Hoje é dia Mundial da Espondilite Anquilosante
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pintura
Just a Reflection by Eleanor Slorach

Reflexão sobre uma lombalgia. A propósito do Dia Mundial da Espondilite Anquilosante

Nada melhor do que a história de vida de Muhammad Khan, reumatologista americano de origem paquistanesa, para melhor entendermos as dificuldades por que passam frequentemente os doentes com espondilite anquilosante. Aos 12 anos de idade Khan iniciou dores lombares e da bacia, com rigidez matinal marcada. Pouco depois os sintomas progrediram para a caixa torácica. Os médicos, no Paquistão, estavam com dúvidas diagnósticas e acabaram por assumir um diagnóstico presuntivo de tuberculose e o jovem Khan foi tratado como tal durante 1 ano. Por não existir qualquer melhoria foi feita uma tentativa terapêutica com mel de abelhas endovenoso, cujo racional neste momento nos escapa claro completamente... Só aos 18 anos, enquanto estudante de Medicina, nos anos 60, é estabelecido o diagnóstico correto de espondilite anquilosante e é tratado com o primeiro fármaco que sentiu como eficaz, a fenilbutasona. Por curiosidade, entretanto, este anti-inflamatório foi retirado por toxicidade medular, sendo apenas utilizado em medicina veterinária.

O diagnóstico tardio e a escassez de opções terapêuticas, que foi uma realidade desta doença até ao final do século 20, fez com que Muhammad Khan tenha tido o destino de muitos doentes com Espondilite Anquilosante. Progressão da inflamação, estabelecimento de pontes ósseas vertebrais com anquilose da coluna em posição cifótica, restrição da expansibilidade torácica e destruição de articulações de carga, como as coxofemorais, com necessidade de colocação de próteses articulares. O Dr. Khan, também um pintor amador, fez um autorretrato, dominado por um coluna vertebral e bacia deformadas, numa composição também com letras do seu nome em inglês e árabe, em que destacou os conceitos de fragilidade e resiliência.

Claro que Khan foi particularmente penalizado por ter nascido numa área geográfica praticamente sem reumatologistas e seguramente sem reumatologistas pediátricos, que poderiam ter feito o diagnóstico precoce e ter ajudado a prevenir a progressão da doença com terapêuticas anti-inflamatórias e reabilitação. Mas mesmo nos nossos dias, e em todo o mundo, há doentes com diagnóstico tardio e intervenções terapêuticas inadequadas, por falta de sensibilidade na comunidade para os sintomas iniciais desta doença. O problema em parte está relacionado com a enorme frequência de dores nas costas, que se pode quase considerar característico do bipedismo humano. De facto, as raquialgias em geral e as lombalgias em particular são muito frequentes. Estima-se que cerca de 80% da população tem pelo menos um episódio de lombalgia aguda ao longo da sua vida e em cerca de 10% estes episódios evoluem para um quadro crónico. Estas lombalgias na maioria dos casos têm uma origem multifatorial, incluindo lesões do disco intervertebral, pratos vertebrais, articulações interfacetárias, ligamentos, fáscias e músculos bem como compressão de raízes nervosas. Este tipo de quadro doloroso de causa inespecífico é conhecido por lombalgia comum.

No entanto, por trás destes lombalgias escondem-se frequentemente doenças graves infeciosas, tumorais ou inflamatórias, que por vezes escapam a um diagnóstico atempado. Uma das entidades escondidas é a espondilite anquilosante. É muito importante que exista uma sensibilidade médica elevada para o diagnóstico diferencial das raquialgias. No caso concreto da espondilite anquilosante isso quer dizer o acesso a terapêuticas biológicas eficazes, que permitem a resolução das dores e normalização da qualidade de vida e previnem a evolução incapacitante a longo prazo. O Dr. Khan não estaria atualmente dependente de um andarilho e de suporte ventilatório noturno se o seu enquadramento de vida tivesse sido outro. Quem o conhece, afirma, no entanto, que a sua impressionante resiliência e compaixão pelos doentes não seria a mesma.

homem vestido de médico

João Eurico Cabral da Fonseca

Serviço de Reumatologia e Doenças Ósseas Metabólicas, Hospital de Santa Maria, CHULN

Unidade de Investigação em Reumatologia, Instituto de Medicina Molecular

Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa