Em tempos de crise sanitária, económica e social, o país avançou destemido, escudando-se nas medidas preventivas para proteger a saúde pública, rompendo as barreiras do isolamento e retomando, progressivamente, a atividade nos mais diversos setores da economia. Foi-nos dada permissão para sair e voltar à rua. Dar o passo, no sentido literal, é em si um gesto de fácil execução. Mais difícil, porém, é recuperar a confiança no mundo lá fora, sustentada na segurança que se tornou um oásis distante para muitos portugueses, intimidados por um vírus que, apesar de invisível, existe connosco. Foi pedida calma e confiança no regresso aos hospitais, reforçando a existência de zonas diferenciadas e limitando áreas exclusivas ao tratamento de doentes com covid-19. Contudo, o desconfinamento parece não ter alastrado ao meio hospitalar, protelando assim o estabelecimento da normalidade numa era que muitos apelidam já de pós-covid.
A cerca de três meses de distância do início da pandemia em Portugal, procuramos saber como têm as especialidades médicas, em particular a Psiquiatria, retomado a normalidade na sua atividade, forçosamente interrompida, ou alvo de sérios constrangimentos, pela emergência da Covid-19. Assim, entrevistamos os Professores Daniel Sampaio, a quem a Psiquiatria e Saúde Mental no nosso país devem muito, especialmente pelo pulsar de novas ideias e avanços decisivos numa área fortemente ofuscada no panorama da saúde nacional, e Diogo Telles Correia, que em diferente ocasião nos elucidou de forma distinta e com grande clareza e precisão sobre os riscos e consequências da pandemia na psique. Com o rigor e profissionalismo que lhes são característicos, ambos apresentam a sua visão do momento presente, perspetivando o futuro da saúde mental em Portugal.
O Professor Doutor Diogo Telles Correia, Professor associado com agregação da FMUL, psiquiatra e psicoterapeuta, confirma-nos que “na área da psiquiatria e da saúde mental, como em todas as outras áreas da Medicina, houve um impacto sobre o seguimento dos doentes, sobretudo nos primeiros tempos da pandemia”, que se traduziu no “adiamento das consultas denominadas ‘não urgentes’, mas também na iniciativa dos doentes que evitavam dirigir-se aos hospitais”, em contexto de consultas de ambulatório e urgências, explica o Professor e vice-presidente da secção de Psiquiatria de Ligação da Associação Europeia de Psiquiatria, recordando que as urgências psiquiátricas sofreram uma quebra na procura durante o período inicial da pandemia.
Gradualmente, e à semelhança do que aconteceu com outras especialidades médicas, as consultas de psiquiatria “adaptaram-se a esta nova realidade e começaram a recorrer a técnicas de teleconsulta nos casos menos urgentes, e presenciais nos casos mais urgentes”, sendo que “as urgências psiquiátricas voltaram a receber doentes” à medida que o desconfinamento se tornou uma realidade.
Mas a pergunta que se impõe para muitos é podemos, ou não, regressar aos hospitais com segurança e tranquilidade? Os doentes estão, efetivamente, a retomar os devidos atos médicos? Diogo Telles Correia defende que os hospitais têm feito um grande esforço por retomar a sua atividade habitual, reforçando que “as estratégias de proteção dos doentes e dos profissionais de saúde estão agora muito mais ativas do que no início do surto, em que eram ainda desconhecidas as formas mais eficazes de prevenir a transmissão desta doença”.
No entanto, sublinha que “ainda há muito por saber sobre este novo vírus”, lançando a dúvida sobre uma nova suspensão da “retoma gradual da normalidade que hoje assistimos”, face a uma eventual “reativação do surto”.
Daniel Sampaio, Professor Catedrático Jubilado de Psiquiatria e Saúde Mental da FMUL, que contribuiu determinantemente para a promoção e atividade do Espaço S, afirma existir agora um lento retomar, “mas ainda persiste algum medo nas deslocações e nas consultas em presença”. Por outro lado, acresce que “os serviços públicos de Psiquiatria e Saúde Mental têm muitas carências (recursos humanos e instalações) e os privados não estão organizados na perspetiva da equipa de SM (médico, psicólogo, enfermeiro especialista, assistente social). A título de exemplo, convém saber que duas unidades importantes do Serviço de Psiquiatria do HSM/CHULN viram o seu espaço ocupado pela Covid-19 e continuam sem funcionar, deixando dezenas de doentes sem o seguimento adequado. Refiro-me à Unidade de Adolescentes e à Unidade de Projeto para Doentes de Evolução prolongada que estão sem instalações e sem funcionar. Este é um exemplo como a Psiquiatria e a Saúde Mental não são prioridade no SNS, infelizmente”, declara o Professor Daniel Sampaio, responsável pela direção do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria entre 2014 e 2016, tendo dedicado parte da carreira ao estudo dos problemas dos jovens e das suas famílias, através de trabalhos de investigação na área da Psiquiatria e da Adolescência, criando, no Hospital de Santa Maria, o atendimento de jovens com Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa.
