Na sua personalidade espelha a realidade da sua profissão, “get to the point”. Objetiva e pragmática, isso não lhe tira a empatia natural mesmo para quem a conhece pela primeira vez. Sem floreados, gosta que a tratem por Luísa, usa uns óculos redondos que lhe dão uma graça conjugada com o cabelo curto que a torna tão sofisticada quanto feminina.
O gabinete onde nos encontramos para conversar parece ser reflexo seu, há umas quantas gerberas amarelas e laranja, uma bola de Pilates que a qualquer momento pode servir de assento e um livro infantil esquecido numa cadeira e nos faz perceber da boa relação com os sobrinhos. Entra uma luz boa que aquece a sua pequena sala, no entanto, há qualquer coisa acolhedora de dentro que não precisa da luz da rua.
Luísa Vaqueiro Lopes é Neurocientista e estuda a Neurobiologia do Envelhecimento enquanto Group Leader do iMM. Professora Convidada na Faculdade de Medicina, é elemento integrante do seu Conselho Científico, assim como apoiante do projeto GAPIC, onde recebe alguns alunos de Medicina no seu laboratório, ambos da mesma Faculdade.
Nasceu no Bombarral e estudou numa escola de província, diz que é “um produto da escola pública” e di-lo com orgulho, porque não precisou de extras em explicações, nem inglês especial. Foi-se construindo pelo seu empenho e mérito, não aceitando o rótulo de ser intelectualmente “mais pobrezinha” por vir de um meio mais fechado. Acha, aliás, que o facto de se viver num lugar mais circunscrito amplia a vontade de crescer e expandir as fronteiras do próprio cérebro. O cérebro é na verdade o que estuda e a desafia todos os dias. Ainda nos tempos de aluna de secundário já fazia as suas primeiras viagens pelo mundo cada vez que comprava a revista Time e a transportava consigo para todo o lado. Orgulhosa do seu país, mas não nacionalista, sempre entendeu que as fronteiras não deveriam ser fechadas porque fecham aquilo que mais a desafia, a mente.
Sempre quis ser Cientista, apesar de dividir a paixão com a Literatura que ainda a fez hesitar no caminho principal. Mas era a Ciência que lhe viria permitir ser parte de um conceito global, de um todo sem barreiras geográficas, ou intelectuais. Se ainda hoje se imaginar sempre circunscrita ao mesmo lugar, diz que fica claustrofóbica, porque precisa da liberdade de escolher. A liberdade essa fantástica característica intrínseca à Ciência e que se pode exercer em qualquer lugar do mundo.
Depois de se formar em Bioquímica na Faculdade de Ciências e fazer um Doutoramento “misto” em Neurociências entre a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a Universidade de Cambridge e o Instituto Karolinska em Estocolmo, completou o seu percurso académico com um Pós-Doc na Suíça. Diante das várias opções que lhe foram apresentadas, decidiu que não queria manter-se a fazer a investigação pura e dura em Neurociências, precisava de voltar a experimentar o diferente.
A Nestlé procurava, pela primeira vez, um Neurocientista. Enquanto multinacional, era preciso entender a relação entre o sistema nervoso entérico (sistema nervoso autónomo, rede de neurónios que integram o sistema digestivo) e o cérebro, ou seja, o gut-brain axis. Este eixo, entre cérebro e sistema digestivo, ia responder se as doenças influenciavam o cérebro e que proteínas podiam fazer a sua ligação. Foi lá que ficou nos seus primeiros 3 anos de carreira. Não sendo a Nestlé uma farmacêutica, permitiu que Luísa pudesse continuar a escrever artigos científicos, alimentando o seu CV e deixando aberta a porta para um dia poder voltar à Academia se assim o entendesse.
Defende que as pessoas devem sair da sua zona de conforto e mudar de país, de ambiente, porque se por um lado as valoriza profissionalmente, também lhes põe em perspetiva a competência do próprio país de origem. Mas voltar acabaria por ser uma condição que colocaria a si própria, no momento em que decidiu que queria ser mãe. Regressou com 35 anos, com uma certa ideia romântica de voltar ao país. Teve um filho, o Tiago, agora com 11. Olhando para o papel social da mulher, recorda agora a Suíça com menos agrado, por entender que ainda se comporta de forma machista perante a mulher, querendo que ela trabalhe apenas a tempo parcial.
Vencedora em 2018 do Prémio “Mantero Belard”, da Santa Casa da Misericórdia para as Neurociências, no valor de 200 mil euros, destacou-se com o projeto acerca “da disfunção sináptica que desempenha um papel crucial na doença de Alzheimer, uma vez que está na génese do declínio cognitivo.”
Quando lhe pergunto como consegue explicar a sua ciência às pessoas comuns como eu, explica que é esse o desafio, tornar a Ciência comunicativa e que, apesar de ser sempre de forma responsável, tem de chegar a todos e não só a uma elite. Talvez por acreditar que se deve aproximar a Ciência da comunidade em geral, e por ter facilidade de expressão, tenha entendido que devia aceitar o desafio da Produtora Endemol para fazer parte do júri do Programa “OS Extraordinários”, na RTP, onde avaliaria mentes “brilhantes”.
Apaixonada pela literatura mantém, ainda, o seu interesse pela escrita não científica, onde vai fazendo alguns artigos. Matérias à parte, afirma convictamente que a subjetividade literária não pode entrar nunca na escrita de um projeto científico. Já na ficção, a história conta-se de outra maneira. Foi a ficção da autora Filipa Martins que desafiou a Neurocientista Luísa a apresentar o seu livro, “Na Memória dos Rouxinóis”, que retrata a história de um matemático em confronto com as suas memórias. Recorda como ponto alto o momento que lhe permitiu juntar o útil da sua realidade, ao agradável de falar da escrita imaginária. Aliando a sensibilidade, que diz haver na ficção, ao pragmatismo que lhe exige a Ciência.
Mulher afirmativa e segura, sedimentada e reconhecida que está na Ciência e impulsionadora para abrir sempre novos caminhos, foram detalhes essenciais para a escolhermos neste mês.
Este lado de Cientista que se fundamenta sempre na razão acaba depois por a condicionar nas relações de afeto com os outros?
Luísa Lopes: Molda um pouco, ainda assim acho que os Cientistas são muito diferentes uns dos outros. Mas há um traço que nos é muito comum, somos muito curiosos e práticos. Há pessoas que me dizem, com muita graça, que nós a escrever e-mails vamos muito diretos ao assunto. E não é por falta de cortesia, mas na nossa vida somos pessoas práticas. E também o somos no trato, se é para fazer, faz-se, mas com pragmatismo e sem o tal preâmbulo do mail. Às vezes até tento ter um cuidado acrescido quando escrevo, acredita? Voltando à sua pergunta, acho que condiciona apenas uma parte. O ceticismo é uma dessas partes, porque somos pessoas que acreditam em números e em factos. Mas as relações interpessoais não se controlam assim e escapam ao controlo da Ciência felizmente. Sabe que muitas vezes me perguntam quando é que vamos conseguir ler a mente das pessoas. Eu respondo que espero que nunca! Ainda bem que continuamos a ter os nossos pensamentos privados. (Dá uma gargalhada)
Diria que é a única coisa que é privada em nós, o pensamento.
Luísa Lopes: Ainda bem que é assim. É importante que não se perca a sensibilidade e de não dizermos tal e qual como estamos a pensar as coisas, porque ajuda a manter a relação de empatia. É importante que se mantenha a empatia.
Empatia que parece que a Ciência também explica, não é?
Luísa Lopes: A empatia é uma adaptação biológica porque precisamos uns dos outros. Nós somos gregários. A empatia é recíproca e isso reforça as relações entre pessoas.
É impossível passar ao lado este mês do Dia da Mulher e do seu papel na sociedade. Sei que veio para Portugal para poder ser mãe e porque entendia que a Suíça não era o país certo para “acolher” uma mulher como a Luísa é. Quer falar-me um pouco desse período?
Luísa Lopes: Na Suíça uma mulher que tenha filhos não vai trabalhar a tempo integral. Tenho imensos episódios caricatos de tentar marcar consultas com o médico e eles quererem agendar para as 15h. Eu perguntava sempre, “mas não pode ser ao início da manhã, ou ao fim do dia?”. E os médicos ficavam muito espantados por eu estar a trabalhar até tarde.
