o comportamento que mais contribui para o excesso de peso. Mas é claro que não podemos pensar na alimentação como uma variável isolada, mas sim enquadrada num estilo de vida saudável. Ao falarmos de alterações de comportamento estamos a referir-nos a algo muitíssimo complexo, difícil de alcançar apenas com medidas isoladas.
Catarina S. Guerreiro: Na verdade, é fundamental aliar estas medidas a estratégias globais e intersectoriais de forma integrada nos níveis populacionais: nacional, regional e local. E é ao nível local que a escola assume um papel de enorme relevância e onde este trabalho integrado tem de ser feito. O sucesso da implementação de uma medida como esta, estará com certeza dependente daquilo que é referido nos artigos 10.º e 11.º deste despacho, onde se preconiza a existência de um programa de apoio à promoção e educação para a saúde “As medidas previstas no presente despacho devem ser acompanhadas por programas, desenhados em articulação com as autoridades de saúde, com o objetivo de informar e capacitar para escolhas informadas e mais saudáveis, promovendo-se o aumento da literacia alimentar das crianças e jovens”. Se isto for implementado então esta medida deixa de ser percecionada como radical, isolada e pouco profícua. Agora, é também crucial dotar as escolas de profissionais com as competências específicas para tal. Referimo-nos obviamente aos nutricionistas. Esperar que sejam os professores de forma isolada a fazer este tipo de ações, é um erro tremendo.
Na vossa opinião, todo este processo exige a presença de nutricionistas nas escolas, com a função de garantir a implementação e acompanhamento desta medida aliado a tantas outras que são necessárias?
Catarina S. Guerreiro: Será completamente impossível de outra forma e, se assim vier a ser, esta medida cairá no saco de tantas outras de enorme insucesso. Não queremos isso. Queremos que sejam criadas as devidas condições para que possamos dizer dentro de alguns anos que esta medida foi eficaz. Caberá ao Ministério da Educação, ao Poder Local e a tantos outros atores, assumir de forma ativa a necessidade emergente de dotar o corpo técnico dos estabelecimentos de ensino com nutricionistas. Não podemos esperar mais, pela saúde de todos mas, em particular, pela saúde das gerações futuras.
E estarão as escolas públicas preparadas para adaptar a oferta alimentar dos seus bares e cantinas, ou seja, mesmo saudável é possível a estas instituições oferecem variedade?
Joana Sousa: Na verdade, no horizonte temporal da necessidade de entrada em vigor do Despacho (30 dias após 17 de agosto), será impossível às escolas conseguirem fazer mais do que olhar aos alimentos que são listados e garantir que os mesmos não se encontram disponíveis. Não pode ser exigido que, em tão pouco tempo e para além de todas as responsabilidades que lhes são devidas, a comunidade escolar ainda tenha de planear e implementar a operacionalização do Despacho, estando a isso associado continuar a oferecer variedade. Será muito provável que neste momento muitos estabelecimentos de ensino ofereçam nos seus bufetes um “deserto alimentar”, pois a grande maioria daquilo que caracterizava esta oferta se centrava naquilo que agora não poderá ser disponibilizado.
Catarina S. Guerreiro: Para que seja possível garantir a variedade de escolha, existe uma profunda incapacidade técnico-científica das escolas por não terem na sua estrutura os profissionais habilitados para a implementação desta medida, como já referi há pouco. Para que a variedade da oferta possa existir, saber fazer as escolhas e conjugações corretas, ajustadas e aliadas à promoção da saúde, caberá aos profissionais habilitados para tal. Há muito mais variedade alimentar para além dos alimentos identificados no Despacho. A evidência, a inovação e a diferenciação aliadas à imaginação e capacidade de atração são fundamentais e, neste contexto em concreto, são da total competência do nutricionista.
No meio desta proibição, qual é o papel dos pais? Que garantias é que a nova medida alimentar nas escolas públicas pode dar se depois a alimentação em casa for o oposto?
Joana Sousa: Claro que os pais têm um papel fundamental, mas essa responsabilidade está para além dos portões da escola e deve estar aliada com o papel da escola. São coisas independentes, mas que não se podem dissociar. Os pais têm um papel muito importante na educação dos seus filhos, mas não podemos esquecer que a escola também o tem e por isso deve ser, por si só, promotor de saúde. Esta medida não tem como propósito “dar garantias” aos pais, mas sim coadjuvar para um enorme problema de Saúde Pública como são os hábitos alimentares das crianças e adolescentes em Portugal. Não nos podemos esquecer que 1 em cada 3 tem excesso de peso e quase 1 em cada 5 tem obesidade.
