Chama-se Teresa Bandeira e é mais um dos elementos da Faculdade com longo vínculo ao campus. Professora Auxiliar Convidada de Pediatria e Regente da UC Introdução à Medicina da Criança, licenciou-se em Medicina em 1982. Enveredando pela Pediatria em 1986, em 2011, apresentava então o seu Doutoramento sobre a “Contribuição para o Estudo das Origens Pediátricas da Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica do Adulto. Bronquiolite obliterante pós-infecciosa”.
Atualmente Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria, é a Coordenadora na Unidade de Pneumologia Pediátrica dos Serviço e Departamento de Pediatria no Hospital de Santa Maria, CHULN. Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (2014-2016) e até ao ano passado igualmente Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia Pediátrica e do Sono (2017-2019).
Teresa Bandeira é ainda Responsável pelo Grupo de Trabalho para o Controlo de Exposição ao Tabagismo (sTOPPagE) da Sociedade Portuguesa de Pediatria.
Autora e coautora de 50 artigos científicos e 10 livros ou capítulos de livros, foi sobretudo pela sua dedicação à área das doenças respiratórias na criança nos levou finalmente a falar com a Professora, ainda que com uma barreira digital.
Num mês em que quisemos perguntar, “como estão algumas áreas médicas à volta da covid”, a verdade é que a Pediatria é uma das grandes áreas e das mais intrigantes. Por que razão as crianças continuam a “escapar praticamente ilesas” à grande vaga de covid que atinge os adultos e neste momento tantos jovens?
Uma conversa muito informativa e que sem conseguir ainda apresentar conclusões, mostra já vários caminhos de reflexão e com base científica.
Como têm sido as suas rotinas hospitalares num período tão severo como este?
Teresa Bandeira: A ausência de rotinas tem sido o marcador mais exigente nesta fase, que implica um exercício de adaptação a novas práticas e à tentativa de previsão e antecipação da situação, para melhor preparar os ambientes, quer para os profissionais de saúde, quer para a resposta adequada às crianças com doença respiratória e suas famílias. Em seguida, a necessidade de atualização permanente perante a dinâmica da informação publicada, a sua análise crítica e a implementação sensata no terreno. Por fim, o reconhecimento de que estamos todos a aprender a lidar com uma situação invulgar, não porque seja a primeira pandemia, mas porque a estamos a viver num Mundo online com acesso a meios de informação e inteligência artificial e isso exige um esforço de interpretação e adaptação desafiantes...
Sabemos que grande parte das respostas estão ainda por dar, mas o que tem feito as crianças escapar da covid-19?
Teresa Bandeira: As crianças representam efetivamente uma pequena proporção dos casos confirmados de doença por SARS-CoV-2 na atual pandemia. Luca Cristiani et al citam 2 artigos que descrevem o relatório do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças que referiu existirem apenas 416 casos pediátricos confirmados entre os 0 e 9 anos (0,9%), sem mortes e 549 casos entre os 10 e os 19 anos (1,2%) com uma morte (0,2%), num total de 44.672 casos confirmados.1 De forma sobreponível, um relatório italiano mostrou resultados semelhantes com 318 (0,5%) casos confirmados entre os 0 e os 9 anos e 386 (0,7%) casos confirmados dos 10 aos 19 anos. Neste relatório nenhuma criança foi internada em unidade de cuidados intensivos e não houve nenhuma morte relatada.(1)