Isto para a realidade em Portugal, mesmo há uns anos atrás, já não é aceitável. Até por uma questão de necessidade orçamental, as mulheres precisam de trabalhar. Já na Suíça a pessoa podia ganhar apenas 1/3 do que se ganha na totalidade, que já teria uma vida muito boa. Por isso eu compreendo quem opta por esta via, apesar de eu não a ter querido. Uma coisa é eu ter de tirar um dia porque o meu filho está doente, outra é interromper uma fase inteira. E a Ciência sempre teve essa vantagem para mim, porque nos dá flexibilidade de horários e podemos trabalhar a partir de casa.
Precisa de sentir constantemente a sensação de liberdade?
Luísa Lopes: Gosto de ser livre de escolher. E sei às vezes não somos assim tão livres. Mas somos mais livres do que pensamos. E a Ciência tem essa vantagem de nos dar uma liberdade enorme, eu posso fazer o que faço em qualquer sítio do mundo porque a minha formação é essa. A língua é o inglês e a terminologia é universal. Eu posso estar aqui, ou em Tóquio, ou Nova Iorque e estaria igualmente preparada porque a linguagem científica é global. Eu gosto imenso de viajar e não tenho qualquer problema em confessar que penso muito em ir um ano para fora, ir investigar. Encorajo muito, aliás, os estudantes a fazerem isso e a tirarem partido desta universalidade. (Para e sorri) Mas Lisboa é uma cidade fantástica para viver, mesmo para uma pessoa global como eu, esta cidade é ticks all the boxes, completa-nos a todos.
Ainda estou a pensar na Suíça e a fazer o contraponto com Portugal. Quando o seu filho era pequenino não ficou tentada, um segundo que fosse, em beneficiar de um regime laboral como o suíço? Conseguiu sempre gerir o tempo com relativa calma?
Luísa Lopes: Eu gosto muito de trabalhar e sei que não é uma posição muito consensual, mas gosto mesmo muito do que faço. E na minha fase inicial de mãe tinha, claramente, saudades de voltar ao trabalho. Portanto, quando voltei não senti qualquer problema. Mas precisei muito do tempo em que fiquei em casa. Até porque não sou muito de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Eu explico-me: eu gosto de fazer muitas coisas, mas não é ter de dar atenção a um bebé e ter de escrever, em simultâneo, um projeto. Não faria nenhum dos dois bem. Gosto das coisas separadas. No tempo em que estou no trabalho, estou mesmo no trabalho. No tempo em que estou em casa, estou mesmo em casa. Não misturo e é muito raro em trabalho fazer telefonemas pessoais. Gosto de compartimentar e de não ter distrações. E tenho aprendido a gerir este tempo. Sabe, quando o meu filho atingiu os 4 meses eu já me sentia pronta para voltar a ter a minha vida intelectual. E precisava.
Só é completa se tiver os dois papéis.
Luísa Lopes: Muito mais. Nós somos muito mais do que mães. E do que mulher até. São boas as facetas todas para quem as escolhe. Mas ser mulher, ser profissional, então isso completa-nos muito mais!
Conte-me como vem parar aqui ao iMM.
Luísa Lopes: Quando regressei tive outras propostas, noutras cidades do país, para ir investigar. Mas Lisboa tem um encanto especial e permitiu-me aliar a um bom Instituto de Investigação. Quis escolher um sítio que fosse dinâmico, porque sou uma pessoa muito impaciente por natureza. Penso que quando é para fazer algo, fazemos. Ou então desistimos. Mas ficar a pensar no que se poderia fazer, é algo que não faz parte do meu temperamento. O iMM tinha aquele entusiasmo pelo que era novo e havia grande esforço da Faculdade, do Centro Académico à volta. Então concorri a uma bolsa com um projeto e vim. E tive uma posição Ciência 2007 como investigadora da Fundação para a Ciência a Tecnologia (FCT) e fiquei no iMM. Correu muito bem. Comecei como Staff Scientist, o que quer dizer que fiquei como investigadora sénior, inserida num grupo, mas ainda sem o seu grupo próprio. Mais tarde vim a receber financiamento para ter a minha equipa e comprar equipamentos.
O financiamento de um investigador é o que lhe permite ir crescendo e adaptando o seu estatuto e criando autonomia para o que quer mesmo investigar?
