O surgimento da pandemia provocada pela Covid-19 trouxe com ela novas necessidades e rotinas. O chamado novo normal, que de normal tem muito pouco, consiste num conjunto de regras de higiene, etiqueta respiratória e distanciamento social, às quais todos nós tivemos que nos habituar. A adaptação já dura há sensivelmente 8 meses, e em pouco tempo, graças à resiliência dos investigadores e médicos que tudo fazem para descodificar o comportamento do Sars-Cov-2, sabemos mais do que em março.
Life goes on é a premissa na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Para que a vida académica sofra o menor número de constrangimentos e os estudantes continuem a obter a melhor formação, os serviços da FMUL em consonância com os Laboratórios de investigação e demais unidades e elementos da nossa escola médica têm levado a cabo, com grande esforço e dedicação, iniciativas de testagem abrangentes a toda a comunidade.
O “novo normal” levou-nos assim, a conhecer melhor o procedimento de testes rápidos (PCR), já implementado na FMUL, pela equipa do Prof. Doutor Thomas Hanscheid, do Instituto de Microbiologia da nossa Faculdade, que tem contado com o forte apoio da Doutora Ana-Catarina Pronto-Laborinho, Técnica Superior de Saúde- Análises Clinicas e Saúde Pública, doutorada em Ciências Biomédicas- Ramo Fisiologia.
O procedimento é simples: qualquer pessoa da nossa comunidade que pense estar infetada, ou que tenha conhecimento de ter estado em contato com um infetado, pode enviar um email para: covid19@medicina.ulisboa.pt e após análise dos especialistas, será marcada uma data para a realização do teste, que permite obter resultados num período de tempo curto, de 15 minutos. Após a colheita e a análise, os resultados (com cerca de 90% de especificidade), serão comunicados pela equipa do Instituto de Microbiologia.
A Doutora Ana Catarina Pronto-Laborinho, que está na Faculdade desde 2004, é quem dá a cara nesta curta entrevista, explicando-nos todos os detalhes sobre a vantagem dos testes rápidos.
Antes de nos dedicarmos ao motivo que nos trouxe aqui, quem é a Ana Catarina Laborinho? Há quanto tempo está na Faculdade?
Ana Catarina Laborinho (ACL): O meu percurso na Faculdade é já longo. Ingressei nos quadros da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 2004, tendo tido nessa fase a honra de poder trabalhar com o Professor Doutor José Melo Cristino, com o qual aprendi muito e adquiri o gosto pela investigação. Integro desde 2011 o Instituto de Fisiologia, dirigido pelo Professor Mamede de Carvalho, que além de ser o meu “chefe” (Risos), foi também o meu orientador. Uma pessoa extraordinária, com quem tenho aprendido muito e que me desafiou, em 2015, a fazer o Doutoramento em Fisiologia, mais concretamente sobre a Esclerose Lateral Amiotrófica. Penso que valerá a pena detalhar um pouco. Esta é uma doença neurodegenerativa, progressiva e fatal. Até à data, não existe nenhum medicamento capaz de travar a progressão da doença. Em média, os doentes têm uma sobrevida de 3 a 5 anos e a principal causa de morte é a disfunção respiratória. O meu cunho pessoal foi procurar biomarcadores que consigam ajudar no diagnóstico e progressão da doença. Tive a oportunidade de trabalhar com uma equipa multidisciplinar do nosso Instituto, com a Prof.ª Filomena Carvalho (Co-Orientadora) e com o Prof. Nuno Santos, do Instituto de Bioquímica, e com a ajuda deles foi possível abordar técnicas muito inovadoras, como a microscopia de força atómica, tendo sido obtidos resultados muito interessantes, a publicar em breve.
Relativamente a este novo normal, que recai sobre a necessidade de testar todos aqueles que manifestem possibilidade de infeção por Covid-19, como é que veio aqui parar? Voluntariou-se?
ACL: Na verdade, foi a Dr.ª Isabel Aguiar que dirigiu o convite para integrar a equipa de testagem e obviamente que achei o desafio muito interessante. Como adoro novos desafios, aceitei de imediato. Sobretudo, porque se insere na minha área de formação: Análises Clínicas e Saúde Pública.
Como é que são selecionadas as pessoas? Quais os critérios para vir aqui realizar os testes?
ACL: A validação das marcações não passa por mim, é efetuada uma avaliação inicial de cada situação individual, por médicos e profissionais especializados, e de acordo com a avaliação individual são encaminhados para aqui. Estamos disponíveis para fazer a testagem em todas as pessoas da Faculdade, que tenham conhecimento de ter estado em contato com infetados. Mas, principalmente alunos, porque vão para estágio em hospitais, e por razões de segurança, necessitam de saber se estão ou não positivos para SARS-CoV-2. A Faculdade está sempre muito empenhada em dar a maior segurança aos alunos e à nossa comunidade, logo desde o início da pandemia.
Em média, quantos testes realiza por dia?