Segundo Daniel Sampaio, “a pandemia deixou muitas pessoas com perturbação mental com menos possibilidade de serem bem assistidas. Apesar das consultas online realizadas, nada substitui uma consulta presencial”, assegura, revelando que o confinamento conduziu ao aumento de queixas relacionadas com a ansiedade (sobretudo insónia), agravando perturbações depressivas preexistentes.
Em retrospetiva, Diogo Telles Correia afirma ter assistido, ao longo deste período, a “uma fase inicial de grande medo por parte dos doentes e dos profissionais”, marcada por uma “queda muito significativa da procura do profissional de saúde mental (quer em consulta que em urgência), mas também por uma queda na disponibilização destes serviços”. Mas sinais positivos de mudança têm surgido nos últimos tempos, refere o Professor, constatando que “as pessoas estão a recorrer mais” aos especialistas em saúde mental, juntando-se ao leque de doentes antigos, “novos doentes que não conseguiram superar todas as consequências da epidemia”. “Vêem-se agora, também, as vítimas da situação económica e laboral resultante de todo este processo, nomeadamente muitos casos de depressão grave reactiva a situações de dificuldades económicas graves, e de aniquilação completa de projetos de vida e profissionais, que estavam a atingir um equilíbrio antes da pandemia”, explica Diogo Telles Correia.
E quais os principais receios dos doentes na atual conjuntura? Na opinião de Daniel Sampaio, os maiores receios estão relacionados com “o medo do contágio, de poderem infetar outras pessoas e do agravamento das suas situações psicopatológicas anteriores”, avança o psiquiatra e escritor, observando com particular atenção os dois grupos da população que têm reagido com maior dificuldade à pandemia. “Nos jovens há uma necessidade muito marcada de sair e estar com os amigos, porque isso faz parte do seu desenvolvimento psicossocial. Nos idosos persistem situações de isolamento muito preocupantes e a situação dos lares está longe de estar resolvida”, afiança Daniel Sampaio, um dos introdutores da Terapia Familiar no nosso país.
Por sua vez, Diogo Telles indica que “são vários os fatores que podem influenciar a saúde mental neste momento de pandemia”, sendo que os mais expressivos prendem-se com “o medo de ser contaminado”. “Um medo do desconhecido, do sofrimento, um medo da morte que é reactivado nesta circunstância. Este medo pode fazer brotar novas situações de ansiedade e reactivar ou agravar estados prévios”, explica Diogo Telles Correia, que atribui à ansiedade o protagonismo em muitos dos seus livros, compreendendo a realidade por detrás da mesma e como combatê-la.
Por outro lado, na sua opinião, o confinamento levou ao isolamento de determinados grupos, nomeadamente idosos e todos aqueles que vivem sozinhos, “o que pode precipitar também o sofrimento mental, porque o ser humano não existe sem contacto social”, reforça, citando o filósofo Martin Heidegger: “Nós somos aqui com os outros. E o isolamento, físico e simbólico, vem trazer sofrimento psíquico sob a forma de depressão ou ansiedade, por exemplo”.
Já no caso das famílias que cumpriram o período de isolamento em conjunto, “houve alguns conflitos familiares que ressurgiram e os pais chegaram a níveis de cansaço extremo, por exemplo ao acumularem teletrabalho com apoio escolar dos filhos”.