Luísa Lopes: Sim, mas eu quando entrei já tinha essa autonomia. Entrei no grupo do Professor Alexandre Ribeiro. Entrei com duas condições, implementar a análise de comportamento animal e ter autonomia. E tive essa liberdade. Montámos uma sala de comportamento animal que não havia e onde se podem fazer coisas como avaliar a memória, a ansiedade, atividade motora e que se juntam muito a todos os modelos pré-clínicos para as doenças neurológicas que estudamos. Demorou algum tempo mas foi um marco aqui. Recordo com muito entusiasmo e consigo ainda rir imenso quando me lembro das peripécias que tivemos para montar uma piscina de mil litros.
Uma piscina?
Luísa Lopes: Sim, temos uma piscina de Morris que serve para fazer um teste clássico de avaliação de memória (teste de Morris). Normalmente para avaliarmos a memória dos ratinhos, a água da piscina tem de estar opaca, o animal não pode saber onde está a plataforma de escape. Ele anda à volta, à procura, precisamente para testar a memória. O que acontece é que Portugal é muito quente e as pessoas põem leite em pó para que a água fique branca. E então nós fazíamos isso… Pusemos leite em pó na piscina e ainda estávamos no processo de otimização em que pedíamos, aos colegas que já tinham implementado o sistema, ajuda para seguirmos os mesmos passos. Como não dava para estar sempre a encher a piscina com nova água porque eram mil litros e queríamos poupar, fizemos os testes de memória e deixamos a água e o leite em pó durante um fim-de-semana… Quando regressámos na segunda e eu cheguei à piscina, aquilo era uma nuvem de fermentação, devido ao calor e com os excrementos dos ratinhos, acidificou. Havia bolhas de fermentação por todo o lado, de tal forma que pareciam de cerveja. (Ri) E o cheiro? Era nauseabundo. E pior, eu estava muito grávida. Pior ainda. (Ri) Mas havia mais, estávamos prestes a receber uma delegação de Harvard.
O que se chama o timing perfeito.
Luísa Lopes: Estava tão envergonhada. Na altura fui a correr de carro comprar uma bomba de piscinas, para despejar tudo rapidamente e colei na porta um papel a dizer, “under maintenance”. Assim ninguém entrava e não viam o disparate que foi. (Ri)
E conseguiu distraí-los?
Luísa Lopes: Conseguimos despejar a piscina toda, arejar o ar. Todos ajudaram imenso. E claro que agora usamos o que se usa nos países mais quentes, tinta não tóxica. Agora a sala é climatizada. Assim foi o princípio do meu grupo e que marcou o princípio do que nós queríamos fazer.
E que era objetivamente…
Luísa Lopes: Está muito ligado ao envelhecimento, são os sinais precoces de envelhecimento. Conseguirmos assinaturas neuronais desse processo. Começámos com alguns modelos de stress e agora estamos a fazer muito trabalho com a disfunção circadiana ligada aos problemas de sono. Tentamos perceber se quem trabalha por turnos pode ter uma maior suscetibilidade aumentada à demência. Há muitos dados que já mostram que sim, mas são dados correlativos e que não mostram se há uma causa / consequência. Há vários estudos que sugerem que os enfermeiros, em turnos rotativos por exemplo, podem ter, a longo prazo, aliado às alterações cognitivas a curto prazo, maior vulnerabilidade para demência. Mas não há nenhuma prova. Estamos a querer fazer isto com os animais com os quais conseguimos estabelecer a causa e consequência. Induzimos estes modelos em laboratório e tentamos perceber qual a resposta da função neuronal a longo prazo.
Terá depois aplicabilidade humana?
Luísa Lopes: Temos alguns estudos mais translacionais, mas não temos nenhum aplicado. Este estudo, que foi premiado pela Santa Casa, tem uma parte com amostras humanas. O que tentamos fazer é, sempre que encontramos uma pista e um mecanismo, validamos em modelos humanos, senão perdemos o sentido do que estamos a fazer. E aqui estamos no lugar ideal (CAML). Temos o Biobanco, o Hospital (Santa Maria) e os colegas clínicos. O tema é que o envelhecimento pode ter pistas muito importantes para perceber melhor a doença de Alzheimer. Para tal, estamos a estudar a função das proteínas das sinapses, ou seja, os neurónios ao longo da vida. As pistas que temos são em animais, mas depois há resultados em humanos que mostram que as pistas também podem ser semelhantes. Então, o que tentamos perceber é se uma proteína ou mecanismo alterado nos animais, depois vai aparecer também nas secções humanas. Obviamente e porque não temos acesso ao cérebro vivo, temos apenas acesso a secções de biópsias (do Biobanco e Neuropatologia). Podemos verificar se nas pessoas idosas esta proteína também aparece e isso é logo sinal que o nosso mecanismo é exequível de se extrapolar.
