Há 14 anos que o ensino clínico não passava por mudanças estruturais. Foi através da entrada do acordo de Bolonha, que promovia reduções nos cursos e maior mobilidade entre estudantes europeus, que as alterações em Medicina viriam a ganhar nova organização académica, passando de 6 para 5 anos de conteúdos mais formais, permitindo dessa forma que o sexto ano fosse o contacto real dos alunos com a clínica.
Com a experiência do tempo viria a sentir-se que a falta de transversalidade de conteúdos, que levava à sobreposição de temas e áreas disciplinares, a carga excessiva de aulas teóricas, a aplicação de diversos exames nas mais variadas disciplinas e a falta de modernidade tecnológica, apelavam a uma Reforma do Ensino que recordava os anos volvidos. Implementar uma mudança sustentada, exigia tempo, estudo e muito termo de comparação a alguns dos países modelo, que acabariam por ser seguidos como exemplo, o Reino Unido (em quem Portugal se inspirou sobre o Serviço Nacional de Saúde) e a Holanda.
Depois de diversas reflexões internas entre grupos pedagógicos da Faculdade de Medicina, com professores e estudantes, iniciava-se no ano de 2015 e até 2017, um primeiro grupo de trabalho que faria a análise detalhada daquele que viria a ser o primeiro documento que traçava o ponto de partida para um novo sistema de ensino. A Comissão de Avaliação do Ensino Clínico (CAEC) procurava assim, através de diversos questionários, perceber os pontos fundamentais a desenvolver daí em diante.
Seria um ano depois que a Comissão de Implementação da Reforma do Ensino Clínico (CIREC) que unia professores, estudantes e elementos da área Académica, se constituía para pôr em prática o trabalho proposto pelo grupo anterior, traçando as linhas formais da Nova Reforma do Ensino Clínico. Com o foco nos anos clínicos, esta Reforma, que fora planeada para o arranque do ano letivo 2020/2021, adequou-se à realidade da pandemia e esperou pelo tempo certo para se apresentar.
Por vontade expressa do atual Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, o Prof. Fausto J. Pinto, era formalmente nomeado um coordenador que, mais do que dominar todas as matérias sobre Educação Médica, caminho impossível para uma só pessoa, apresentava ter o perfil perfeito de gestor de tempo e metas, organizando uma equipa ambivalente, pronta a funcionar.
Foi com ele que falámos e quando questionado sobre algumas tentativas mais avessas à mudança, o Prof. José Ferro não manifestou qualquer espírito de ansiedade. “Vai acontecer, porque é para ser feito”.
Em setembro de 2021 entrará em vigor a Nova Reforma do Ensino Clínico, respondendo assim a uma atualidade que exige novos mecanismos de interação entre quem aprende e quem ensina, novo olhar perante o mundo tecnológico, reinventada construção de perfil profissional, e um entrosamento entre os vários módulos da Medicina, olhando para o todo e não dividindo a doença e os doentes por partes.
Sobre o que é esta Reforma e em que aspetos fundamentais se alicerça. Foi do que falámos com o seu coordenador.
Professor quais são os grandes pilares onde assentam esta mudança do Ensino?
José Ferro: Há algumas mudanças principais. Uma diz respeito à integração dos vários conteúdos das disciplinas que, até aqui, funcionavam independentemente. Essa separação mais “fragmentada”, tema a tema, deixa de acontecer.
Temos de ter presente que a própria Medicina, como um todo, cresceu muito do ponto de vista científico. O que dominava o ensino tradicional da Medicina clínica era que cada especialidade aprofundava a sua parte do corpo. E, se em termos de especialidade, é bom dominar uma matéria específica, quer para o médico geral, ou alguém em início de carreira, não é bom que não se olhe para esse todo. Note o seguinte, a maioria das doenças concentram-se no final da vida de uma pessoa, o que significa que estas não vão ter apenas uma doença, mas várias. O paradigma das doenças isoladas, já não corresponde à realidade atual. A pessoa quando vai ao médico, não se queixa de uma patologia isolada, mas de um conjunto de sintomas que não sabe em que patologias se traduzem, então, pode estar a queixar-se de um órgão isoladamente, ou de vários. E mesmo sendo apenas um órgão, podemos estar a falar de várias patologias. Mas há mais elementos a acrescentar diante deste quadro. A maior parte dos fármacos não atuam apenas num só recetor, mas em vários, podendo causar efeitos secundários. Ora, é a partir da pessoa doente, que o médico vai analisar os órgãos disfuncionais e daí em diante perceber como está o doente a interagir com a medicação. Este raciocínio traduz uma análise transversal e não uma análise de órgão a órgão.
