Afinal é mesmo verdade, temos efetivamente dois sistemas nervosos a operar de forma autónoma no nosso corpo. Aquele que é comummente apelidado de “2º cérebro” vive, para muitos de forma ainda secreta, nos intestinos. E à semelhança de qualquer outro órgão, também este merece a devida atenção, já que o seu bem-estar determina a saúde do nosso corpo e mente.
Uma das preocupações gerada pela pandemia foi a suspensão de milhares de atos médicos, tendo-se instalado na população o medo de voltar aos hospitais, que em poucos dias viram as salas vazias de doentes. Consequentemente, houve uma série de patologias, em particular, as doenças do aparelho digestivo que foram colocadas em segundo plano. “Há muitas doenças que estão a ficar para trás e os doentes estão com algum medo de vir ao hospital, só 20 a 25% têm aderido, sendo que as consultas estão a ser realizadas por telefone”, afirma Rui Tato Marinho, médico gastrenterologista e Professor da FMUL, partilhando o receio de que se atrasem diagnósticos, alertando também para as consequências da pandemia, que poderão revelar-se mais devastadoras do que a própria doença de covid-19. E foi, precisamente, o reconhecimento da importância de vigiar a saúde digestiva, sob pena de se prejudicarem os rastreios e vigilância de alguns dos cancros mais frequentes nos portugueses, que Rui Tato Marinho, na qualidade de Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, tem vindo a partilhar informação, alertando a comunidade académica e a população portuguesa em geral para os riscos, principais problemas e formas de prevenção, de forma a garantirmos o funcionamento equilibrado e saudável do nosso aparelho digestivo.
Assim, em pleno Mês da Saúde Digestiva, uma iniciativa encetada pela SPG (Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia), precisamente para combater a falta de informação sobre questões tão importantes, voltámos atenções para um dos órgãos, talvez o mais subestimado de todo o aparelho digestivo: o intestino.
São muitas as evidências científicas que atestam a importância do estômago e da flora intestinal na nossa saúde e não restam dúvidas de que aparelho digestivo tem uma influência decisiva no nosso bem-estar físico e mental, já que no aparelho digestivo existe um sistema nervoso autónomo, um “segundo cérebro” formado por milhões de neurónios que estão em constante comunicação com o cérebro.
Podemos realmente dizer que temos o intestino ligado à cabeça e a importância deste sistema nervoso é, de facto, excecional, devendo-se em parte a uma influência direta que as bactérias intestinais têm na química do cérebro e, consequentemente, no nosso comportamento e saúde.
Mas vamos por partes. Comecemos por abordar um conceito essencial sobre esta matéria, ou seja, a flora intestinal, mas empreguemos o nome “mais correto e atual”, que é microbioma ou microbiota, como explica Rui Tato Marinho, adiantando que se trata de “um sistema ecológico complexo e silencioso, quando funciona bem”. “É uma comunidade invisível, de certo modo, e é constituída por um conjunto de microorganismos que habitam o nosso aparelho digestivo”.
Os números impressionam: “o tubo digestivo mede cerca de 10 metros desde a boca ao ânus. O órgão mais longo do corpo humano é o intestino delgado, onde vive grande parte da microbiota, estimando-se que a microbiota seja constituída por cerca de 100 triliões de microorganismos, na sua grande maioria bactérias”. Existem mais bactérias da flora intestinal do que células humanas, “há quem diga 10 vezes mais”, revela-nos o Professor. “A importância da matéria é tal que a Organização Mundial de Gastrenterologia decidiu escolher o tema para o dia Mundial da Saúde Digestiva: “Gut Microbiome: A Global Perspective”, sublinha, explicando que a microbiota assume um papel de extrema importância em diversas funções. “É importante no processo de digestão e absorção de múltiplos constituintes do ser humano, na destoxificação de substâncias exógenas, equilíbrio do sistema imune, funcionamento do aparelho digestivo, entre outras. No fundo, é vital para a nossa homeostasia no sentido global”, refere, apontando o transplante de microbiota fecal como uma das terapêuticas mais recentes e inovadoras para tratar casos mais graves de infeções a Clostridium difficile.