Os biomarcadores não são palpáveis numa ressonância então?
Luísa Lopes: Não. Estes em concreto, não. Ainda… Só no sangue, ou no liquor (liquido cefalorraquidiano), ou mesmo em secções. Sobretudo na sua dinâmica, em tempo real. A ressonância magnética funcional ainda não tem resolução ao nível sináptico. Mas este projeto da Santa Casa vai permitir-nos comprar equipamento para registar neurónios de forma muito fina. E há uma tecnologia que permite que a partir de células da pele de fibroblastos, de doentes vivos, e através de uma biópsia (sempre algo invasivo), é possível produzir neurónios e ver a sua função. Isto é já um grande avanço em relação às células estaminais. Nesta nova tecnologia de indução direta já conseguimos induzir neurónios diretamente sem perder a assinatura do seu envelhecimento. E este Prémio também nos vai permitir implementar a técnica e validá-la. Dou um exemplo concreto, se pegarmos em 3 ou 4 doentes com idades diferentes e formos induzir neurónios a partir das suas células, será que a função neuronal está de acordo com o que estamos a ver em termos cognitivos? Esse é um dos desafios do projeto.
E pelo que entendo reforça-se aqui a importância de um CAML que reúne assim um pouco de tudo, investigação, com a clínica e dados de doentes.
Luisa Lopes: Certíssimo. E já temos autorização do Biobanco para fazer testes em células de doentes que fizeram biópsias, por outras razões, e nós aproveitamos essas células para as estudar. Essa parte é feita em articulação com a Neurologia. Precisamos que sejam os nossos colegas clínicos a analisar os processos clínicos dos doentes e que sejam eles a fazer a correlação com o que depois analisamos. É precisamente pela ligação do CAML e a sua importância e porque queremos que cresça ainda mais, que eu e a Cláudia Faria (investigadora e neurocirurgiã) nos lembrámos de iniciar o ciclo de encontros “Neuroses”. É engraçado porque nos conhecemos melhor quando fomos fazer apresentações no Fundo João Lobo Antunes, ela sobre investigação clínica e eu da parte da investigação mais fundamental.
Só se conheceram bem por ocasião da apresentação do Fundo?
Luísa Lopes: É verdade. Porque eu estava a trabalhar mais com as pessoas da Neurologia e Psiquiatria, e menos com a Neurocirurgia. E ao conhecermo-nos percebemos da importância de ter mais projetos translacionais. Ou seja, unir o talento das perguntas clínicas, com a nossa capacidade de investigadores fundamentais de fazer modelos. E daí nasceu esta série de Encontros em Neurociências de Translação. Vamos estar sempre à volta de uma pergunta clínica relevante e depois, todos, clínicos, investigadores e estudantes de pós-graduação, vamos juntar-nos e perceber o que conseguimos melhorar, ou não. Queremos todos avaliar o que conseguimos fazer e temos noção que temos aqui muito conhecimento reunido. Se por um lado temos muitos clínicos com perguntas relevantes, por outro temos investigadores com muito know-how de implementação de modelos. Nós testamos a pergunta clínica.
Será que ainda faltam estabelecer as pontes dinâmicas entre a clínica e a investigação?
Luísa Lopes: Quem faz clínica em Portugal, tem muito pouco tempo para investigar (salvo algumas exceções) e ainda assim faz perguntas, só que percebemos que nem sempre essas perguntas nos chegavam. Os nossos colegas clínicos, ao ler os nossos artigos, fazem perguntas com muito sentido e que nós ainda não tínhamos relacionado por não sermos da clínica. Assim como nós fazemos perguntas que, muitas vezes, não conseguimos validar se não tivermos a colaboração dos clínicos. O encontro que aconteceu dia 12 deste mês mostrou o que é possível acontecer quando nos juntamos. Por vezes por falta de tempo, outras porque não nos encontramos, podemos passar ao lado de respostas muito úteis. Esta ideia destes novos seminários veio muito na sequência da Santa Casa.
