A perspetiva do Professor Francisco Antunes, que considera que a correta aplicação e interpretação dos testes víricos e de anticorpos é fundamental para compreendermos a COVID-19 e, assim, traçarmos estratégias eficazes de combate à pandemia.
1. Introdução
A doença por coronavírus 2019 (COVID-19) é causada por SARS-CoV-2, um coronavírus emergente, que foi, pela primeira vez, reconhecido em Wuhan, na China, em 31 de Dezembro de 2019.
A sequenciação genética deste vírus sugere que se trata de um betacoronavírus, muito próximo ao vírus da SARS (2002-2003). A transmissão processa-se pelo contacto próximo (através das gotículas respiratórias) ou directo com infectados e, ainda, pelo contacto com objectos e superfícies contaminadas. A eliminação de SARS-CoV-2 é elevada no aparelho respiratório superior (nariz e garganta) logo no início da doença, nos primeiros três dias após o início dos sintomas.
O período de incubação da COVID-19 (intervalo de tempo que decorre entre a exposição ao vírus e o início dos sintomas) é, em média, de 5-6 dias, mas pode ir para além dos 14 dias. Neste período de tempo, denominado também de pré-sintomático, alguns dos infectados podem transmitir o vírus, 1-3 dias antes do início dos sintomas (figura 1).
Calcula-se que cerca de 80% dos infectados por SARS-CoV-2 seja assintomática ou desenvolvam doença leve ou moderada, cerca de 15% evolui para doença grave, necessitando de suporte de oxigénio e 5% progride para doença crítica, com complicações, tais como insuficiência respiratória, síndrome respiratória aguda grave (SARS), sépsis e choque séptico, tromboembolismo e/ou falência multiorgânica, em particular cardíaca, mental ou neurológica (figura 2).
Nos sobreviventes, a duração média de detecção do ARN do vírus (por PCR – reverse transcriptionpolymerasechainreaction) é de 20 dias, mas pode ir para além dos 30 dias. Nos não sobreviventes, o ARN tem sido detectado até à morte.
Quanto ao que se refere à descontinuação das medidas de isolamento para os infectados sintomáticos e assintomáticos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda 10 dias após o início dos sintomas, mais, pelo menos, três dias sem sintomas (febre e tosse) e 10 dias após um teste positivo, respectivamente.
Para o diagnóstico de todos os casos suspeitos, o teste por PCR de amostras da nasofaringe ou da orofaringe, colhidas por zaragatoa, é o recomendado.
Os testes serológicos não estão recomendados para o diagnóstico das infecções agudas.
2. Testes serológicos
A pesquisa de anticorpos no sangue (os anticorpos são proteínas, denominadas imunoglobulinas) tem por objectivo confirmar uma determinada infecção no passado e a presumível imunidade contra a reinfecção. Para COVID-19 não se sabe a duração e a eficácia desta protecção. O que se sabe (a cinética dos anticorpos anti-SARS-CoV-2 resulta de estudos em infectados sintomáticos - não se sabe se as curvas das IgM e IgG têm o mesmo perfil nos assintomáticos) é que os anticorpos específicos da classe IgM e da classe IgG positivam 4-5 dias após o início dos sintomas. As IgM atingem o seu pico aos cerca de 18 dias, mantendo-se estáveis durante 9 dias (em títulos elevados) e, depois, diminuem muito rapidamente e cerca dos 39 dias estão abaixo do limiar de sensibilidade. Quanto às IgG (não são, em regra, detectadas antes dos 9 dias após o início dos sintomas) aumentam com rapidez entre o 9º e o 15º dias, continuam a crescer durante mais algumas semanas, mas não se sabe a duração da sua persistência. Assim, compreende-se que os infectados por SARS-CoV-2 sintomáticos, em geral, não têm anticorpos detectáveis nos primeiros 7 dias após o início dos sintomas.