A Presidente da Associação Espanhola de Pediatria, María José Mellado, refere que a COVID-19 afetou, a nível pediátrico, menos de 1% de todos os casos diagnosticados, ou seja, cerca de 1.400 crianças em Espanha, que representou 25% das crianças em internamento hospitalar no mesmo período. A experiência Portuguesa está também a ser registada e em breve a Sociedade Portuguesa de Pediatria a divulgará, mas os resultados serão muito provavelmente sobreponíveis às relatadas. Recentemente, Nicholas G. Davies et al sugeriram que a suscetibilidade à infeção por SARS-CoV2, em indivíduos com menos de 20 anos de idade, é cerca de metade da que ocorre em adultos com mais de 20 anos, e que os sintomas clínicos se manifestam em 21% das pessoas infetadas entre os 10 e os 19 anos de idade, aumentando para 69% (57-82%) em pessoas com mais de 70 anos. (2)
As razões para esta aparente benignidade na interação entre a criança e o vírus responsável pela atual pandemia são pouco claras. A chave pode estar na interação entre a resposta imunológica do hospedeiro, neste caso a criança, e os mecanismos patogénicos induzidos pelo vírus, quer pelas concentrações superiores de recetores ACE nos pneumócitos pulmonares das crianças, quer pela resposta da imunidade inata, quer ainda porque há um predomínio linfocitário constitucional nos primeiros anos de vida. Mas as causas reais do fenómeno de menor gravidade de expressão clínica da COVID-19 na criança, até ao momento, são ainda um mistério por resolver...(1)
Ainda assim temos um quadro de alguns casos de crianças cujo diagnóstico foi feito e onde se verificaram os mesmos problemas respiratórios. São perfis que já apresentavam alguma fragilidade?
Teresa Bandeira: As crianças com doença respiratória são, em regra, consideradas como grupos de risco acrescido, quer para as infeções virais, quer para tóxicos do ambiente, como p. exemplo a exposição ao fumo do tabaco. Mais uma vez existe algum desconhecimento relativamente ao risco concreto para estes doentes induzido pelo SARS-CoV-2.
As séries publicadas são poucas e incluem um número reduzido de crianças. Destas, numa das séries, a maioria (65%) apresentava sintomas respiratórios comuns, 26% expressava doença ligeira e 9% foram assintomáticos. Os sintomas mais comuns foram febre (50%) e tosse (38%).(3) Do que se sabe, as crianças são habitualmente contagiadas no seu ambiente familiar e apresentam sintomas com menor frequência e menos graves. No entanto, existem relatos de casos com apresentação mais grave, como pneumonia, com mortalidade residual, sobretudo nas séries provenientes de grupos da China. Também nos EUA, de acordo com os CDC, o nº de casos em crianças, no início de abril, constituía 1,7% do número total de infetados conhecidos, com 2% internados em UCI e 3 mortes. O Boletim de 17 de junho, da mesma entidade (Centers for Disease Control) apresenta uma taxa de infeção, confirmada laboratorialmente, de 7,4/100.000 nas crianças entre o ano e os 4 anos de idade e de 3,5/100.000 entre os 5 e os 17 anos. Asma, doença pulmonar crónica, doença neurológica e obesidade associam-se a maior frequência de internamento, mas a maioria das crianças internadas não possuía nenhuma situação clínica prévia conhecida (46,7%).
O que é surpreendente é a impressão, também local, do que foi descrito pelos nossos colegas num Hospital de Dublin. As ocorrências em urgência hospitalar, nos meses de março e abril, reduziram-se para metade, quando comparadas com os 2 anos anteriores, em todas as situações clínicas, incluindo as respiratórias.(4) A interpretação dos autores sugere que existe uma representação em urgência hospitalar de casos com maior gravidade, como verificada na distribuição dos códigos de cores, com redução significativa das “falsas” urgências, fatores que devem ditar uma aprendizagem a replicar no futuro.
Mas há 2 aspetos de extraordinária relevância que decorrem destes achados.