Todos estes passos mostram o que é o ensino de integração das várias disciplinas, conjugando novos conteúdos e situações que se ganham na interação com os docentes das várias áreas e que permitem assim discutir os mais variados temas em conjunto. Esta nova interação é um dos aspetos mais importantes desta mudança do ensino e que acontece nos últimos dois anos, os anos clínicos, fase em que o aluno está em contacto com os doentes.
É precisamente nesta fase que o aluno já adquiriu um conjunto de competências que chamamos de transversais. Competências estas que, já sendo ensinadas desde o princípio da formação e com um sentido de ensino mais formal, nestes últimos dois anos consolidam-se, sendo fundamentais para alguém que vai para o mercado de trabalho.
E que competências são essas agora mais desenvolvidas? Vão desde o sentido de profissionalismo, à ética, ao desenvolvimento da carreira, ao sentido de liderança em equipa, ou à própria capacidade de comunicação. Todas estas áreas são essenciais para esta que é uma profissão de contacto humano, uma profissão de prestação de serviço ao outro, seja eficaz e bem-sucedida. É na soma de todas as áreas que teremos um médico completo. E esta noção de todo, de um profissional completo ensina-se, fornecendo as ferramentas integradas num ensino que, até então, a sua grande maioria era apreendida já no mercado de trabalho e cada um por si. O médico mais preparado é aquele que tem o conhecimento formal, a capacidade de liderança e o sentido de grupo. Este primeiro conceito liga-se muito diretamente a outro pilar desta Reforma e que diz respeito aos próprios paradigmas de aprendizagem. O regime de ensino será todo ele mais ativo, participativo e dinâmico. O que significa que agora é o aluno que se serve daquilo que tem disponível para absorver conhecimento. É essa sua capacidade de autonomia da aprendizagem que vai mimetizar como ele vai aprender no futuro e adaptar-se às mais variadas circunstâncias. Mas também os prepara muito mais para o futuro e para aquilo que atualmente entendemos que nem é relativamente importante, mas que daqui a uns anos pode assumir uma profunda importância. Deixe-me dar-lhe um exemplo para perceber onde quero chegar. Há 40 anos atrás quase não se falava sobre o estudo da genética ou da imunologia, o tema quase não existia, mas tal já parece impensável hoje se não for ensinado. Isto quer dizer que a Medicina está sempre a avançar e o ensino também. À medida que se vai dando cada vez mais importância aos determinantes sociais da doença, o jovem médico também precisa de ter claro todos os caminhos de tratamento, sabendo que a melhoria desse doente, depende da ação do médico e da sua responsabilidade global.
Depois, há aspetos sobre o ensino em si onde há ainda algumas lacunas, uma dessas limitações que existia até agora era o rácio entre professor e aluno. Com esta Reforma há uma diminuição desse rácio, o que se torna fundamental para o ensino prático. Mas não é só na perspetiva dos alunos que falamos, esta mudança também reforça o ensino dos próprios docentes, porque também não havia tradição formal do ensino dos docentes, ou seja, de ensinar a ensinar. Mas foram desenvolvidos mecanismos para que os próprios aprendessem novas ferramentas: como fazer exames de escolha múltipla, como captar o interesse dos alunos, como criar mais ligação com os alunos, mesmo via online. Todas estas áreas têm sido trabalhadas pelo Departamento de Ensino Médico (DEM) nos últimos anos.
Outro aspeto muito importante era o tempo que despendíamos em exames e avaliações, e os peritos estrangeiros que vieram discutir a reforma connosco foram todos unânimes nessa análise. Agora, concentrarmos as avaliações num só período e com as matérias integradas, o que se considera que é mais benéfico, porque permite ao aluno estudar mais tempo, ou gerir esse tempo com mais autonomia.