Para Diogo Telles Correia, é óbvio que este panorama de exaustão pode contribuir para o aparecimento ou agravamento de perturbações mentais, mas o risco maior recai sobre aqueles que contraíram a infeção por covid-19 e todos quanto lidaram de perto com o coronavírus, “devido ao sofrimento físico e psíquico relacionado com o novo vírus, bem como o medo da morte eminente”. Falamos de “casos que podem configurar situações de Stress Pós Traumático no futuro”, alerta o Psiquiatra, que aponta, ainda, para os riscos potencialmente elevados em todos aqueles que perderam familiares e não conseguiram fazer o luto. “São, também, outro grupo de risco especial”, afirma Diogo Telles, à semelhança dos profissionais de saúde, “sobretudo os da linha da frente”. “O medo da contaminação, agravado pela dificuldade inicial em ter acesso a EPI’s adequados, o excesso de trabalho, o presenciar tantas mortes e sofrimento dos doentes, o isolamento dos familiares, estão sem dúvida a precipitar doença mental neste grupo, e vão no futuro continuar a assolá-lo com estas questões”, assegura, entendendo que “um reconhecimento adequado pelos órgãos governamentais poderia apaziguar, minimamente, os médicos e outros profissionais de saúde tão sacrificados nesta luta”.
É, de facto, sobre os profissionais de saúde que recaem grandes preocupações neste momento. Numa entrevista recente ao jornal Expresso, o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, reconheceu que este período tem sido de “excessivo trabalho e pressão” para os profissionais de saúde, que passaram de uma situação de trabalho acentuada pelas muitas horas extraordinárias que já faziam para uma pandemia “com uma carga excessiva de trabalho”. Considera, por isso, urgente implementar um plano para a “recuperação mental, física e até familiar” de todos os profissionais de saúde, garantindo que “o número de casos de ansiedade, exaustão e depressão vai aumentar, e ainda com maior gravidade, já para não falar de outros riscos ainda mais sérios”, alertou, revelando-se seriamente preocupado com o pós-pandemia. “Enquanto decorre a batalha, está-se entretido, por assim dizer, o sentimento de que ajudar pessoas funciona como um estímulo. O pior será depois”, reiterou.
Foi, também, recentemente notícia o aumento do consumo de antidepressivos e ansiolíticos nos três primeiros meses deste ano. De acordo com o Diário de Notícias, foram vendidas mais 400 mil embalagens do que no mesmo período do ano passado, sendo que esta quantidade continua a ser superior à de outros países europeus, confirma Diogo Telles. “Ainda é cedo para encontrar justificações para tal aumento. No entanto, esta tendência
que acompanha a elevada prevalência de perturbações mentais, como as perturbações de ansiedade e a depressão, que são muito elevadas em Portugal, é algo que se verifica há já muito tempo”, afiança o Presidente da Associação Portuguesa de Psicopatologia, acrescentando que se alvitram várias razões para estas evidências, “mas não há ainda nenhuma explicação cabal”. “Curiosamente, as taxas de suicídio em Portugal são menos expressivas, comparativamente a grande parte dos outros países europeus”, refere Diogo Telles, questionando: “Será o povo português, o ‘povo dos brandos costumes’ e do ‘fado’, uma população sofredora mas resiliente? Que sofre mas persiste e luta?”.
O que é certo, adianta, é que tal como cita o DN, “a automedicação é muito elevada”. “Não conheço, mas era interessante verificar se as taxas de automedicaçao em Portugal são também superiores às dos outros países”, afirma Diogo Telles, explicando que “dentro da automedicação há diferentes tipos de doentes”. “Os que iniciam medicações psiquiátricas por iniciativa própria (e as vão arranjando através de amigos, ou na farmácia sem prescrição médica) e há aqueles a quem é inicialmente prescrita uma medicação por um médico, por um período limitado, mas que os doentes persistem em fazer os medicamentos, acabando por arranjar os mesmos sem receita médica, ou convencendo algum médico que as passe (‘porque dizem sentir-se bem com elas’). Este é um facto que nós, psiquiatras, verificamos na nossa prática clínica”, revela, garantindo que há muitos doentes a fazer medicação psiquiátrica sem acompanhamento médico.
Por seu turno, Daniel Sampaio não se mostra surpreendido com os dados publicados sobre o consumo de antidepressivos no nosso país. “Nos Centros de Saúde, onde poderiam ser tratadas as perturbações menos graves (ansiedade e depressão), não existem psicólogos nem enfermeiros de Saúde Mental que possam dar respostas diferenciadas no âmbito da psicoterapia. Mesmo nos Serviços de Psiquiatria, as consultas são muito espaçadas, não há acompanhamento regular das famílias e predomina a resposta mais rápida, que é prescrever um medicamento. Ora, existem estudos que demonstram que as perturbações minor podem ser tratadas nos cuidados Primários por intervenções breves de psicoterapia. Resta dizer que a utilização de ansiolíticos benzodiazepínicos deve ser diminuída, pelo risco de dependência associado”, alerta.