ACL: Estamos ainda numa fase muito inicial, a ajustar as nossas capacidades, porque temos de conciliar a realização dos testes com as nossas outras atividades profissionais. Por parte da Faculdade, estou eu e a minha colega Adriana Justo, também ela de análises clínicas, e depois há toda uma equipa de back office de suporte, refiro-me à Dr.ª Isabel Aguiar e à Gabriela Fernandes. A equipa orientadora é composta pela Prof.ª Emília Valadas e pelo Prof. Thomas Hanscheid, patologista clínico, que deve estar para chegar. Tudo isto, para lhe dizer que em média, por dia, temos tido 12 a 13 pessoas, mas este número tem vindo a aumentar.
Dr.ª Ana Catarina Laborinho, seria possível descrever-nos os cuidados e procedimentos para a realização dos testes?
ACL: Os testes de pesquisa de antigénio, desenvolvidos para o diagnóstico do SARS-CoV-2, visam detetar proteínas específicas do vírus produzidas no trato respiratório. São realizados através da colheita de amostras de exsudado, normalmente, da nasofaringe que se obtém a partir de uma zaragatoa. A tecnologia envolvida é semelhante a um teste de gravidez e a triagem de cada situação é fator essencial (efetuada pelos elementos que constituem o grupo de trabalho). Cada elemento da comunidade académica deve ser testado dentro do período indicado para este teste. O mesmo deve ser realizado por profissionais qualificados para o efeito, que tenham formação superior e validada para efetuarem colheitas, uma vez que se o procedimento de colheita da amostra não for corretamente realizado podemos estar perante falsos resultados. Daí a necessidade de serem Técnicos Superiores de Diagnóstico e terapêutica - Análises Clínicas e Saúde Pública a realizar este tipo de colheitas. Complementarmente, o teste deve ser realizado de acordo com as recomendações do fabricante, sendo que o teste que temos realizado é o teste rápido de antigénio da Abbot, consistindo num procedimento simples e muito prático de realizar por profissionais qualificados. Após a colheita da amostra, por zaragatoa nasofaríngea, a mesma é colocada numa solução tampão específica, e o teste pode ser realizado com um resultado em 15 minutos. Posteriormente, deverão ser efetuados os controlos negativos e positivos para validação do nosso trabalho. Seguidamente, todos os resultados são analisados pelo Patologista Clínico, Professor Thomas Hanscheid que valida os resultados para poderem ser divulgados.
Tem medo de estar aqui e contatar com potenciais infetados?
ACL: Se fosse há uns meses atrás, estaria com muito mais receio, porque sabia muito pouco, mas agora não! Há sempre algum receio, porque é uma doença sobre a qual ainda haverá muito a descobrir, porque os efeitos a médio e a longo prazo não se conhecem. Neste momento não estou com medo, receio existe sempre, mas estamos muito bem protegidos pelo equipamento de proteção individual (EPI), pelo que o risco é reduzido. Por outro lado, como profissional de saúde tenho que estar onde devo para cumprir as minhas funções, e neste momento não faria sentido, eu não poder estar a fazer a minha parte. Aqui está o Prof. Thomas!
Qual é o procedimento quando identificam um teste positivo?
ACL: Nós, funcionamos em equipa multidisciplinar. Portanto, eu e a minha colega Adriana Justo, Técnicas Superiores de ACSP, da FMUL, e outros colegas também da mesma área de formação efetuamos todo o procedimento desde a colheita da amostra e testagem, sendo os resultados diretamente comunicados ao Prof. Thomas Hanscheid, que por sua vez, na qualidade de patologista clínico, valida os mesmos. Os resultados são então divulgados a cada pessoa que foi testada. Mais tarde, são analisados os resultados e cada caso é verificado individualmente pela equipa de peritos da FMUL.
Há uns dias atrás, a Doutora Graça Freitas, durante a conferência da DGS, referiu que seria coerente realizar os testes de despiste à Covid-19 apenas quando houvesse uma orientação médica para isso. Por outro lado, todos nós nos recordamos de um conselho da OMS, logo no início, que consistia em “testar, testar, testar”. Na sua opinião, qual dos dois está certo?
ACL: Na minha opinião, a resposta tem de ser adequada à realidade de cada situação. De fato, é importante e fundamental a testagem, mas dentro de orientações específicas das entidades responsáveis. A OMS e a DGS não recomendam testagem das pessoas por autorrecriação. Os testes de diagnóstico para a Covid-19 devem ser realizados após indicação médica e por profissionais de saúde qualificados que têm o dever de registar os resultados, para que as autoridades de saúde possam manter a vigilância epidemiológica da doença em Portugal.
