É Professor de Bioquímica da Faculdade de Medicina e investigador principal no iMM, onde dirige o laboratório de Bioquímica Física de Fármacos e lidera uma equipa, cujo trabalho é compreender os princípios biofísicos que regem as interações moleculares de vários compostos de relevância clínica, com vista ao desenvolvimento de novos fármacos. Pelo conhecimento e experiência adquiridos ao longo de vários anos dedicados à Ciência e à investigação, importantes lições que partilha também com os alunos da nossa Faculdade, Miguel Castanho tem sido presença assídua no panorama noticioso da Covid-19.
Em diversas ocasiões, o Professor afirmou à imprensa faltar um fio condutor lógico, em consonância com o rigor científico, para a fundamentação das decisões políticas que têm sido tomadas ao longo dos últimos meses, apelando à prudência nas extrapolações.
À news@FMUL, Miguel Castanho faz um balanço do que tem sido a política de gestão da pandemia em Portugal, comentando a relação do Homem com a Natureza e o novo olhar que a Covid-19 nos lançou sobre nós e o Mundo ao nosso redor, analisando o estado da Ciência no país e as repercussões das estratégias de investimento num progresso científico que se quer “sério e real”.
Entende que, neste momento, “já é difícil acreditar que o coronavírus se erradique em condições naturais”, explicando que no caso da gripe de 1918, evocando a pandemia da Gripe Espanhola, “houve um vírus com uma capacidade infecciosa muito grande, que alastrou muito rapidamente e acabou por declinar, porque não tinha mais por onde infetar e expandir, e naquela altura a tecnologia médica era muito débil”, recorda. O contrário sucede nos dias de hoje com o SARS-Cov-2, que já se espalhou por todo o globo, “ainda existe muita gente que não está infetada e que não desenvolveu imunidade, e o que podemos antever para o futuro é a continuação de vários surtos aqui e ali”, situação com a qual lidamos no momento presente, antecipando-se a existência de condições naturais mais favoráveis ao vírus com a chegada do outono e inverno, pelo que continuaremos em contacto com o vírus, “entre avanços e recuos até que se evolua para um determinado equilíbrio, o que ainda pode demorar algum tempo”.
Miguel Castanho defende que o mais plausível neste momento “é que consigamos controlar o número de infeções com uma intervenção grande e muito bem dirigida”, em que os surtos “vão sempre aparecendo” enquanto, “lentamente, vamos criando um equilíbrio com o vírus”.
Na ausência de “dados muito fiáveis e informativos” torna-se difícil a abordagem à situação epidemiológica atual do país, pelo que a análise de Miguel Castanho reflete unicamente a sua visão pessoal, como fez questão de ressalvar, partilhando a opinião de que “numa estratégia bem montada, deveria ter sido iniciado um plano no qual se identificassem os indicadores fiáveis para a tomada de decisões”, bem como “onde é que estão os pontos frágeis que potenciam as cadeias de contágio”, declara, realçando que “não é o Vale do Tejo que está numa situação mais crítica e frágil, mas sim a Área Metropolitana de Lisboa”. Refere, também, os vários setores de atividade que não cumpriram quarentena e nos quais “o confinamento não teve o efeito desejado”, sendo que alguns desses setores, nomeadamente, o da limpeza e construção civil “dependem em grande parte da imigração”, constituindo um público-alvo que não recebeu ou interpretou da forma mais eficaz a mensagem de prevenção em contexto da atual pandemia. “Para agravar, também são estas populações que têm condições socioeconómicas mais frágeis e vivem em grandes aglomerados, em habitações mais reduzidas”. “Mas tudo isto não passam de suposições”, sublinha Miguel Castanho, lamentando a ausência de um plano “dentro de uma estratégia mais científica” e a lacuna nos estudos que “deveriam ter sido iniciados no dia zero” (ao invés de serem realizados no pós-confinamento) para se conseguir pôr termo às cadeias de transmissão.
