A sala é acolhedora e as pessoas que o ouvem são todas amigas.
A família não viria ver o filho pródigo, pois dar um saltinho de Aveiro até Lisboa não é assim tão simples para quem trabalha e não tem privilégios. Ainda assim, a ligação em direto colocaria a mãe ligada a ele naquele momento fulcral.
Hora certa, porque faz também parte do rigor, a camisa azul escura formal e o silêncio da sala, apontavam o momento solene que cumpre fim de um ciclo, o começo de outro.
Algumas das Professoras mais próximas aos seus alunos e sempre envolvidas nas ações académicas olhavam para ele como se a empatia lhe transmitisse super poderes de confiança e calma. Mas ele não precisaria até ao final.
Da fila mais à nossa frente passaríamos a conhecer o Henrique, discreto e focado, lá ia cedendo ao orgulho e dizia entre dentes “ele fala muito bem”. Mas agitava-se no banco, prestes a ter um ataque de nervos pela hora decorrida que soava a semanas de deserto.
A tese era hoje defendida como causa, já que os Paliativos sempre lhe despoletaram reação e papel ativo. Talvez a decadência física, culminada na morte da avó tenham incendiado de vez o instinto de ser cuidador. Cuidador das causas e dos outros.
Reunido o júri no final e que contava com os Professores Paulo Pina, Rui Tato Marinho, Alda Pereira da Silva e presidido por Luis Carrilho Ribeiro, a tese sobre o “Caso Clínico de Carcinoma Hepatocelular: A importância dos Cuidados Paliativos e Cuidados Domiliciários” passaria com grande nota e merecida celebração.
Conhecemo-lo no dia das matrículas, o Eddy Martins já vinha com longo caminho feito, enfermeiro a trabalhar há algum tempo, decidia regressar à Faculdade, agora para matar a sede de aprender Medicina. No Eddy há vários fatores que o tornam mais humano, comoventemente real, um deles é a franqueza de ser o que é, sem panos a tapar defeito ou fragilidade.
Não entrou em Medicina como estudante do secundário, não tinha a média necessária. Entrou depois, já em regime de licenciado. Enfermeiro que sempre exerceu o seu cargo, mesmo enquanto estudou 6 anos de Medicina, para poder pagar o seu curso, chegou a ponderar fazer o doutoramento, mas quem o conhecia de perto desafiou-o a tentar Medicina, somando assim segundo mestrado.
E assim foi. Da entrevista que o transformou em um dos selecionados de Medicina, repetiu a fórmula hoje, juntando novamente os professores da entrevista do dia em que entrou. Maria José Diógenes, Presidente do Conselho Pedagógico, que o acompanhou na plateia e Rui Tato Marinho, atual diretor clínico da ULS de Santa Maria, e parte integrante do júri da tese final de mestrado. A relação com Tato Marinho vem detrás, altura em que era o coordenador da área dos Paliativos, tema que sempre ligou Eddy às grandes decisões da vida. No 4º ano propôs ao seu Professor Rui seguir a vertente dos Paliativos e o Professor ajudou, apresentando-lhe um caso clínico que viria a ser o seu tema de tese.
Do Eddy foi sempre difícil perder o norte. Fez parte do primeiro grupo de portugueses a ir até à fronteira da Polónia com a Ucrânia, tratar de refugiados ucranianos fugidos da guerra. De lá mandou-nos sempre notícias e sinais de esperança, através de fotografias e desenhos de crianças e de relatos sem hora nem dia.
Olhos azuis marcantes não deixa de mostrar a tristeza de decisões que, tendo de as tomar, nunca se envergonhou de as assumir como caminho. A meio do 5º ano encontrávamos o Eddy a sair das aulas, para ir trabalhar. Sem tempo para ter apenas foco para estudar, sem tempo para refeições equilibradas, transportava num pequeno saco de papel um pão e uma banana. Essa seria a única refeição que iria fazer o dia todo, já que não lhe restava mais espaço para “caprichos” de qualidade de vida. Nesse mesmo dia anunciou que teria de voltar para a terra natal, Aveiro, porque não havia mais como suportar os custos de viver em Lisboa. Rendas de casa demasiado elevadas, vários livros de estudo a comprar e propinas anuais seriam em conjunto elementos mais do que suficientes para recuar à sua casa de partida, mesmo que esse recuo fosse congelar um percurso que sempre sonhou.
O Eddy não é mais preferido que os nossos outros alunos, é a materialização de um grupo de pessoas silenciosas que, não tendo famílias com abastado poder de compra, podem ter de prescindir de uma carreira. O Eddy não foi o único a regressar a casa, mesmo quase na reta final. Ainda assim conseguir levar a teimosia avante e terminar Medicina. Mas terão alguns parado pelo caminho?
“O futuro senhor doutor não pode mostrar fragilidade”.
Dizia-nos agora que pode brindar a ser mestre em Medicina.
Mas a que preço se conseguem os feitos?
Precisamente entre quebras e fragilidade que por serem já meio caminho percorrido para conseguir enfrentar o medo da falha, como um navegador a dobrar o cabo das tormentas. Mas atravessado que está, então quase tudo fica vencido.
Se o primeiro foco de discussão social nos contou que os nossos estudantes podem sofrer com problemas de saúde mental, agora acrescem as dificuldades financeiras. Lado que não se conhece e não se fala por pudor. Pode um doutor ser humano, real e frágil?
Em todas as épocas de exame quebrou, conta-nos. “Porquê matar-me a estudar, sem dinheiro, sem tempo livre, se já tinha uma profissão e a vida estável?”. As respostas vinham a cada prova passada e a cada apoio reforçado pelas pessoas que nunca o abandonaram e que hoje o assistem no auditório antigo de madeira. Por ele esperaram as férias e o descanso e o tempo nunca usufruído. Andou de avião e viajou. Apenas para ir ajudar refugiados, ajudando-se assim a cumprir desafios mentais e profundamente humanos.
Efeito borboleta foi o que nos causou. Não, não é poesia, é o seu abanar das asas que nos trouxe mensagens que precisam de tocar outros. Que precisam de contar que os nossos estudantes são pessoas reais, frágeis por vezes, fortes outras, mas sempre humanas.
O abanar de asas do Eddy Martins faz-nos aplaudir quem já apresentou a tese. E encorajar quem ainda a apresentará.
A todos os que cumprem esta meta final, não falhem o sprint, porque estaremos orgulhosos a aplaudir-vos!