O aparelho digestivo possui, de facto, neurónios e uma atividade independente do cérebro, com o qual mantém uma estreita e interessante ligação. “O Sistema Nervoso Entérico é formado por 100 milhões de células. Há quem fale em 500 milhões de neurónios. Existe uma rede neuronal que comunica através de neurotransmissores do cérebro para o intestino e vice-versa”, esclarece Rui Tato Marinho, revelando a evidência científica de que “as nossas emoções afectam o funcionamento do intestino e vice-versa”.
Efetivamente, o impacto da influência entre os dois órgãos é inegável. “Um paradigma deste facto é a síndrome do intestino irritável, que afecta 1 milhão de portugueses ou mesmo a dispepsia não ulcerosa, que poderá atingir 15-30% da população”. Rui Tato Marinho entende que, perante esta questão, o dilema é muitas vezes o clássico: “Quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha?”. “Será decerto um misto entre o funcionamento intestinal e o componente psicológico e emotivo que estará na génese de muitas situações. É um trabalho em equipa”, garante.
Para além disso, a grande maioria das células do sistema imune está no intestino. “É o denominado ‘gut-associated lymphoid tissue (GALT)’”, refere o Professor, relembrando “os sete metros” ao longo dos quais se estende a cavidade abdominal. Entre muitas outras funções, explica-nos, “o intestino delgado tem um papel imunológico vital”. “Lembro-me de ter assistido há cerca de 20 anos nos EUA, em Pittsburgh, a vários transplantes do intestino delgado. A complexidade é elevadíssima, é dos transplantes mais difíceis e onde não se tem progredido muito em termos de sobrevivência, já que apenas 40-50% dos doentes estão vivos ao fim de cinco anos”.
E “quem diria que as fezes, tema muitas vezes tabu, seriam tão importantes?”. Apesar de ser um assunto para muitos, pouco atrativo e forçosamente evitado, certo é que cerca de 50% das fezes são formadas pelas designadas bactérias boas. “As bactérias formam cerca de 50-60% da massa fecal. Temos que revisitar as fezes e considerá-las parte integrante do nosso equilíbrio como seres humanos”, denota Rui Tato Marinho, acrescentando que “o cheiro, cor, as suas circunstâncias, a sua história ancestral traz consigo um sentimento pejorativo, mas contêm bactérias vitais para a nossa sobrevivência. Quando as dejeções fogem da regra habitual, com diarreia ou obstipação ou mesmo oclusão intestinal, algo está mal. As fezes (e os gazes associados) fazem parte da vida. Sem fezes e as suas bactérias não há vida Saudável, sem Saúde Digestiva não há Saúde Global”.
Está também cientificamente comprovado que um microbioma rico e variado contribui terminantemente para a saúde intestinal, e Rui Tato Marinho dá, inclusive, conta de um estudo recente, publicado no New England Journal of Medicina, em fevereiro deste ano, “que mostra que no caso de doentes submetidos a transplante de medula óssea, a sobrevivência é mais elevada com a maior diversidade do microbioma intestinal”.
Muitos são, também, os projetos de investigação, “incluindo meta-análises”, que “mostram efeitos positivos no controlo da ansiedade através de intervenções no microbioma intestinal”. No entanto, Rui Tato Marinho entende que “são necessários mais ainda para ter uma conclusão mais robusta”.
Por outro lado, as dúvidas dissipam-se quando atentamos nos números dos cancros do Aparelho Digestivo em Portugal, em que 1/3 das mortes por cancro no nosso país estão relacionados com cancros do Aparelho Digestivo. “Morrem, em Portugal, 10.000 pessoas por cancro digestivo”, explica o Professor, acrescentando que os dados devem ser agregados, indicando, assim, os cinco principais cancros do Aparelho Digestivo, um conjunto a que chama de “Big Five” formado pelo cancro do “esófago, estômago, fígado, pâncreas e cólon e reto”. Dos cinco, “o cancro do cólon e reto é o que regista incidência mais elevada”, afirma, revelando que “em 2018, de acordo com os dados da OMS (Globocan 2018), surgiram 10270 cancros do cólon e reto para 6974 da mama e 6609 da próstata. O diferencial é muito grande”.