Professor, por outro lado, esse espaçamento das avaliações pode levantar críticas que apontam para o facto de os alunos não ficarem tão preparados para as matérias, uma vez que tem menos exames. Quer comentar?
José Ferro: Isso seria um risco, mas foi pensado e não se prevê que seja o caminho. As avaliações vão sendo testadas e treinadas ao longo do ano, como, aliás, já se tem feito nos últimos tempos.
Nunca é demais reforçar que a integração e transversalidade das áreas disciplinares é a grande mudança nesta reforma e não tanto a avaliação, porque mesmo se a fizéssemos como avaliação sectorial, em três fases distintas, não colocaria a reforma em risco. Contudo, o modelo de avaliação que se escolheu parece-nos ser o mais apropriado para a realidade que estamos a implementar.
O Professor constitui equipa de trabalho em 2017 para implementar uma Reforma que já começara a ser trabalhada por equipas anteriores. Que pessoas e perfis são necessários para constituir uma equipa de trabalho para discutir e integrar estas matérias?
José Ferro: O primeiro documento de 2015, do qual eu não fiz parte, já estabelecia estes princípios básicos que falámos aqui. Foram esses pressupostos teóricos de base que nos permitiram fazer o trabalho para a frente. O nosso papel foi trabalhar esses princípios fundamentais já estabelecidos. Tive como preocupação incluir o maior número de pessoas, envolvendo assim todos os regentes de disciplinas, todas as pessoas interessadas e envolvidas nas mudanças e no próprio ensino, pois era importante integrar todas as especialidades, ouvir os intervenientes de todas essas áreas. Também contar com os alunos, e tivemos alguns com bastante conhecimento sobre formação médica. Juntou-se ainda um grupo de pessoas com uma grande visão académica e, com todos eles, foi preciso ir negociando, chegando a consenso e escolher exatamente os modelos que íamos seguir para desenhar os conteúdos de cada uma das novas áreas disciplinares. E é tudo isto que implica um processo de mudança bastante grande. Dou-lhe mais um exemplo claro, que era a separação da Cirurgia e da Medicina. Hoje, pretende-se que haja uma integração total destas duas áreas, houve um grande espírito de colaboração em que todos tiveram que ceder um pouco, mas tem sempre uma nova perspetiva do ensino e da própria Medicina.
Há sempre uma grande tentação de, diante de uma grande mudança, sugerir que então aquilo que foi feito no passado já não tem validade ou qualidade. Como é que se descansam os alunos dos anos finais, dizendo que o seu regime de ensino não os vai lesar só porque não beneficiaram desta nova Reforma?
José Ferro: A reforma tem sempre que começar de um determinado ponto. Claro que o que pretendemos é que ela seja melhor e que crie melhores médicos, mas não temos nenhuma fórmula que nos diga que vamos ser bem-sucedidos para o futuro. Precisamos de tempo para observar. Mas há que reconhecer que as fórmulas usadas na formação dos nossos alunos têm sido muito eficazes, basta ver as notas finais deste ano da Prova de Acesso, em que tiveram a melhor média do país. Sabe, é importante dizer que os melhores médicos não se formam apenas com uma reforma de ensino, esse perfil de excelência revela-se também no internato, na experiência profissional, no contacto com os outros e não só com uma reforma por si.
Muitos estudantes têm mostrado grande vontade de ter mais contacto com a clínica desde os primeiros anos de formação académica. Esta integração com a clínica está pensada também, num futuro próximo, para os primeiros anos?
José Ferro: Essa será outra reforma, para os primeiros anos do curso, que não é o caso agora. Ainda assim podemos afirmar que o contacto com a clínica já é muito maior do que há alguns anos atrás, mesmo nos anos mais iniciais. Mas também temos que considerar que há limitações físicas para entrada de tantos estudantes nas instalações do Hospital (Santa Maria), pelo que não é fácil integrar todos os anos, tantos alunos ao mesmo tempo e num só lugar.
Então, é também por questões físicas e logísticas que não se abrangem todos os anos nesta reforma?
José Ferro: Não. Aquilo que sentimos é que os últimos anos eram aqueles que precisavam de uma maior alteração. O terceiro ano já está também a ser revisto, mas não será para já. E os primeiros anos foram revistos há relativamente pouco tempo.
Isso significa que sobre o terceiro ano queremos vir a ter novas perspetivas para breve?
José Ferro: Sim, sim, penso que num breve trecho. Mas que ainda não fará parte deste projeto que arranca em setembro. Esse é um projeto que, apesar de poder ter interações, é independente e não vai ter agora grandes mudanças, ou novidades de última hora.
O hospital está mais envolvido nesta nova reforma do ensino clínico?
José Ferro: É importante referir que o Hospital tem colaborado bastante com a Faculdade, e não vai sofrer impactos na sua utilização. Não vamos ter mais alunos, nem menos alunos a entrar e como tal a utilização dos espaços do Hospital serão precisamente as mesmas. Onde admito que foram precisas mais ajudas foi com os centros de saúde, já que a área da Medicina Familiar foi expandida.
O nosso corpo docente está apto para assumir estas mudanças de ensino?
José Ferro: Sim está, não tenho a menor dúvida disso. É importante que os próprios saibam que esta reforma não vai implicar uma maior sobrecarga horária. Mas vai exigir uma ligeira mudança de atitude, abrindo mais os nichos de ensino que existiam até agora. Também para eles haverá mais transversalidade de conteúdos. Claro que mudar algo novo traz sempre algum desconforto, mas não é mais do que isso.
Todas estas pessoas podem esclarecer dúvidas, trocar informação ao longo do processo de trabalho e esta troca de impressões vai acontecer até ao final deste ano letivo, diria que até fim de julho. Sabemos que os estudantes são conhecidos por fazer abertamente estas sessões de esclarecimento, mas estes mesmos temas de troca de informação existem para o corpo docente. A forma como está a ser organizado é que é diferente, não há uma só sessão geral, mas cada uma das áreas cria esta interação com as suas equipas e depois fazemos uma reunião com os responsáveis, onde se expõem algumas informações adicionais, dúvidas, ou propostas. E pode haver um ao outro ligeiro ajuste, mas seguramente que nada muda estruturalmente.
Quando é que na prática vamos ver refletidas estas mudanças?
José Ferro: Muito rapidamente, diria que já no fim do primeiro semestre teremos estas primeiras conclusões. Porque vamos ter avaliações de satisfação, reuniões de fim de ano e logo aí vamos sentir o primeiro feedback, com os resultados mais numéricos. Posteriormente esse feedback chegar-nos-á com outcomes mais distantes, mas será algo faseado e já pensado.
Após o primeiro feedback passa-lhe pela cabeça que reajam a em reajuste desta recém Reforma?
José Ferro: Eu penso que não será examinada. Seria provavelmente muito mau sinal, claro que podemos sempre ter um reajuste operacional, mas não mudanças estruturais. A nova Reforma está fechada e não vai seguramente sofrer grandes alterações.
Não é pelo cunho centenário que esta Instituição assume que a faz deixar de se adaptar a um novo paradigma de mundo e visão de realidade. Depois de muito ouvir as várias partes e de aprofundar sobre matérias com os melhores especialistas, a reforma vai ser implementada a pouco menos de três meses. Benéfica para os estudantes, assim como para os docentes, cada um dos protagonistas terá de assumir muito bem o seu papel e responsabilidade. A mudança pretende ampliar a satisfação, na forma como se vai partilhar o conhecimento e trocar impressões, assim como no modo como se assumirá a responsabilidade de se ser um profissional da Saúde.
Para permitir que esta nova dinâmica de troca de experiências acontecesse, a Faculdade de Medicina decidiu fazer novas contratações, só isso permitiu a diminuição do rácio professor-aluno. Mas aconteceu.
Em setembro um novo ensino entrará em vigor, mas até lá a equipa da News vai dinamizar conversas, conteúdos e reportagens para dar a conhecer este novo universo, dando vários ângulos das decisões mais estruturais e ouvindo seus maiores mentores.
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Joana Sousa
Equipa Editorial