Eu, de facto, sou apologista da testagem, mas dentro de um quadro limite de normas definidas pelas entidades competentes. O médico assistente e a DGS agem segundo análise e ponderação da situação clínica e epidemiológica evidenciada por cada individuo. Não considero pertinente realizar-se um teste quando passo por alguém a tossir e receio poder ser infetada. Existem critérios predefinidos e tem de ser o médico ou delegado de saúde a decidir a necessidade do teste. No caso presente, os testes rápidos devem ser realizados numa determinada janela temporal e por recomendação médica. Caso contrário, em determinadas situações em que não se cumpram os critérios adequados, por falta de sintomatologia ou por falta de sensibilidade e especificidade do teste, corre-se um risco muito grande de ter falsos negativos e consequentemente uma segurança de um resultado negativo poder originar algum desleixo nas regras e normas que devem ser cumpridas. É uma responsabilidade individual e coletiva e um dever de cidadania protegermo-nos e proteger os outros. E as regras e recomendações devem ser cumpridas, temos de pensar também nos outros, pois um deslize nosso pode colocar em risco a vida de terceiros. E se cada um de nós cumprir a nossa parte, os danos para a saúde e para a sociedade, em termos económicos e sociais serão bem menores.
Referiu há pouco que a viabilidade dos testes rápidos está compreendia entre os 93 a 97%, confirma?
Thomas Hanscheid (TH): Catarina, permita-me responder a esta pergunta. O que aqui interessa avaliar é a sensibilidade e a especificidade. Eu não gosto do termo viabilidade. O que existe, no âmbito destes testes, são sensibilidade e especificidade. Estes termos referem-se a falsos negativos (sensibilidade) e falsos positivos (especificidade). A especificidade é de 99% e isso significa que quando o resultado é positivo, em princípio está certo. Mesmo assim, 1 em cada 100 poderia ser um falso positivo e por causa disso, por exemplo para um diagnóstico clínico, pode ser prudente confirmar os positivos por métodos mais fiáveis como a PCR. A sensibilidade está relacionada com os falsos negativos que é, de certa forma, muito mais relevante. Estes testes parecem ter uma sensibilidade de 80% a 90%, ou seja, em 100% de infetados não detetam cerca de 10-20 pessoas (falso negativos). Nestas pessoas o (falso) resultado negativo pode induzir a uma errada sensação de segurança: “Eu tenho o teste negativo, logo não sou infecioso (e eventualmente não tenho que esforçar-me tanto com as medidas de proteção) ”. Isso é obviamente um grande erro de raciocínio e todos devem continuar com as medidas de proteção!
Porque é que acontecem estes falsos negativos?
TH: Porque acontecem estes falsos negativos? Uma das razões tem que a ver com a colheita, por exemplo. Se a colheita correr menos bem, a amostra será de menor qualidade, é mais provável dar um resultado errado. Mas a principal razão é que estes testes rápidos são positivos quando houver uma elevada quantidade de vírus nas vias respiratórias. Isso normalmente equivale a um maior risco de ser infecioso, e assim há quem diga que os testes detetam bem (ou melhor) aqueles que são (mais) infeciosos. Os indivíduos que têm menos vírus (e que são menos infeciosos) são aqueles em que o teste mais provavelmente dá um resultado errado (falso negativo). Assim a principal razão do uso destes testes é identificar os (mais) infeciosos e retira-los da circulação.
Professor, e relativamente à testagem em massa que a República de Eslováquia levou a cabo? Qual é a sua opinião?
TH: O que aconteceu na República da Eslováquia pode também ser considerado um grande desperdício. Porquê? Ora bem, com toda este enorme esforço, eles detetaram, e muito bem, 30 mil casos positivos que foram retirados de circulação e colocados em isolamento. Mas o que acontece com aqueles 10% de falsos negativos, não detetados na testagem? Se eu tenho 30 mil que são positivos, significa que posso ter 3 mil infetados, 3 mil pessoas com teste falso negativo, que circulam com uma falsa segurança. Mesmo que estas pessoas pertençam ao grupo dos menos infeciosos, elas poderão alimentar a cadeia de contágio, principalmente, se ao sentir-se mais à vontade, baixarem a guarda e não se comportarem corretamente, seguindo as normas de utilização da máscara, higienização das mãos e distanciamento social.
Assim, temos duas situações e para mim, é muito difícil, dizer qual das situações é melhor. Será que é melhor ter 33 mil infetados sem saber que o são, mas que se comportam com cuidado, que evitam a cadeia de infeção (e investir este enorme esforço em outras áreas)? Ou ter 30 mil identificados e confinados, sabendo da margem de erro de 10%, que eventualmente podem começar a espalhar o vírus com melhor facilidade? Há primeira vista, tenho uma inclinação para o primeiro cenário, ou seja preferia ter as pessoas a usarem as medidas escrupulosamente, todos a pensar que pudessem ser infetados, o que acho ser menos perigoso do que ter 3 mil falsos negativos, infetados e a circular, possivelmente muitas vezes sem cuidado. Sobretudo se considerarmos o enorme esfoço que isso significa, é como uma fotografia – apenas existe naquele momento. Duas/três semanas mais tarde já poderia ser necessário repetir tudo.
Isabel Varela
Equipa Editorial