Explica, ainda, que “há uma diferença entre informação e mensagem, e tem de haver um elo de raciocínio entre a informação e a decisão”, denotando que a palavra “estável”, frequentemente presente na comunicação social e discursos oficiais, merece uma aplicação mais cuidadosa, já que a estabilidade na progressão da doença difere da ideia ou conceito de estagnação do contágio. “Na realidade o que está estável é o número de novos casos por dia. A forma como se olha para os indicadores, a interpretação dos mesmos e a forma como decidimos através desses indicadores é, na realidade, o que conta”.
Para além disso, Miguel Castanho reconhece que “é extremamente importante haver transparência na comunicação dos números”, mas é ainda mais importante “compreender como é que as entidades oficiais interpretam aqueles números”, reiterando que “todas as medidas que foram tomadas para conter a propagação do vírus e transmissão da doença devem ter um raciocínio”, intrínseco à interpretação dos números. Um raciocínio lógico que “nunca foi feito”, abrindo espaço à confusão numa sociedade confrontada com a incongruência entre os números da pandemia e as resoluções do poder político.
Primeiro que tudo, a lógica. De seguida, a comunicação dessa mesma lógica. Assim deveriam definir-se as prioridades no combate à pandemia. “Uma estratégia de comunicação bem montada é uma condição absolutamente essencial para se conseguir ter um plano bem implementado e eficaz, porque se as populações não aderirem, os planos ficam comprometidos”.
Quanto ao futuro, Miguel Castanho aponta os cenários possíveis nos próximos tempos, considerando que “devemos ser realistas no planeamento e na configuração das várias realidades para conseguir estar um passo à frente do vírus e saber o que fazer”. Um leque de realidades prováveis nas quais “chegaremos a um ponto de controlo da doença e da transmissão mais rapidamente, noutros cenários mais longinquamente, mas em qualquer um deles iremos ter o proveito da evolução científica e tecnológica, podendo sempre usar-se estratégias de pandemias anteriores”, afiança.
Miguel Castanho encontra no mundo dos medicamentos uma previsibilidade maior do que no mundo das vacinas, onde garante existirem menos opções e estratégias consolidadas. E com a convicção de que “irão surgir muitos medicamentos para o SARS-Cov-2”, o Professor revela que “ainda não apareceu nada de radicalmente novo ou disruptivo” nas investigações sobre o novo coronavírus que, “do ponto de vista da organização”, é muito semelhante a outros vírus com os quais está familiarizado. “Até agora é só mais um vírus e bastante devastador, sobretudo para a população envelhecida”, realça, acrescentando que a nova qualidade do SARS Cov-2 não se consubstancia “do ponto de vista científico, médico ou farmacológico”, pelo menos por enquanto. A novidade é que “este vírus trouxe-nos um novo olhar sobre a Natureza, o mundo e a forma como vivemos”.
Explorando o campo dos antivirais, que são objeto de investigação de Miguel Castanho e respetiva equipa, que procura desenvolver moléculas, medicamentos capazes de penetrar e atuar no cérebro, “estamos sobretudo preocupados com os efeitos que os vírus fazem no cérebro e no sistema nervoso central”, esclarece, revelando que “temos recebido cada vez mais informação de que o SARS Cov-2 pode, de facto, ter efeitos neurológicos, incluindo para pessoas que tiveram manifestação relativamente moderadas da doença”.
O Professor, que investigou o primeiro coronavírus em colaboração com uma equipa da China, não tem dúvidas de que se a pesquisa então iniciada não tivesse sido interrompida, “estaríamos agora melhor preparados”, com bases de conhecimento científico mais robustas, adquiridas no âmbito da primeira SARS e, posteriormente, da MERS, ambas síndromes respiratórias provocadas por coronavírus. “É curioso e significativo que nós, nesta altura, estejamos a repescar moléculas que ficaram em desenvolvimento para trás, nessa altura”, constata, mencionando que “uma das lições desta pandemia é que devemos repensar a forma como alocamos recursos à investigação científica e o que queremos da própria investigação científica. Se queremos um progresso sério e real ou se estamos a investir em Ciência só para fazer folclore”.
