A endometriose é uma doença inflamatória, crónica e em grande parte dos casos dolorosa. Pode afetar todas as mulheres com útero e ovários em idade reprodutiva e caracteriza-se pela presença de tecido semelhante ao da camada interna do útero (endométrio), fora daquele órgão.
E, tal como acontece com o endométrio, estes focos externos reagem às variações hormonais do ciclo menstrual, o que poderá provocar sangramentos do tipo “menstruação microscópica”. Estes ciclos repetidos de crescimento e descamação levam a inflamação e fibrose.
A endometriose pode ocorrer dentro e fora da pelve. Dentro da pelve pode afetar a bexiga, intestinos, apêndice, vagina, ureter. Muito raramente, e fora da zona pélvica, poderá afetar pulmões e sistema nervoso central.
Pensa-se que a endometriose possa atingir entre 6 a 10% da população feminina. Existem 3 variantes da doença, a endometriose superficial, muitas vezes assintomática, a endometriose ovárica e a endometriose profunda. Não há, no entanto, uma proporcionalidade entre a intensidade da dor e a variante da doença.
Até à data, esta doença não tem cura, havendo tratamentos para controlar a dor que pode, em determinadas situações ser incapacitante.
A endometriose está muitas vezes, mas não obrigatoriamente, associada à noção de infertilidade.
No mês em que se celebrou o dia internacional da mulher, a News@FMUL foi falar com o Professor Carlos Calhaz Jorge, que nos esclareceu algumas dúvidas sobre esta doença.
A endometriose é caraterizada como uma doença benigna, haverá algum momento em que as fibroses que se criam pelo repetido processo de inflamação possam tornar-se malignas? De que forma?
Calhaz Jorge: A endometriose é, de facto, uma doença benigna com características muito especiais pois pode ter um mecanismo invasivo em algumas situações. A transformação de lesões de endometriose em doenças malignas nunca foi observada. Há, no entanto, algumas indicações de que a endometriose se associa a tipos raros de cancro do ovário, mas essa associação tem um significado clínico absoluto pouco significativo. Para se ter uma ideia concreta, o risco absoluto de uma mulher ter um tumor maligno do ovário ao longo da vida é 1,3% na população feminina geral e 1,8% nas mulheres com endometriose.
O número estimado de mulheres a padecer desta doença é de aproximadamente 2 a 17% (dados obtidos junto da Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose), não haverá muitos mais casos por diagnosticar?
Calhaz Jorge: Esse valor é muito dependente de sistemas de referenciação e das metodologias de obtenção dos dados numéricos. Assim, pensa-se que a endometriose possa existir em 6 a 10% da população feminina global, é encontrada em aproximadamente 40% das mulheres inférteis e pode atingir 70% em centros que tratam doentes com dor pélvica crónica.
Qual a idade média de diagnóstico? E qual a melhor forma de diagnosticar a endometriose?
Calhaz Jorge: Não é possível saber a idade média aquando do diagnóstico. O que é aceite como inquestionável é que podem passar vários anos (5-7 é o frequentemente indicado) entre o início das queixas e o diagnóstico. Isto, resulta em parte, dos seus sintomas serem muito variados e alguns deles serem semelhantes aos de outras doenças mais banais. Também, não há marcadores bioquímicos que nos permitam saber se a endometriose está ou não presente através de análises ao sangue. Embora haja exames imagiológicos que permitem um bom grau de suspeição em algumas doentes, a única forma fazer um diagnóstico seguro de endometriose é através de cirurgia, habitualmente por laparoscopia, uma técnica cirúrgica em que, efetuando pequenas incisões na parede do abdómen, se podem introduzir equipamentos óticos e cirúrgicos que possibilitam a visualização dos órgãos internos, nomeadamente da pelve.
Qualquer Ginecologista pode diagnosticar endometriose ou há uma subespecialidade dedicada a esta doença?
