Tem 55 anos é enfermeira há mais de 30 anos, praticamente o tempo todo que contabiliza enquanto enfermeira do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, Santa Maria.
Há 7 anos a assumir o papel de enfermeira em funções de chefia, na Unidade de Cuidados Intensivos de Gastrenterologia e Hepatologia está, desde outubro de 2020, com a Unidade de Cuidados Intensivos Covid, o que significa tratar de doentes infetados pelo SARS-CoV-2, em alas totalmente isoladas.
A Unidade de UCIGEH (unidade de cuidados intensivos de gastrenterologia e hepatologia, que em abril de 2020 foi convertida para UNEIC (Unidade estrutural internamento crítico) vocacionada para o doente Covid, que com a descida de casos pós 1ª vaga pandémica, passou a Unidade Cuidados Intensivos Polivalente, ou seja, a unidade que juntava a equipa habitual, com mais profissionais de outras áreas e outras diversidades clínicas.
A mulher que recebe os holofotes nesta reportagem chama-se Dulce Freitas e quando me referiram que era uma das “grandes” líderes do Hospital, o imaginário apelou à imagem de infância que uma enfermeira-chefe é sempre robusta e pouco amável, porque só assim aguenta todos os embates. Contradição tão evidente que merece menção aqui. Cabelo claro, objetiva quanto afável nas palavras, não pede, no entanto, licença para se expressar tal e qual sente e pensa. Percebe-se rapidamente que não se expressa demasiado por gestos físicos de afeto, mas reflete a empatia e o cuidado em ações palpáveis e pragmáticas. A assertividade não lhe retira alguma doçura mesmo nas decisões mais impactantes.
De onde lhe vem esta presença de espírito que não foi influenciada pelo percurso da sua própria família? Penso enquanto a observo e ouço e vejo nela a liderança natural sem que precise de se impor.
Ser enfermeira sempre foi a sua primeira opção, esta convicção descreve-lhe inclusivamente todas as outras formas de estar na vida.
No 10º ano não ficou integrada na área de Saúde, única área que aceitava seguir. Na Escola onde estava, o argumento era que a turma da Saúde já estava lotada, tendo passado para a área de gestão, pouco se importou com os argumentos e deixou claro que ou era Saúde, ou mudava de Escola. Ficou em Saúde, na mesma Escola.
Tirou a sua especialidade na área médico-cirúrgica e fez uma pós-graduação em gestão de serviços de saúde.
Depois de uma primeira fase da carreira no Hospital da Cruz Vermelha, mudou-se para Santa Maria, para fazer Urgência, por lá ficou 8 anos. Foi sempre esse o objetivo, trabalhar entre o solo certo e a beira do abismo, onde o risco e o perigo espreitam a relembrar da volatilidade da vida. Depois desses 8 anos largou a Urgência, porque o fazia como duplo emprego, algo mais ligeiro, estará a pensar? Não, porque isso seria falta de adrenalina que lhe corre no sangue. O outro emprego que assumia em paralelo era nos Cuidados Intensivos. Esses 8 anos de Urgência serviram-lhe de grande escola de vida, treino para a gestão das emoções e das decisões humanas. Assumia agora nova dupla missão, cuidar dos doentes nos Cuidados Intensivos da Neurocirurgia e fazer o encaminhamento clínico a doentes, através da seguradora de saúde, Médis. Tempos depois saía desta dupla função dedicando-se por inteiro à Unidade de Cuidados Intensivos de Gastrenterologia e Hepatologia. Por lá já está há 15 anos. Entrou como segundo elemento, mas passou a enfermeira-chefe há 7 anos, quando a chefe da altura se reformou (Conceição Sousa). Aceitou o convite, conta, mas com alguma prudência e receio. "Porquê?", questiono intrigada, diante de uma personalidade vincada e que transmite tanta segurança. Sempre quis ter no seu caminho a proximidade de tratar e estar com doentes, assumir o papel de enfermeira-chefe afastava-a mais do contacto humano direto e ser gestora, era agora a principal missiva, reflexo de cargo solitário e com nível de exigência muito grande. Convicta da personalidade que tem e dos seus maiores motores motivacionais, tenta nunca perder a ligação direta ao doente, contactando sempre que possível com o terreno, que lhe espelha a realidade que sempre a inspirou. Explica que é gestão de tempo muito complicada, já que os recursos humanos espelham bem os atuais tempos económicos e pandémicos.
Faz ainda questão de me explicar que não é chefe de carreira, mas chefe a convite.
Casada com um médico intensivista, tem uma filha com 18 anos.
Move-se a adrenalina, já o dissemos, mas é dos peculiares casos que, se fizer demasiado tempo a mesma linha reta, mesmo que seja no fio da navalha, sente que precisa de um novo balão de oxigénio, porque essa mesma adrenalina passa a rotina segura. A mesma enfermeira que cuidou dos casos mais graves, é a mesma que abraçou com grande criatividade e dinamismo as obras do Serviço de Gastrenterologia, para o transformar em área Covid. Parece tudo simples se a ouvirmos, "era preciso adaptar os móveis e mudá-los de sítio, escolher as alturas certas do que vinha de novo e do que íamos tirar”. Não se resigna ao cansaço, nem ao tempo passado que não lhe roubou qualquer encanto diante do desafio. Robusta é, na verdade, mas na personalidade e a arquitetar o plano B, quando ainda todos estamos sólidos a pensar no A.
Para alguém que já passou por umas quantas transições de grande embate, estava preparada para o cenário a que assistimos de muitas ambulâncias à porta do hospital e as enfermarias lotadas com doentes?
Dulce Freitas: Foi um desafio, porque a verdade é que já estava há alguns anos a trabalhar em velocidade de cruzeiro. Enquanto Cuidados Intensivos de Gastrenterologia, estávamos a funcionar já com bastante estabilidade e eu preciso, por vezes, de mudança e adrenalina para ter estímulo. A mudança faz-me bem. Então, todo este ano foi um desafio enorme porque eu sempre tive grande envolvimento aos Cuidados Intensivos. O meu percurso foi sempre esse, por isso tudo o que seja mudança é encarado como um desafio. Mas a adaptação tem sempre algo difícil, porque isso acarreta alterações violentas, que nos exigem a mudança violenta. A questão é que se não nos adaptarmos, não sobrevivemos.
Essa adaptação obriga a uma aprendizagem de quase tábua rasa?
Dulce Freitas: Uma aprendizagem e adaptação permanente, um ajuste diário do que se faz, como se faz. Por isso sim, é quase.
Esta última adaptação de transformar a sua área em área exclusiva Covid, chegou a passar-lhe pela cabeça se estaria preparada para gerir uma realidade até então desconhecida?
Dulce Freitas: Não! Eu já estava preparada. Porque já tinha formatado tudo na minha cabeça. Eu e a minha equipa, este é sempre um trabalho de equipa, eu não faço nada sozinha. Eu organizei tudo previamente na minha cabeça, de acordo com as normas da Instituição, com tudo o que foi saindo da Comissão de Infeção, da Direção de Enfermagem, do Conselho de Administração, juntei tudo e pensei o que seria preciso para chegarmos aos objetivos. Contámos com o apoio do Hospital e das equipas de outros serviços, o apoio foi, aliás, mútuo. Traçámos tudo e quando foi preciso aplicar, bastou executar. Em outubro quando me disseram que era preciso ajustar tudo para doentes Covid, eu já sabia o que fazer aos nossos doentes habituais e como receber os novos. Em 12 horas transformámos todo o serviço em serviço Covid. Retiramos os doentes não infetados e reduzimos o espaço ao mínimo de coisas necessárias, porque salas com doentes infetados têm de ter o mínimo de coisas necessárias. Da parte da manhã estávamos a retirar os 5 doentes "Covid free" e a receber às 17h o primeiro doente infetado. Toda esta ação precisa de ser rápida, porque repare, estamos a lidar com pessoas que estão doentes. Foi um grande trabalho de equipa, isso passa também pelos serviços de apoio técnico da instituição, retificar rampas de gases medicinais, tomadas, pontos de rede, mudar móveis de local, entre outros, não só os que acompanham os doentes.
De onde lhe vem este instinto de cuidar do outro? Mas também esta assertividade? Não é qualquer pessoa que escolhe enfermagem, pois ela implica executar, tocar, muitas vezes magoar para tratar...
Dulce Freitas: Sempre que tive uma convicção, fui pelo caminho que entendia ser o certo e não desistia, não me deixava abater pelas dificuldades. Tudo o que escolhi e optei foi sempre por sentir aptidão natural. Há uma sede de adrenalina, ligada a um certo "controlo" da situação e quero mesma referir com aspas porque é muito mais fácil vigiar e cuidar de um doente nos Cuidados Intensivos, do que numa enfermaria.
Pode explicar porquê?
Dulce Freitas: Nos Cuidados Intensivos há sempre um enfermeiro na sala, os doentes nunca estão sozinhos e têm todos os equipamentos que vão monitorizar os doentes, quer na parte cardíaca, quer na tensão arterial, na saturação, ou temperatura, estamos muito próximos. Na enfermaria já não estamos tão perto deles. Para mim é muito mais desafiante estar ali presente e controlar tudo o que se passa, é-me difícil ter um doente fechado numa sala e não saber o que se está a passar com ele.
Interessante essa sensação de controlo. A verdade é que nem sempre está tudo nas nossas mãos. O que é que se sente quando esse controlo nos foge?
Dulce Freitas: Esse controlo é efeito da adrenalina mais uma vez e sempre com a ideia presente que "vamos dar a volta isto".
Como é que uma pessoa como a Dulce lida com a frustração quando algo não corre bem?
Dulce Freitas: É horrível, quando se espera que tudo corra bem. Nós somos todos mortais e sabemos disso e que a possibilidade de sobrevivência de alguns doentes é muito baixa. Nesses casos aceitamos com "ligeireza" que a pessoa parta, mas sempre com a preocupação que vá com dignidade, sem sofrimento, sem dor, que parta com tranquilidade e se possível que se consiga despedir da família. Mas há situações inesperadas.... Aconteceu-me, ainda na Urgência, uma situação que me marcou para sempre. Eu estava na equipa que construiu e iniciou a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalentes, estava lá uma adolescente que fica internada com uma “situação clínica ligeira”. A área era dividida pelo doente crítico e menos crítico, essa jovem entrou lá e rapidamente o quadro complicou-se. Teve de ficar internada e a meio da noite simplesmente ela sofreu uma paragem cardiorespiratória. Não é suposto que uma jovem saudável possa parar. Diante daquele cenário recordo-me de dizer "temos que a reanimar, ela não pode morrer, isto não pode ser, ela é muito jovem". Veja, a mãe deixou-a internada com uma situação clínica ligeira, e como é que íamos perder uma pessoa assim? Ficámos uma hora a reanimá-la, foi um desespero para todos nós. Igual a receber crianças politraumatizadas e de repente elas param é contranatura partir tão cedo.
Consegue-se reverter o quadro?
Dulce Freitas: É difícil. Esta situação da adolescente não imagina a angústia e a revolta que sentimos. Porque não era suposto. Vai contra tudo da natureza. Também me aconteceu na Urgência uma criança com 4 anos, estava a brincar ao lado da avó e caiu. Quando caiu, bateu com a cabeça e entrou em paragem cardiorrespiratória e não a conseguimos reanimar. Estas situações são horríveis! Marcam-nos e nessa altura queremos ir embora, desistir. Saímos e apetece não voltar. Depois o que acontece é que ficamos com uma enorme garra que aquilo não pode voltar a acontecer. Fica-nos uma frustração terrível de algo que é contranatura, não pode acontecer...
Qual é o papel de uma líder quando sente a sua equipa a quebrar?
E os cenários são vários, é o quebrar porque não há conhecimento que salve um corpo que para, mas líder de pessoas que são mal pagas e trabalham muito além da sua hora e sentem a apatia do cansaço. Como é que se motiva uma equipa e se lhes pede que continuem a dar o tudo por tudo?Dulce Freitas: É muito complexo, talvez o maior desafio enquanto líderes e chefes. A verdade é que não há uma receita, ou estratégia. Desde que somos um serviço Covid, que temos uma grande falta de pessoal, temos turnos extra mensais com uma média de 80/90 turnos mensais a menos. As equipas estão desmoralizadas e fartas de trabalhar, muito cansadas. E perguntam, "quem é que vai fazer isto por nós?" e sabemos que não há enfermeiros, este Hospital não tem mais enfermeiros. Os que entram são proporcionais aos que saem, não há gente a mais, por isso temos noção que temos de ser nós a fazer, a continuar. Enquanto chefe peço turnos, mas tenho de dar algo em troca, então a minha maior preocupação é que as pessoas gostem de estar aqui. Neste momento eu digo que tenho uma equipa de 5 estrelas, porque apesar de tudo, este grupo de pessoas gosta de estar junto e aprendeu a trabalhar e a passar bons momentos. Eles e eu, crescemos todos juntos. Eu, porque lhes peço qualidade de trabalho, profissionalismo, mas também lhes dou possibilidade de mudar turnos, de substituir horários para que possam ir passar dias fora, descansar; tentamos sempre que as pessoas gostem de estar. Mas não há receitas para motivar, há muitos cursos de motivação, mas eles não se aprendem externamente. Não há receitas no livro que nos digam como e o que fazer, é preciso saber olhar para cada um de maneira diferente, para cada um isoladamente. E sabendo que esta profissão tem riscos, tem muitos, é penosa e trabalhamos muitas horas, mas tentamos dar e receber.
