
Os desafios do envelhecimento
A Medicina e a Investigação científica modernas têm permitido desafiar os limites da longevidade humana com um sucesso sem precedentes. A esperança média de vida à nascença em Portugal, em 1920, seria de apenas 35,6 anos. Em 2019 chega aos 80 anos. Esta revolução começou no século XIX, com a melhoria das condições nutricionais e de sanidade, seguida da descoberta dos antibióticos que permitiram debelar infeções e, mais recentemente, com os progressos na medicina cardiovascular e do cancro.
Esta capacidade de desafiar a biologia a par com a diminuição da natalidade, nos países ocidentais, resulta numa sociedade mais envelhecida com um desafio novo pela frente: enfrentar doenças para os quais o envelhecimento é o principal factor de risco, nomeadamente as doenças neurodegenerativas, nas quais se incluem a doença de Alzheimer e outras demências.
O número de pessoas com demência duplica a cada 20 anos, estimando-se que possa chegar aos 75 milhões em 2030 e aos 131 milhões em 2050, sobretudo nos países em desenvolvimento. Isto significa que uma em cada 6 mulheres e um em cada 10 homens com mais de 55 anos deverá viver com demência. A mais comum (e uma das mais conhecidas) das demências é a Doença de Alzheimer que representa mais de 60% das existentes, seguida da demência vascular e de outros tipos.
A doença de Alzheimer foi descrita em 1906 pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer que, no decorrer de uma autópsia, observou no cérebro lesões muito particulares, com as quais nunca se tinha deparado. Sabemos hoje que é uma doença degenerativa, na qual os neurónios do cérebro se perdem de forma gradual e progressiva, da qual existem duas variantes. A mais preponderante é a denominada de esporádica, para a qual não se conhece a causa e que afecta sobretudo pessoas com mais de 65 anos, e representa mais de 95% dos casos de doença. A segunda, mais marginal, com uma incidência de menos de 5%, tem origem genética e pode apresentar-se mais cedo nos indivíduos portadores dos genes envolvidos.
A doença de Alzheimer não tem cura, embora seja tratável por forma a gerir os sintomas, que são progressivos e que incluem desorientação espacial e temporal, incapacidade de realizar tarefas outrora rotineiras, perda de capacidade de decisão e alterações de comportamento. Atualmente, há dois tipos de medicamentos aprovados especificamente para a doença que têm demonstrado alguma eficácia nos sintomas cognitivos, mas não existe ainda nenhum fármaco que retarde ou impeça a progressão da doença.
Esta patologia é caracterizada pela agregação anormal da proteína Tau e do péptido amilóide-beta que se acumulam nas células nervosas - neurónios - do cérebro. Equipas numerosas, com especialistas de renome mundial têm trabalhado incessantemente no sentido de travar a progressão da doença. E é uma batalha que se tem feito em várias frentes. A mais promissora e mais avançada, em termos clínicos, baseia-se na imunoterapia, utilizando anticorpos anti-Tau ou anti-amilóide beta no intuito de reduzir ou mesmo remover os agregados dos cérebros dos doentes e assim retardar a progressão da doença e o declínio cognitivo. Esta estratégia tem sido marcada por uma sucessão de imprevisíveis sucessos e fracassos nas diversas fases dos ensaios clínicos e aguarda-se com expectativa um desfecho favorável. Muito recentemente, foi aprovado nos Estados Unidos, mas não na Europa, um novo medicamento baseado em imunoterapia, mas a sua eficácia no declínio cognitivo e sobretudo a capacidade de alterar a progressão da doença são muito limitadas, e a avaliação da razão risco/benefício para os pacientes tem gerado inúmeras controvérsias.
Outras abordagens têm-se baseado na adaptação de novos fármacos anti-envelhecimento, tais como os senolíticos ou alguns factores presentes no sangue, que têm demonstrado ser eficazes a prevenir a senescência (o processo de envelhecimento celular) noutros órgãos, a uma aplicação eficaz no sistema nervoso central, e nomeadamente para prevenção do envelhecimento cerebral.
Outros factores, como as alterações dos sistemas imunitário e vascular que ocorrem no cérebro como consequência do envelhecimento e que sabemos contribuírem para a demência, têm mais recentemente merecido o foco dos cientistas.
Há outras estratégias merecedoras de destaque, nomeadamente da nossa equipa de investigação, que se focam nas alterações sinápticas na doença. A sinapse é a zona de comunicação entre dois neurónios, de intensa actividade celular e eletroquímica. No envelhecimento em particular, sabemos que há alterações nos padrões de disparo das sinapses associadas a alterações moleculares, com aumento de algumas proteínas e decréscimo de outras. Estas alterações, embora subtis, são suficientes para ter impacto na função cognitiva, embora de forma muito gradual. Enquanto a neurodegeneração pressupõe desaparecimento progressivo de neurónios, nesta fase mais precoce não ocorre ainda morte neuronal, mas já há comprometimento da função cognitiva. A nossa equipa tem estudado a função destas proteínas e de que forma poderão aumentar o risco para a doença de Alzheimer.