Receber este Prémio fez com que eu recebesse os parabéns de vários colegas da área clínica e em termos de CAML este é um daqueles Prémios que tem muito significado para a comunidade. Uma das pessoas com quem falei a seguir foi o Professor José Ferro (Diretor da Clínica Universitária de Neurologia e Presidente do Conselho de Escola da FMUL). Ele incentivou-me a mantermos contacto e o que eu precisasse da parte da Neurologia, ficariam ao dispor, com amostras, estudos que decorrem. Senti que devíamos conversar mais vezes e bastaram-me 15 minutos, em que trocámos ideia de projetos, para perceber que nos devíamos reunir periodicamente. Ou seja, criar com ele também uma rotina que só não é mais assim porque o tempo não nos chega para tudo.
O difícil, por vezes, é fazer a pergunta simples?
Luísa Lopes: Tenho muita dificuldade em fazer as perguntas simples porque gosto muito da Fisiologia integrada e acho sempre que o cérebro está ligado ao corpo, o corpo à dieta, depois ainda há a predisposição genética, o sistema imunitário. Ou seja, muita coisa interligada dentro da área das doenças neuro degenerativas. No laboratório, muitas vezes as perguntas simples são as mais recompensadoras. E foi precisamente uma pergunta simples que nos levou ao Prémio – “Como é que a proteína precursora do amilóide está no envelhecimento? E será que a sua função normal de envelhecimento nos dará pistas para perceber o que acontece na neuro degeneração?”. Nós temos muita urgência em encontrar esta resposta porque se tem falhado muito nos ensaios clínicos. Falhamos porque ou não sabemos o suficiente, ou temos que repensar a forma de descobrir novos modelos. Cada vez mais a integração de todas as áreas é importante. Agora também há que dizer que nenhum de nós tem acesso ilimitado às células, às sinapses do cérebro vivo e isso explica a dificuldade de estudar e analisar em tempo real as coisas.
Como é que uma pessoa que se descreve como impaciente lida com os timings calmos, ponderados, mas demorados da Ciência?
Luísa Lopes: A impaciência é para que as coisas aconteçam, não é o mesmo que atalhar caminho. A Ciência tem que ser muito controlada e eu aí sou muito rigorosa no controlo, ou seja, acho que um resultado, para ser mesmo um resultado, temos de ter a certeza que não é um artefacto. Mas a impaciência ajuda no sentido da concretização. Não podemos admitir que se falhe, ou não se faça, por preguiça. A ideia de nos acomodarmos porque estamos em Portugal, ou porque não temos dinheiro, ou porque não nos apetece, impacienta-me. Na minha vida tenho a sorte de estar rodeada de pessoas que trabalham muito, quer no Hospital, quer aqui no iMM, como na Faculdade e eles encorajam-me a lutar sempre contra o desânimo. Sabe que eu não gosto que me avisem de um falhanço à partida, acho que podemos pelo menos tentar. Agora, claro que não vou testar algo de uma certa forma, se vários colegas tentaram e viram que não dava certo. Mas podemos arranjar outras formas. Depois há outro lado ainda que não gosto, quando há um estudante que fica frustrado porque tentou uma técnica e ela falhou, mesmo que tenha estado a tentar durante 6 meses. Temos sempre de arranjar outras formas de pensar e resolver. É esse o nosso papel. O nosso objetivo não é ter razão individual, mas avançar na Ciência. E nada se faz sozinho, o espírito é muito partilhado e mesmo quando criticamos os métodos ou resultados de um investigador, queremos que aquilo avance, porque ganhamos todos com isso. A Ciência é por isso um verdadeiro exercício de humildade e paciência, todos os dias. Há que dizer ainda que não se pode esperar pelo medicamento milagroso que venha ajudar ao mesmo tempo todas as doenças do cérebro, isso não vai acontecer! Mas esta urgência de esperar por resultados faz pressão para tentarmos encontrar o maior número de soluções.
Dos alunos com quem tenho falado, muitos mostram grande preocupação pelo futuro a curto prazo, se conseguirão entrar nas áreas de especialidade que querem, ou mesmo que não o façam que alternativas profissionais podem ter diante deles. E tenho a sensação que a Ciência ainda lhes é um tema distante e pouco explicado. Comunicam a Ciência o suficiente aos alunos para que eles saibam o que escolher?