Como é que esta mulher tão profissional, geriu igualmente o lado familiar? Há uma filha para cuidar, uma casa para gerir, um casamento que se mantém. Não é um papel menos importante. Como é que se gerem ambos?
Dulce Freitas: Sempre separei o lado pessoal do profissional. Mas nesta situação desde que começou a pandemia, ficou tudo muito mais complexo porque passei a estar muitas horas seguidas no Hospital, entrava à noite e saída à noite e vinha aos fins-de-semana. A minha filha continua em aulas, em casa. Mas tenho a sorte de ter um marido que conseguia estar mais tempo fora do Hospital para acompanhar a nossa filha. Algumas vezes encomendamos o jantar fora, porque eu simplesmente não tinha paciência para cozinhar, estava exausta quando chegava a casa. Entretanto também fiquei sem empregada em casa, o que foi exatamente a única coisa que faltava acontecer. (Ri, está bem-disposta). Acabei por distribuir tarefas em casa com a minha filha, não a sobrecarrego, mas ela ajuda. E depois tentei desligar do conceito da casa muito limpa e arrumadinha, não era mesmo possível, foi preciso estabelecer prioridades, e nisso a família ajudou muito. O meu marido ajudou imenso e a nossa filha também se adequou às novas tarefas.
Falava-me dos seus horários. Entra às 8h no Hospital e em picos como o de janeiro saia 12 horas depois. Para estar às 8h pronta para o trabalho, significa que saía bastante cedo de casa e chega tarde. Enfermeira-chefe, é também mãe. Não é difícil perceber que para levar o seu barco profissional, o pessoal fica mais solto. Este pensamento visita-a durante o dia?
Dulce Freitas: No início, quando tudo começou, eu deixava-lhe diariamente um bilhete na mesa dela de trabalho. Todos os dias ficava uma mensagem, precisamente para ela sentir a ligação e não se sentir "abandonada". Mais tarde as conversas entre mim e o pai iam sempre dar ao mesmo tema dos doentes e ela pedia para não falar em hospital ao jantar. Pedia mesmo por favor. Pede-nos sempre que se mude o conteúdo, penso que precisa de sentir que pelo menos naquele momento estamos mais perto dela.
Na parte da sua balança emocional, como é que equilibra a tomada de decisão e a razão, com as emoções? Onde é que se arruma a emoção no meio da gestão?
Dulce Freitas: É muito difícil separar tudo... Não sei...(fica muito pensativa, mas sempre tranquila) Vamos fazendo escolhas, deixando que pese sempre mais a razão. À medida que as questões surgem vamos escolhendo, é step by step.
Este seu relato de realidade em enfermaria Covid faz-nos criar alguns alarmes novamente e perceber o perigo de um desconfinamento, sem memória do que já se viveu. Para quem continua no terreno e diante da sua experiência, como olha para o futuro próximo? Poderemos nós entrar numa 4ª vaga em breve?
Dulce Freitas: Muito sinceramente penso que sim. As pessoas não vão ter responsabilidade. Estão fartas de estar em casa e querem liberdade, sem se lembrar do que já se passou. Talvez a algumas pessoas tivesse sido benéfico vir fazer voluntariado e assistir ao que se viveu aqui. Acho que vamos ter mais uma vaga sim.
E isso significa que na sua cabeça já está a construir um plano B de reação a nova vaga?
Dulce Freitas: Já, já! Ainda hoje comentava aqui no Hospital que é importante não se fecharem Serviços que estavam como Covid, porque rapidamente isto pode inverter tudo e voltar a correr mal. Vamos ter uma subida de casos, porque a população não está maioritariamente vacinada e quer ir passear e voltar em massa aos espaços comerciais e ao convívio. E o atraso da vacina da AstraZeneca veio atrasar ainda mais o processo. As pessoas não estão imunizadas e comportam-se como se não se tivesse passado nada. Vejo muitas pessoas na rua sem máscara ainda. Basta vir o sol e as famílias vão todas juntas passear, conviver. Muitas pessoas perderam familiares, perderam-se tantas pessoas e parece que não aprenderam nada. E nas redes sociais ainda nos acusam de sermos mentirosos e de falsear a realidade.
O problema é que não falamos apenas dos negacionistas. Falamos de uma maioria que como saiu ilesa, não parece importar-se com novas consequências.
Dulce Freitas: É preocupante é. E acusam-nos de podermos estar a lucrar com esta situação. Chamam-nos mentirosos.
Isso ofende-a?