Calhaz Jorge: Qualquer ginecologista ou, em geral, qualquer médico pode estabelecer a suspeita desse diagnóstico, desde que alertado para a constelação sintomática. Mas só ginecologistas com experiência na área acabarão por chegar ao diagnóstico final, que, como foi referido pode ter que passar por uma intervenção cirúrgica. Não existe nenhuma subespecialidade estruturada dedicada a esta área, mas há centros de referência, sendo o Serviço de Ginecologia do CHULN um deles.
Associa-se muito a infertilidade à endometriose, mas nem todas as mulheres inférteis padecem de endometriose como, nem todas as mulheres com endometriose são inférteis?
Calhaz Jorge: De facto, endometriose e infertilidade estão associadas nalgumas doentes, mas não obrigatoriamente. Há muitas doentes com infertilidade conjugal sem endometriose (basta lembrar que há muitos casos de infertilidade de causa masculina isolada, isto é, em que só as quantidades ou qualidade das células masculinas estão alteradas) e doentes com endometriose que engravidam sem necessidade de qualquer tratamento médico.
Em que situações é que endometriose gera infertilidade?
Calhaz Jorge: Para além de outras situações, muito menos frequentes, e de um modo simplificado, a endometriose pode manifestar-se essencialmente 1) como uma doença superficial da membrana que reveste todo o interior da cavidade abdominal (chamada peritoneu), 2) como quistos dos ovários, ou 3) como uma doença infiltrativa da parede pélvica. Ou uma qualquer associação das anteriores.
Acresce que, todas estas modalidades se associam frequentemente à criação de aderências mais ou menos extensas entre os órgãos pélvicos (útero, ovários, trompas, intestinos, bexiga), contribuindo para a alteração das relações entre os órgãos e perturbando a sua função. Assim, a infertilidade pode estar relacionada com alterações imunológicas e bioquímicas nos fluidos que temos dentro da pelve (o líquido peritoneal) e/ou resultar de distorções na configuração e na relação funcional dos vários órgãos.
Não há cura para a endometriose, mas há formas de controlar os seus sintomas?
Calhaz Jorge: Não se conhecendo exatamente a origem da endometriose e tendo ela manifestações muito variadas, não é possível ter atitudes terapêuticas dirigidas à causa. Mas, os sintomas são tratáveis com recurso a medicamentos e/ou cirurgia. Não há um método terapêutico superior aos outros. Tudo depende da situação de cada doente e das queixas que apresenta. É, pois, pouco realista usar a palavra cura para esta doença, exceto se se proceder à remoção completa dos ovários, já que a doença é absolutamente dependente de hormonas produzidas pelos ovários - os estrogénios.
A endometriose é incapacitante?
Calhaz Jorge: Pode ser, se provocar dores crónicas de grande intensidade, nem sempre de controlo fácil.
Estão a decorrer estudos dedicados ao tratamento da endometriose?
Calhaz Jorge: Sim, sempre. A tentativa de encontrar medicamentos que resolvam as queixas dolorosas das doentes com endometriose, é um objetivo que se tem mantido mais ou menos permanentemente. Infelizmente, ainda não se chegou a um fármaco próximo do ideal.
Relatos de mulheres com endometriose descrevem dores dilacerantes e que podem durar por longos períodos; para quem vive com esta realidade, que formas pode ter de atenuar esta dor?
Calhaz Jorge: Há medicamentos que aliviam muito as dores da esmagadora maioria das doentes com endometriose, sendo um deles os contracetivos orais (vulgarmente chamados “a pílula”). Mas, há algumas situações muito resistentes a esses tratamentos que poderão impor uma cirurgia de remoção dos ovários, que anula em definitivo a endometriose mas é, obviamente, uma decisão difícil em doentes em idade jovem. Em casos extremos de dores que resistem às terapêuticas mais usuais e em que a remoção dos ovários não seja considerada uma opção adequada pela doente, poderá haver necessidade de recorrer a tratamentos muito específicos, no âmbito de consultas de dor.
Cristina Bastos
Equipa Editorial