Catarina S. Guerreiro: Ao analisarmos os resultados do Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF 2015-2016), foi nos permitido tirar uma fotografia à população portuguesa e ficar a conhecer o que comem os Portugueses. Relativamente ao consumo de fruta e hortícolas. Perto de 70% das crianças e dos adolescentes portugueses não cumprem as recomendações preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para um consumo diário de pelo menos 400 g/dia de fruta e produtos hortícolas. O consumo elevado de refrigerantes e/ou néctares é uma realidade, principalmente na faixa etária dos adolescentes, em que mais de 40% bebe diariamente este tipo de bebidas.
Assim, a escola fará o seu papel com a implementação desta medida, desejavelmente aliada a uma implementação, acompanhamento e avaliação estruturada e integrada com o objetivo de informar e capacitar para escolhas informadas e saudáveis. Seria desejável que os pais orientassem também a alimentação dos seus filhos com base naquilo que são os princípios de uma alimentação saudável, mas aí caberá aos pais decidir. Gostaríamos de deixar a nota que tudo isto vai para além da escola e dos pais. Não podemos deixar esta tão importante responsabilidade centrada em apenas dois atores.
Dado que será possível adquirir outro tipo de alimentos nos estabelecimentos circundantes das escolas, dever-se-ia também regular a oferta alimentar nesses estabelecimentos?
Joana Sousa: Estamos a falar de coisas que são distintas e não podemos desviar o foco deste Despacho, tentando encontrar “advogados do diabo”. Claro que o ambiente alimentar em redor dos estabelecimentos escolares deve ser uma preocupação e a evidência é clara a esse nível. É na área geográfica num perímetro de 1000-1500m dos estabelecimentos de ensino que existe uma maior concentração de estabelecimentos alimentares cuja oferta alimentar não apresenta a melhor qualidade nutricional. Mas o problema está a montante e não a jusante. O que é realmente prioritário é capacitar estas crianças e jovens para que possam, de forma informada e consciente, fazer escolhas alimentares saudáveis e dessa forma acreditamos que, se formos eficazes, teremos gerações futuras mais saudáveis e que elas próprias vão poder moldar a oferta alimentar circundante.
O que pode ser feito para promover entre as crianças e jovens uma alimentação saudável, ou seja, fazer com que eles queiram escolher alimentos saudáveis?
Catarina S. Guerreiro: Uma estratégia integrada. Mais do que disponibilizar nas escolas uma oferta alimentar saudável, é importante que as crianças e jovens entendam e compreendam o porquê dessa e de outras medidas e que de forma participada e colaborativa possam adotar um estilo de vida saudável ao longo do seu crescimento. Para que isto aconteça é fundamental olhar para a alimentação com um todo e dotar os estabelecimentos de ensino de profissionais com o know-how técnico e científico para enquadrar esta medida numa estratégia global de alimentação saudável na escola. Felizmente vão existindo alguns exemplos nacionais da importância e necessidade desta abordagem, mas, infelizmente, são ainda muito escassos.
Joana Sousa: O Projeto Sintra Cresce Saudável é um bom exemplo disso mesmo e a FMUL orgulha-se por isso. É um projeto de intervenção participada de base comunitária para a promoção de estilos de vida saudáveis em contexto escolar, dirigido a crianças do 1º ciclo do ensino básico que envolve já mais de 5000 crianças do município e que tem permitido alcançar resultados muito importantes nos vários eixos de ação em que trabalha (curriculum escolar – Saúde na Mesa; ambiente alimentar escolar (política alimentar escolar) e atividade física). É promovido pela Câmara Municipal de Sintra e a FMUL assume a liderança técnico-científica do projeto, sendo responsável pela sua avaliação. É um bom exemplo do que deve ser feito!
Este despacho governamental chega na altura certa? Ou vem já com um certo atraso?
Joana Sousa: Nunca há momentos certos nem errados. Há momentos. Há que fazer com que este momento possa vir a ser considerado um momento de sucesso. Há um longo caminho que tem de ser percorrido para que isso aconteça, mas é um momento pelo qual todos nos devemos congratular.
À Lista de alimentos proibidos e alimentos obrigatórios, há algo que pudesse ser alterado?
Catarina S. Guerreiro: Tal como qualquer outro documento normativo, este Despacho não é estanque e não se fechará em si mesmo. É um documento para o qual é preciso desenvolver e aplicar um modelo de acompanhamento e monitorização eficaz, que garanta a devida efetividade na garantia e controle da qualidade do seu objeto, onde poderá ser necessária a sua revisão e atualização.
Isabel Varela
Equipa Editorial