Dulce Freitas: Isso magoa muito. Só posso atribuir essas acusações à ignorância. Mas há alguma maldade porque apesar de não saberem o que temos passado aqui, não querem muito saber sobre a verdade dos factos. Nós empenhámos os nossos dias, horas, parte de nós e a troco de muito pouco, basta falarmos da falta de pessoal e de como somos mal pagos. E acha que a maioria quer saber? Não quer. Sabe, muitas pessoas não merecem a nossa dedicação, chegam e acham que tudo lhes é devido. Somos insultados publicamente, claro que isso magoa. Agora, claro que tentamos ignorar, porque não merece outra atitude. E não é justo usarem o argumento que este é o nosso trabalho. É sem dúvida, mas será a todo o custo? Não vale tudo! Estamos a falar de vidas e trabalhamos 30/40 anos de forma dura e à espera de podermos ter uma reforma.
Ainda assim e volvidos 30 anos de carreira, arrisco-me a dizer-lhe que sei a sua resposta à pergunta se se arrepende do caminho que escolheu...
Dulce Freitas: Não arrependo não. De nada. Não me arrependo da minha profissão, nem das escolhas que fiz, nem do meu percurso. Sei que cometo erros e que me esqueço de algumas coisas, nem tudo o que fiz foi sempre bem, mas fiz sempre da forma que achei ser a correta. E quando fiz mal aprendi e fiz por não cometer novamente esse erro. E sei pedir desculpa quando erro, sei reconhecer e tento sempre resolver tudo.
No pico mais alto da pandemia, Santa Maria tinha 7 Unidades todas em exclusivo para os doentes Covid. Atualmente apenas três estão convertidas para o efeito. Durante o mês de janeiro eram 12 as horas diárias que trabalhava para garantir a segurança da equipa e dos seus doentes. Passou pouco tempo e olhando para o que se passou há um mês e meio atrás, a enfermeira-chefe Dulce descreve a correria das equipas, talvez imagem das abelhas que trabalham todas em conjunto na mesma colmeia, seja uma boa analogia. Tudo era para executar já com prazo de validade expirado, o cenário estava mais próximo da loucura e do caos do que da harmonia.
Não é fisicamente afetuosa, já foi aqui dito, mas tem no olhar uma serenidade firme, que reconforta quem possa ter medo de algo. O seu zelo pelo outro comprova-se quando no final da nossa conversa me revela que a preocupam os doentes em espaço fechado e que estão privados de visitas. Tem por hábito transpor para ela aquilo que se passa com o outro e imagina como se sentiria sozinha e rodeada por estranhos, num hospital com salas sem fim. Sempre que possível, conta-me então, fazem para que a família venha ver o doente, na verdade é uma só pessoa a de referência, mas tudo fazem para que venha. Por vezes fazem-se videochamadas para aproximar a família, mas doentes ventilados e sem grande reação, é só penoso para um familiar ver uma imagem dessas no telefone.
O seu cenário diário é conviver com pessoas entubadas e ligadas a máquinas, silenciosas e dependentes de serem muito bem tratadas. Dulce ressente-se com esse quadro de solidão para o próprio doente. A maior parte dos casos dá a volta ao quadro clínico e recupera.
O célebre caso da mãe infetada com Covid e em coma, a Elisângela, foi exemplo dessa dedicação humana das equipas do Hospital. Elisângela esteve ao cuidado da equipa da enfermeira Dulce e foi acompanhada como se fosse família. Depois da cesariana e ainda 12 dias em coma, foi nesta equipa que foi sobrevivendo e restabelecendo as forças. Quando acordou, estava rodeada de fotografias e tinha um diário sobre tudo o que se passou com o seu bebé Neves, nos primeiros momentos de vida. Admite que muitas vezes pensou que ia perder esta jovem mãe ainda com o bebé na barriga, ligaram-se tanto a esse momento como os ecrãs que mostravam o CTG permanentemente a dar feedback da barriga que mostrava a vida do bebé.
O que move Dulce Freitas todos os desafios é o desafio da vitória e a luta contra o que possa estar destinado para a vida da pessoa. O que a faz estar todos os dias às 8h e transitar entre as áreas mais delicadas, é o confronto com o risco e o combate contra a vitória desse mesmo risco.
Se o pior voltar, sabemos que esta enfermeira-chefe já traçou todo o plano de ação na cabeça. E sabemos que se assim for, deixará novamente recados de amor à filha e passará a imagem da casa perfeita para segundo plano. Porque acima de tudo luta por quem é. Pelas convicções que alimenta. Luta se a Natureza lhe quiser levar alguém que ela entendeu que ainda não era a altura de partir. Luta pela qualidade da saúde de todos, mesmo quando a dela passa a estar em risco.
Mas foi tudo como planeou. Como escolheu. Porque assim o quis.
Joana Sousa
Equipa Editorial