Sabe-se, também, que doentes internados (sintomáticos), que sobreviveram à COVID-19, apresentavam anticorpos contra o vírus, todavia alguns deles com títulos baixos de anticorpos neutralizantes (resposta adaptativa), sugerindo que a imunidade celular (inata) teve um papel fundamental na recuperação. Não é conhecido o padrão da resposta à SARS-CoV-2, nos infectados assintomáticos, e a sua correlação com a resposta por anticorpos com a susceptibilidade à reinfecção.
Atá agora nenhum estudo avaliou se a presença de anticorpos para SARS-CoV-2 confere imunidade a infecções subsequentes por este vírus. A detecção de IgG e de anticorpos neutralizantes não é sinónimo da durabilidade da imunidade. No entretanto, até à data nenhuma reinfecção por SARS-CoV-2 foi confirmada. Também, não há evidência de que aqueles que recuperam clinicamente da COVID-19 e que, após um teste de PCR negativo, seguido depois, por mais alguns dias, com testes PCR positivos para SARS-CoV-2, possam transmitir o vírus (no entretanto, tal possibilidade de transmissão não pode ser excluída). Também, é possível que estes casos possam representar infecções por SARS-CoV-2 persistentes ou recorrentes. Porém, não existem dados que possam diferenciar estas situações. Estudos longitudinais de doentes que recuperaram da COVID-19 poderão ajudar a documentar recorrências e reexposições, através da monitorização clínica de sinais e de sintomas, em ligação com estudos laboratoriais, por forma a comparar o genoma dos isolados de SARS-CoV-2.
Os testes serológicos para SARS-CoV-2 devem ter sensibilidade e especificidade elevadas. A implementação clínica destes testes necessita de validação para a determinação da precisão e da segurança.
Testes serológicos não validados podem incorrer em dois erros: a) Identificação como negativo de alguém que tenha sido infectado; b) identificação como positivo de alguém que não tenha sido infectado. Neste último caso, podem estar incluídos infectados por qualquer um dos coronavírus que causam as simples constipações, cuja produção de anticorpos possa ter reacções cruzadas com aqueles produzidos por SARS-CoV-2. Tendo em consideração o estado da arte, é aceitável a realização de testes a nível populacional, em grupos específicos, tais como em trabalhadores da saúde, contactos próximos com casos conhecidos ou em conviventes familiares. Estes estudos são fundamentais para se perceber a extensão (e os factores de risco) da infecção (quadro).
Os dois principais problemas com os estudos de seroprevalência na população são os seguintes: a) Se, apenas, uma pequena percentagem da população for infectada, os falsos positivos podem sobrestimar o número de pessoas infectadas; b) dificuldade de recrutamento de uma amostra representativa da população, cujos resultados possam ser enviesados.
3. Testes serológicos e imunidade
Os testes serológicos permitem saber quem está ou não imune à SARS-CoV-2, podendo ser utilizados para estimar a incidência (taxa de ataque) ou a taxa de letalidade, por forma a se conhecer qual foi a dimensão da transmissão na comunidade. Por outro lado, têm, também, utilidade para a identificação de trabalhadores de saúde imunes, que possam voltar ao trabalho, em condições de redução do risco de exposição ao vírus ou para avaliar do efeito das intervenções não-farmacológicas a nível populacional, podendo considerar-se a melhor estratégia para a remoção das medidas de confinamento e de distanciamento social.
No futuro, os testes serológicos vão ser úteis para a avaliação da eficácia das vacinas (imunogenicidade) e, ainda, para a identificação daqueles que desenvolveram uma resposta imunitária forte ao vírus e daqueles cujos anticorpos podem ser utilizados para o tratamento dos doentes com plasma de convalescentes.
Todavia, vários aspectos necessitam de ser clarificados, nomeadamente, a implementação adequada, a validação e a interpretação dos testes serológicos, designadamente o conhecimento correcto da cinética dos anticorpos, das classes IgA, IgM e IgG, de forma a evitar, por exemplo, falsos resultados negativos pela determinação muito precoce do teste (antes da formação dos anticorpos). Acresce, ainda, o facto de não se saber ao certo qual é o papel dos anticorpos na imunidade para este coronavírus.
Professor Doutor Francisco Antunes
Professor Jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e especialista em Doenças Infecciosas