Sobre a possibilidade de irromper um novo perfil de doente ou novas problemáticas do foro psiquiátrico com a atual pandemia, o Professor Daniel Sampaio é peremptório em discordar, afirmando que “as situações são as mesmas”. “É provável que as doenças mentais graves (doença bipolar e esquizofrenia) permaneçam com números semelhantes, mas vai haver aumento das perturbações de ansiedade, perturbações depressivas e perturbações de stress pós-traumático. Os mais prejudicados são os idosos, que já estavam antes numa situação de vulnerabilidade, sem o apoio necessário. Precisamos de cuidar dos mais velhos das nossas famílias e de tentar manter ou melhorar as relações afetivas com todos os que são significativos para nós”.
Na opinião do psiquiatra e psicoterapeuta Diogo Telles Correia, é inevitável que as perturbações psiquiátricas aumentem em Portugal, bem como no resto do mundo, em consequência da pandemia de Covid-19. “Devido a todos os fatores que referi anteriormente, esta pandemia, como esperado, está a aumentar muito o sofrimento psíquico e, presentemente, estou certo que a prevalência das perturbações mentais aumentou. Contudo, penso que esta prevalência vai continuar a aumentar até anos após esta situação”, declara, apontando exemplos de epidemias anteriores, como a SARS ou a Gripe Espanhola, “em que até vários anos após o surto se mantiveram consequências a nível da saúde mental. O sofrimento psíquico trazido por esse período não terminou com a vacina”.
Daniel Telles reforçou, ainda, que ao impacto de um vírus desconhecido (e todo o medo que a ele se associa) e ao efeito de todas as condicionantes que sucederam (de que é exemplo o confinamento), acrescem “as consequências económicas e laborais, que estão e vão impactar, de forma considerável, a estabilidade mental de todos nós”.
Autor de um vasto leque de publicações científicas internacionais e vários livros técnicos que são referência obrigatória em muitas faculdades de medicina e psicologia em Portugal e no estrangeiro, Diogo Telles Correia destaca-se pelo trabalho desenvolvido no âmbito da divulgação de temas relacionados com saúde mental, nomeadamente vários livros para o público em geral, como são exemplo "Ansiedade nos Nossos Dias" e "Guia prático para vencer a ansiedade" (ambos sob a chancela da Bertrand).
O grande conhecimento e experiência que detém sobre a matéria, não obstante o carácter preditivo da presente análise, não deixam margem para dúvidas sobre a estratégia a implementar. Diogo Telles Correia entende que é necessário redobrar atenções e “disponibilizar apoio a nível da psiquiatria e saúde mental, a fim de minorar as consequências que o surto poderá ter, e vir a ter, sobre a população”.
Haverá um lado menos negro e que trouxe algo de positivo nesta pandemia? Diogo Telles Correia responde, citando o cardeal Tolentino Mendonça, na sua afirmação sobre a possibilidade desta epidemia ser o “.... Patamar para um relançamento do nosso estar no mundo”. “Esta travagem na incessante velocidade com que o Homem tem caminhado, pode servir para parar e refletir sobre as nossas prioridades individuais e do mundo, globalmente. O que é de facto importante para nós e para o mundo? Por que é que devemos lutar e viver?”, questiona por fim Diogo Telles, convidando-nos a reconsiderar a nossa relação connosco próprios, com os outros e com o Mundo, do ponto de vista global e ecológico.
Por sua vez, Daniel Sampaio, que referiu publicamente ter vivido o confinamento “com profunda inquietação e renovada esperança”, recorda-nos que em tempo de pandemia “teremos de encontrar novas formas de relacionamento, sempre com alguns cuidados”, nutrindo com especial atenção “as relações afetivas mais íntimas”. Como afirmou em entrevista ao Expresso quando se escreviam as primeiras páginas na história da pandemia que ditou o confinamento do país, “podemos sempre imaginar, sonhar, conversar. E ter a certeza que a epidemia vai passar, como a História nos ensina”. Para bem da saúde mental.
Sofia Tavares
Equipa Editorial