Uma das caraterísticas destas alterações muito iniciais é o facto de serem reversíveis: há vários estudos que mostram que alterações semelhantes, por exemplo, como consequência de stress intenso e que são recuperáveis, tanto em termos de função cognitiva em pacientes, como em morfologia e estrutura de sinapses demonstrado em modelos animais. O que nos permite prever que se compreendermos como se desencadeiam estes fenómenos, possamos intervir de forma precoce, por forma a evitar a morte neuronal, esta sim irrecuperável.
Um dos grandes desafios das Neurociências tem sido de descobrir novas terapêutica para a doença de Alzheimer. O processo é complicado, uma vez que a progressão da doença é lenta, o que implica ensaios clínicos mais demorados do que gostaríamos. No mesmo sentido, a monitorização dos efeitos secundários é cara e difícil, e os riscos de efeitos secundários são altos. Além disso, o acesso às células do cérebro humano vivo, de forma não-invasiva é, ainda muito limitado, ao contrário do que é tecnicamente possível fazer com células da pele ou do sangue.
Perceber a doença em fases muito iniciais tem sido também a motivação para o desenvolvimento de tecnologias de diagnóstico precoce, como a procura de marcadores no sangue e líquido céfalo-raquidiano, ou por imagiologia, a criação de modelos de neurónios humanos a partir de células estaminais derivadas de sangue ou pele de pacientes, ou ainda mais recentemente, a tecnologia de criação de organoides - modelos tridimensionais que reproduzem a anatomia e circuitos cerebrais de forma mais fiel, e permitem estudos com aplicabilidade mais robusta.
Tem havido progressos consideráveis nas técnicas de imagiologia cerebral, sobretudo com o aparecimento da ressonância magnética funcional (do inglês functional magnetic ressonance imagingou fMRI), capaz de detectar variações no fluxo sanguíneo em resposta à atividade neuronal. Pela primeira vez, consegue-se ter acesso ao cérebro integral em funcionamento, através da deteção de alterações na activação de zonas cerebrais especificas dos pacientes, quer em repouso, quer no decorrer de tarefas de memória, de reconhecimento facial, audição de música, leitura, jogos, etc. Técnicas anteriores como o Electroencefalograma (EEG) já permitiam detectar alterações de actividade elétrica cerebral, sendo cruciais no diagnóstico de epilepsia, alterações de sono, ou efeitos da anestesia, mas a análise é feita sobretudo na zona cortical (superfície cérebro) e sem a resolução anatómica do fMRI. A combinação da informação obtida através do fMRI com a do EEG tem possibilitado a compreensão do funcionamento do cérebro a uma velocidade nunca antes possível. A par desta informação anatómica e funcional, as técnicas de emissão de positrões (PET; do inglês positron emission tomography) permitem monitorizar e quantificar marcadores cerebrais, nomeadamente o péptido beta-amilóide e a proteína Tau no cérebro de pacientes, contribuindo de forma instrumental para avanços significativos na compreensão da progressão da doença e na monitorização de eficácia terapêutica de fármacos em ensaios clínicos.
A par disto, sabemos bastante sobre os factores de risco da doença, que vão claramente para além do já referido envelhecimento. Uma deficiente qualidade do sono, o isolamento social, o sedentarismo intelectual e físico, traumatismos ou as doenças cardiovasculares são riscos estabelecidos em vários estudos. Prova disso é que ensaios como o FINGER na Finlândia, que acompanhou pessoas com risco de demência e às quais fez seguir um plano de exercício físico, dieta e interacção social durante dois anos, tem demonstrado ser surpreendentemente eficaz na redução do risco e está a ser adoptado noutros países. Há equipas de neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa/CHLN a aplicar esta abordagem e a avaliar a sua eficácia em demência vascular, por exemplo.
Mas há também factores protectores. A nossa equipa tem estudado os mecanismos pelos quais a cafeína, cujas propriedades pro-cognitivas estão associadas a menor risco de demência e de doença de Alzheimer, actua. Estudos epidemiológicos, replicados em vários países, mostram que o consumo de 2 a 3 cafés por dia diminui o risco de forma significativa, sobretudo em mulheres. Neste momento estamos a explorar esta linha de investigação, na esperança de criar análogos da cafeína mais eficazes e com menos efeitos secundários que possam constituir uma alternativa terapêutica viável.
A Medicina Moderna conquistou-nos anos de vida e trouxe novos desafios no combate às doenças do envelhecimento. A nossa esperança é de que, tal como até agora, a ciência contribua para os ultrapassar e vença a batalha em direção a uma longevidade saudável.
Luísa Lopes
Professora associada convidada com agregação da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL);
Investigadora principal no Instituto de Medicina Molecular (iMM).
Fontes:
Alzheimer Portugalhttp://alzheimerportugal.org/pt/
Alzheimer UK: https://www.alz.co.uk/
Projeto FINGER-AD: https://thl.fi/en/web/thlfi-en/research-and-expertwork/projects-and-programmes/finger-research-project
Pordata https://www.pordata.pt/
Nota: A autora optou por escrever o texto com o antigo acordo ortográfico.