Luísa Lopes: Como faço parte do Conselho Científico da Faculdade, neste momento estamos a trabalhar muito nesse aspeto. Estamos a avaliar que haja mais cadeiras optativas de investigação, preocupa-nos oferecer mais contacto com a investigação. Temos o GAPIC a assumir este esforço muito grande e sabe que depois recebo mails de alunos GAPIC que já passaram por aqui e agora estão no internato e escrevem-me a dizer que lhes foi muito útil praticar o método científico. Mas depois há problemas a uma escala nacional e que é conciliar a clínica com a investigação, muitos, ao ter de escolher entre uma e outra, escolhem a clínica. E estamos a tentar mudar isso, com o estatuto interno do doutorando de forma a que, as pessoas que façam doutoramento não sejam prejudicadas na carreira clínica e vice versa. Há portanto uma preocupação que se tenta transformar em medidas práticas.
Como é que olharam os seus pares e as pessoas em geral para o seu papel de jurada no programa da RTP, “Os Extraordinários”? (nota: o programa era um concurso de mentes brilhantes que têm capacidades cognitivas acima do comum)
Luísa Lopes: Sabe que as pessoas têm sempre a ideia que o Cientista é alguém feio, meio carrancudo e eremita. Quando as produtoras me conheceram comentaram que achavam que os cientistas eram pessoas estranhas, menos cuidadas de aparência e tímidas. (Ri) Isto significa que há um problema de imagem que temos de ajudar a mudar. De início hesitei em aceitar porque achei que implicava enorme responsabilidade aparecer num programa, porque tinha medo da sua credibilidade. Então fui ver o formato e pareceu-me que, sendo familiar e de divulgação científica, se enquadrava naquilo que eu podia fazer. Depois sou muito a favor da comunicação da Ciência, ela é muito importante. Importante para as pessoas perceberem o que fazemos, para se perceber porque é que a Ciência demora tanto tempo e também para a comunidade científica apoiar a investigação. Para que percebam a nossa importância, nós temos que a comunicar e temos de nos mostrar, desde que seja de uma forma credível. E por acréscimo eu gosto de comunicar, como tal posso fazê-lo a bem da Ciência em geral. Gostei da experiência, conheci concorrentes muito interessantes. Claro que eu tive de ter algum cuidado na minha linguagem, para que todos me entendessem e assim alguns comentários meus foram editados, porque achavam que eu explicava tudo demais. Tivemos a ideia de ter um cérebro no programa, para explicar as áreas cerebrais. O programa pagou-o e ofereceu-mo e está aqui para os alunos de Neurociências. Os meus colegas neurocientistas foram simpáticos e generosos no seu peer-review comigo. O benefício foi maior do que o meu receio em participar. Acho que democratizámos um pouco mais a Ciência e um dos públicos que mais se ligou a nós foi o das crianças. A partir daí, quando ia buscar o meu filho à escola, várias crianças me reconheciam e vinham falar comigo para lhes falar mais do cérebro. Vários me passaram a falar do hipocampo como se fosse já dado adquirido e isso foi bom sinal. Depois recebi muitos mails generosos de adultos que me iam contactando com novas ideias e casos de outras pessoas. Foi muito positivo.
Quando Luísa Lopes materializa os seus pensamentos pensa em fortalecer a investigação translacional e espera poder ensinar os modelos da Neurologia e Psiquiatria experimentais, matérias que já aplica em laboratório.
Na investigação tentará continuar a descodificar a assinatura do envelhecimento. E apesar de dizer que não faz planos a longo prazo, tem a vontade de ir um ano para fora, investigar e estudar mais, voltando à bancada do Laboratório. Com ela levará o seu filho a quem foi ensinando que se pode amar ao mesmo tempo que se dá asas para se partir.
Recentemente recebeu uma posição de estímulo individual da FCT o que permitirá financiar o seu salário no iMM durante mais 6 anos. Como tal e para já vai vibrando com o seu dia-a-dia no iMM e crescendo em conhecimento, enquanto lidera a sua equipa. Com os alunos vai inovando sempre na capacidade de lhes ensinar algo novo e diferente, fomentando-lhes aquilo que sempre a moveu, a curiosidade inesgotável do que o seu próprio cérebro ainda não tem resposta.
Joana Sousa
Equipa Editorial