Na opinião de Miguel Castanho, a pandemia de Covid-19 impôs um “recentramento geracional”, na medida em que as atenções do Homem se voltaram para a geração que está na vanguarda. “Desviamos a atenção dos nossos filhos para nos centrarmos nos nossos pais e estamos a descobrir que temos, de facto, uma população muito envelhecida”. Para além disso, “devemos interrogar-nos porque é que 100 anos depois da grande pandemia de 1918, e chegada outra pandemia de um vírus respiratório, o máximo que conseguimos fazer foi algo tão primitivo como a solução de 1918, isto é, fechar-nos em casa e usar máscaras”. “O que é que aconteceu à evolução científica, médica e tecnológica para que tivessem passado ao lado das estratégias antivirais, pandémicas e das doenças infetocontagiosas?”, questiona, verificando que “em contrapartida, a metade desse século, o Homem pôs o pé na lua”. A explicação está “no facto de se alocarem recursos ao que é mais mediático ou conceituado na altura”, defende Miguel Castanho, com a garantia de que “andar ao sabor do momento cria desequilíbrios” que são evidentes em momentos como o que agora atravessamos, “em que deixou de haver praticamente investimento [na segunda metade do século XX] em antibacterianos e antivirais”.
Os sinais de alerta foram emitidos e a evidência esteve sempre no encalce de todos: “as bactérias multirresistentes estão a evoluir e a inovação farmacêutica não está a acompanhar essa evolução, mas nunca ninguém ligou muito, porque ninguém bateu de frente com a realidade”. Até agora, em que “houve um choque generalizado da sociedade com um vírus” e deu-se conta que o investimento que foi feito nos últimos anos em doenças infetocontagiosas ficou muito aquém do desejado. “Não devemos andar atrás de modas na distribuição de recursos para o desenvolvimento científico”, alerta.
Recentemente, o Público divulgou uma notícia em que destaca a publicação da Science, na qual alguns especialistas apontam para a implementação de um sistema de vigilância global de animais selvagens (e rastreio de vírus passíveis de contagiar o Homem) como estratégia para evitar uma futura pandemia.
Para Miguel Castanho a solução passa antes por encontrarmos, através da Ciência que nos ajuda “a compreender o que está à nossa volta”, o “ponto de entendimento com a Natureza”, que é a “casa” onde vivemos, à semelhança de outros microrganismos como os micróbios, as bactérias, vírus e fungos, com os quais devemos aprender a relacionar-nos, de forma a estabelecermos uma harmonia vital para o equilíbrio do ecossistema. “Não nos devemos subestimar a nós e à nossa capacidade de evolução, mas também não devemos subestimar a Natureza”, afirma, recordando que “generalizou-se a ideia de que nunca mais teríamos problemas com doenças infetocontagiosas”. Não obstante, soaram muitos alertas. “Só não recaiu no suspeito do costume, no vírus da gripe”, mas antes num novo coronavírus.
“Uma pandemia pode sempre surgir quando menos se espera, e pode ser causada por um vírus, por uma bactéria, um fungo… Só não sabemos exatamente quando, nem onde, mas o risco existe, portanto devemos estar preparados, devemos ter planos de emergência para que no início de uma pandemia nós possamos logo tomar medidas. A evolução da tecnologia médica, dos medicamentos, da forma como se fazem vacinas irão depois ser cruciais na resposta”, sublinha, reiterando que está errada “a ideia de que vem tudo da China”, apontando o exemplo do VIH, que teve origem em África.
Planeamento, lógica e valorização da Ciência são, assim, importantes aprendizagens a reter para o futuro, futuro esse que tem como única certeza a de que esta pandemia não será a última da história da Humanidade.
Sofia Tavares
Equipa Editorial