Desde os primórdios da edição literária que a ilustração, em interconexão com o texto escrito, se revelou um instrumento de comunicação particularmente eficaz, nomeadamente numa vertente pedagógica. A imagem acrescenta potencialidades à comunicação escrita, através duma frutuosa relação signo escrito/signo pictórico.
Desde o códice antigo, depois medieval, até ao livro impresso, que aqui nos interessa, em particular o livro científico, que a história da ilustração no livro conheceu fases muito distintas, em que sucessivas gerações de autores, impressores e editores fizeram face ao desafio de ilustrar e representar a realidade de modos distintos.
É preciso ter em conta que o texto científico recorre a caracteres/símbolos específicos (do domínio das ciências exactas e outras) que poderiam colocar ao impressor dificuldades no plano técnico, que a necessidade de incluir representações, em escalas diversas, intercaladas no texto ou em páginas separadas, vem aumentar.[1]
Para ultrapassar estas dificuldades, a verdade é que os progressos da ciência e da imprensa se impulsionaram mutuamente, ao longo do período moderno. Autores como Elizabeth Eisenstein consideram que sem a invenção de Gutenberg não se pode conceber a Revolução Científica do século XVII.[2]
Vejamos dois momentos paradigmáticos da ilustração científica neste período, que poderemos encontrar na Biblioteca-CDI da FMUL.
[1] Numa observação curiosa, Augustus Morgan, um autor do século XIX, notava que, até que um matemático se tornasse impressor, seria difícil esperar que este problema se resolvesse. Em parte, ele far-se-ia sentir até ao advento da imprensa digital. Cf. Henrique Leitão, O Livro Científico nos séculos XV e XVI: Ciências Físico-Matemáticas na Biblioteca Nacional. [org.] Biblioteca Nacional: coordenação científica Henrique de Sousa Leitão; Lisboa, Biblioteca Nacional, 2004
[2] Cf. E. Eisenstein (2005), The printing revolution in early modern Europe. Cambridge University Press.
Os Elementos de Euclides
Os Elementos, de Euclides (ca 323 – 285 a.C.), constituem um texto fundamental da história das matemáticas. O impressor alemão Erhard Ratdolt, (1442–1528), activo em Augsburgo e em Veneza, resolveu de forma notável o problema de reproduzir diagramas matemáticos. É considerado um dos mais inovadores e conhecedores de entre os primeiros impressores. Ratdolt nasceu em Augsburgo, e trabalhou aí e em Veneza, tendo sido muito provavelmente o primeiro a usar a cor e a introduzir a folha de rosto. Para alguns a sua edição de 1482 dos Elementos constitui o mais soberbo livro científico impresso neste período, uma verdadeira obra-prima do ponto de vista técnico, onde imagem e texto se interpenetram. A Biblioteca-CDI da FMUL tem um exemplar dos Elementos, de 1589[3].
[3] Euclidis Elementorum lib. XV, accessit XVI de solidoru[m] regularium... / auctore Christophoro Clavio Bambergensi è Societate Iesu. - Romae : apud Bartholomaeum Grassium, 1589. - [16], 918, [1] p. : il. Cota: RES. 2326.
Na figura acima, a primeira edição impressa dos Elementos de Euclides, traduzida para latim por Abelardo de Bath, 1482.
O De Humani Corporis Fabrica, de Andreas Vesalius
Consideremos agora o caso da Medicina. No seu opus magnum, Vesalius (1514-1564) procurou os serviços dos melhores impressores, ilustradores e gravadores. Muitas das ilustrações do De Humanis Corporis Fabrica estão atribuídas à oficina de Ticiano (particularmente ao discípulo Jan Stephen van Calcar).
Foi a primeira vez que as ilustrações numa obra de medicina foram pensadas para complementar passos específicos do texto. Foram copiadas durante séculos e representam uma concepção renascentista da anatomia humana, sob todos os aspectos mais próxima da actual do que dos seus antecedentes medievais.
A Biblioteca-CDI inclui no seu acervo de obras raras (séculos XV a XVIII), esta obra de Vesalius[4], bem como vários textos clássicos de Hipócrates, Galeno, Amato Lusitano, Boerhaave e muitos outros.
Bibliografia Consultada:
PEREIRA, Maria Helena da Rocha (1993). Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 7.ª ed., vol. I
LEITÃO, Henrique (2004). O Livro Científico nos séculos XV e XVI: Ciências Físico-Matemáticas na Biblioteca Nacional. [org.] Biblioteca Nacional; coordenação científica Henrique de Sousa Leitão; Lisboa: Biblioteca Nacional
JENNY, Laurent. “Histoire de la lecture: Méthodes et problèmes”, on-line in https://www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/hlecture/hlintegr.html(acedido em Junho de 2020)
EISENSTEIN, Elizabeth (2005), The printing revolution in early modern Europe. Cambridge University Press
MIRANDA, Maria Adelaide, “Hipertexto e Medievalidade”, on-line in http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/amiranda/index.htm (acedido em Junho de 2020)
GARRISON, Daniel; HEST, Malcolm. On the Fabric of the Human Body: An annotated translation of the 1543 and 1555 editions of Andreas Vesalius’ De Humani Corporis Fabrica; online in https://wayback.archive-it.org/6321/20160901184031/http://vesalius.northwestern.edu/ (acedido em Julho de 2020)
Foram também consultadas várias obras, dos séculos XV a XVIII, que incluem o acervo da Biblioteca-CDI.
[4] Andrea Vesalii ... De humani corporis fabrici libri septem. - Basileae : per Ioannem Oporinum, 1555. - [14], 824, [50] p. : il. ; 2º. ULFM: IA/RES. 339
André Rodrigues
Área de Biblioteca e Informação