Rui Tato Marinho explica-nos, ainda, que o cancro está relacionado com “o envelhecimento, carga genética e também com estilos de vida. O consumo excessivo de álcool, o tabaco, o excesso de peso, o consumo desequilibrado de carne vermelha, constituem todos fatores de risco oncológico, e sabemos que desequilíbrios no microbioma podem contribuir para alguns cancros”, revela, elucidando que “também aqui entram os microorganismos”. “Helicobacter, vírus da hepatite C e vírus da hepatite B são agentes oncogénicos para o cancro gástrico e carcinoma hepatocelular, que são o terceiro e o sexto cancro com maior mortalidade em Portugal”. Para além disso, “o cancro do pâncreas, com esperança média de vida de 4 a 6 meses após o diagnóstico, está apenas a cerca de 100 casos em termos de mortalidade quando comparado com o cancro da mama. Dentro de 4-5 anos, o cancro da próstata ultrapassará em termos do número de mortos o cancro da mama”, comenta.
De facto, não restam dúvidas sobre a importância de cuidarmos da nossa Saúde Digestiva, que para se manter em perfeito equilíbrio e harmonia, exige que adotemos estilos de vida saudáveis, nos quais se incluem práticas como “uma dieta equilibrada, com consumo de frutas e vegetais, evitando o excesso de carnes vermelhas, fritos e açúcar – bolos, doces e bebidas açucaradas, bem como “não fumar, evitar o consumo excessivo de álcool e o excesso de peso, mantendo o peso dentro de um adequado índice de massa corporal”.
O exercício físico é, segundo Rui Tato Marinho, “das medidas mais eficazes para manter a Saúde Digestiva, além de aumentar o nível de Dopamina, melhora a obstipação, corrige o excesso de peso, entre outros benefícios”, esclarece, considerando que a prevenção passa, igualmente, por “vacinar contra a hepatite B, fazer o rastreio da hepatite C (anti-VHC para toda a população) – erradicar a hepatite C – e caso indicado o helicobacter pylori. Uma das medidas mais importantes é, também, realizar o rastreio do cancro do cólon e reto pelos 45-50 anos. O método mais eficaz é uma colonoscopia bem feita num intestino muito bem preparado”, frisa.
Em suma, conclui Rui Tato Marinho, “há muito a fazer para melhorar a sua Saúde Digestiva”. Só depende de cada um “e está nas suas mãos, boca, intestino e cérebro” manter em perfeito funcionamento o seu Aparelho Digestivo. Contudo, apesar de simples, pode ser desafiante, principalmente nos tempos que correm, em que como refere Rui Tato Marinho, nos vemos embrenhados “numa certa agitação social”, praticamente encurralados “entre a espada e a parede”, tornando-se “difícil encontrar um balanço que seja justo e equilibrado para todos”.
Entretanto, e com a certeza de que tudo passa um dia, resta-nos o bom senso e discernimento, o profissionalismo e dever cívico de sermos a cada dia uma versão melhorada, de nós para os outros.
Referências e links:
Globocan 2018. World Health Organization https://gco.iarc.fr/today/data/factsheets/populations/620-portugal-fact-sheets.pdf
Marques da Costa P, Tato Marinho R, Cortez-Pinto H, Costa L, Velosa J. Twenty-Five Years of Increasing Mortality from Pancreatic Cancer in Portugal. Pancreas. 2020 Jan;49(1):e2-e3. doi: 10.1097/MPA.0000000000001446
Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. https://www.spg.pt/
Saúde Digestiva. https://www.spg.pt/saude-digestiva/
Núcleo de Gastrenterologia e Motilidade Digestiva (secção especializada da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia) https://nmd.com.pt/
Mcirobioma: We are them, They are us. Rob Knight. A Ted Talker.
Sofia Tavares
Equipa Editorial
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