O primeiro é que a doença associada a SARS-CoV-2 é uma doença infeciosa de alta transmissibilidade por partículas inaladas através de gotículas e/ou aerossóis. Este aspeto exige a preparação de circuitos, estruturas e funcionalidades de proteção extraordinariamente exigentes, sobretudo nas situações que induzem a disseminação destes aerossóis como sejam as terapêuticas inalatórias e a ventilação. Adicionalmente, existe a necessidade de adaptação dos protocolos terapêuticos e dos dispositivos utilizados de forma a reduzir o impacto da transmissibilidade e a assegurar a manutenção das terapêuticas aos doentes. Estas adaptações, necessariamente efetuadas num curto espaço de tempo, são extremamente exigentes para os serviços e para os profissionais.(5)
O segundo, é que a criança é o centro da atividade de todos os pediatras e o foco principal do seu trabalho. Embora grande parte da preparação e resposta à pandemia do COVID-19 seja corretamente focada nos adultos, os pediatras devem assegurar que as crianças não são esquecidas. Os Serviços de Pediatria em todo o Mundo, e também localmente, têm adaptado circuitos e orientações diagnósticas e terapêuticas e as Sociedades Científicas têm emanado orientações específicas.
Adicionalmente é necessário reforçar que existem condições, a vários níveis, para que os Programas de Vigilância de Saúde Infantil e Juvenil e de Vacinação sejam cumpridos com rigor, e que as crianças com doenças ou situações crónicas mantenham o acesso e os cuidados que a sua situação clínica exige.
Finalmente, um dos grandes desafios antecipados pela Pediatria é o outono, perante a possibilidade de um novo surto de infeções por SARS_CoV-2, em associação com bronquiolite e gripe, pelo que é importante preparar, com tudo o que aprendemos, para esses meses.
Estudos recentes afirmavam que apesar da grande maioria das crianças escapar à covid-19 podiam, no entanto, ter danos colaterais de outras patologias como a doença de Kawasaky. Há bases a sustentar estas situações?
Teresa Bandeira: Como anteriormente se referiu, na criança, as doenças associadas a infeção pelo SARS_CoV-2 são ligeiras e com predomínio de manifestações respiratórias. Existem, no entanto, descrições consistentes de casos, embora raros, com síndrome hiperinflamatória e envolvimento de vários órgãos, denominados provisoriamente síndrome multissistémica inflamatória pediátrica associada temporariamente à infeção por SARS-CoV-2 (PIMS-TS), na Europa, e síndrome inflamatória multissistémica em crianças (MIS-C), nos Estados Unidos. Dada a prevalência variável de infeção por SARS-CoV-2 na Europa, a possibilidade de associação entre a doença de Kawasaki e o teste positivo para SARS-CoV-2 carece de confirmação. (6)
Referências bibliográficas usadas pela Professora Teresa Bandeira:
- Cristiani L, Mancino E, Matera L, et al. Will children reveal their secret? The coronavirus dilemma. Eur Respir J. 2020;55(4). doi:10.1183/13993003.00749-2020
- Davies NG, Klepac P, Liu Y, Prem K, Jit M, Eggo RM. Age-dependent effects in the transmission and control of COVID-19 epidemics. medRxiv. 2020:2020.03.24.20043018. doi:10.1101/2020.03.24.20043018
- Zimmermann P, Curtis N. Coronavirus infections in children including COVID-19: An overview of the epidemiology, clinical features, diagnosis, treatment and prevention options in children. Pediatr Infect Dis J. 2020;39(5):355-368. doi:10.1097/INF.0000000000002660
- Dann L, Fitzsimons J, Gorman KM, Hourihane J, Okafor I. Disappearing act: COVID-19 and paediatric emergency department attendances. Arch Dis Child. 2020;0(0):archdischild-2020-319654. doi:10.1136/archdischild-2020-319654
- Ladhani SN, Amin-Chowdhury Z, Amirthalingam G, Demirjian A, Ramsay ME. Prioritising paediatric surveillance during the COVID-19 pandemic. Arch Dis Child. 2020;0(0):1-3. doi:10.1136/archdischild-2020-319363
- Toubiana J, Poirault C, Corsia A, et al. Kawasaki-like multisystem inflammatory syndrome in children during the covid-19 pandemic in Paris, France: prospective observational study. BMJ. 2020;369:m2094. doi:10.1136/bmj.m2094
Joana Sousa
Equipa Editorial